Neville: uma história de cinema

CESAR OITICICA FILHO

Rio de Janeiro , 11 de maio de 2021

Uma família mineira em viagem de carro no interior do estado do Rio, em Barra Mansa o carro para em frente a uma bombonière. O menino vê uma cortina linda de veludo vermelho e pergunta ao pai: “O que é aquilo?”. O pai responde: “Aquilo é cinema”. “O que é cinema?”, pergunta o garoto de sete anos. “Vai lá abre a cortina que você vai ver”. O menino corre e quando abre vê uma mulher lindíssima em uma tela gigantesca. Era Rita Hayworth em uma cena de Gilda, contracenando com Glenn Ford. Foi amor à primeira vista, naquele momento o garoto toma uma decisão. É isso que quero fazer, resolve ele, fazer cinema. Esse menino se chama, Neville Duarte Almeida.

Mais tarde, já na adolescência, lendo uma crítica de cinema, descobre um cineclube em Belo Horizonte, ele começa a frequentar o CEC (Centro de estudo Cinematográfico), na Rua Guarany e, já na primeira vez, é apresentado ao neorrealismo italiano com “Roma Cidade Aberta”. Inclusive assiste ao debate sobre a obra de Roberto Rosselini. Ali começa a estudar cinema e nunca mais deixa de ir ao CEC. O Cineclube fazia estudos do cinema russo, do neorrealismo italiano, da Nouvelle vague, do cinema americano, do cinema inglês, do cinema mexicano, do cinema brasileiro, entre outros, inclusive do cinema japonês. Ali ele teve uma visão universal do cinema, dos clássicos do cinema mundial.

Mais tarde, entra no Teatro Universitário de Minas Gerais e ali a vida começa realmente a ser toda dedicada ao cinema e ao teatro. Logo após essa introdução magnífica onde tem aulas inclusive com Angel Vianna, J. D’ângelo, João Etiene Filho, Francisco Paulo Lima, Haydee Bittencourt, Marco Antônio Menezes, ele parte para os EUA a fim de estudar cinema. Entra num curso do New York City College, mas no curso ele vê que é tudo muito focado na técnica, principalmente quando indaga o professor sobre os grandes diretores, como Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Akira Kurosawa, Ingmar Bergman, Jean Renoir.

O professor olha espantado como quem não conhece aqueles nomes e diz: “Deixa eu te dizer uma coisa, existe apenas um cinema, o cinema americano”. Ali um imigrante magrelo, sem dinheiro, responde com veemência: “Você está errado, você não conhece cinema, você é um ignorante e qualquer favelado no Brasil sabe mais de cinema que você!”.

Na mesma hora ele é expulso do curso e aí ele percebe que tudo que aprendeu em Belo Horizonte é, até esse momento, sua maior formação em cinema. Depois dessa aventura americana e de volta ao Brasil. Com as economias dos trabalhos que fez em Nova York ele parte para seu primeiro filme de longa metragem, Jardim de Guerra, nessa realização conta com a participação dos amigos, entre eles nomes como: Jorge Mautner (roteiro) e Nelson Pereira dos Santos, além de Dina Sfat, Glauce Rocha, Hugo Carvana, a direção de fotografia de Dib Luft. O filme é selecionado para o Festival de Cannes para abrir a quinzena dos realizadores, junto com Julio Bressane. No mesmo ano em que Glauber ganha, na mostra competitiva, como melhor diretor. Com eles Neville curte sua estréia mundial em grande estilo.

Ainda em Cannes fica sabendo que o seu filme está censurado pela ditadura militar no Brasil e que ele está sendo processado pelo governo. A grande surpresa do sucesso, o filme ganha um prêmio no festival de Brasília de melhor ator para Joel Barcelos, além da participação em Cannes, isso tudo lhe dá ainda mais certeza do caminho a seguir. Apesar dos censores terem cortado ainda no laboratório as partes censuradas, por sorte a cópia enviada ao Festival de Cannes permanece intacta e agora acessível sem cortes.

Essa primeira experiência de sucesso e censura vai se tornar uma longa história na obra desse diretor, sua ousadia e liberdade de criar irá incomodar ainda muita gente, apesar das etiquetas que vão querer lhe impor de “maldito” e “marginal” ele vai ter sempre a certeza da essência de sua obra, enquanto arte, sem perder o foco no que ela traz de melhor, a liberdade, sem falar na provocação e o incômodo aos conservadores e caretas.

“Eu decidi desde o primeiro filme, desde o primeiro fotograma, que eu jamais ia deixar de fazer o que tinha que ser feito, que eu ia buscar liberdade sempre e que censura não tinha importância, eu sabia que a ditadura ia passar e a liberdade ia voltar. Eu decidi fazer um cinema sem limite, sem pensar na censura e decidi depois de mandar dois filmes pra censura, que nunca mais ia mandar filme nenhum pra lá, continuar filmando em dezesseis e depois, continuar filmando em super 8.” Essa declaração deixa claro a busca desse artista, sua incansável luta por liberdade criativa e seu compromisso com a sétima arte, que o levaria as mais inesperadas consequências e as mais loucas sequências.

Na apresentação de Jardim de Guerra numa cabine prive no Laboratório Líder, para amigos e convidados especiais, Waly Salomão chega e traz também um convidado especial, Hélio Oiticica, que fica maravilhado com o filme e também inicia uma amizade que irá produzir no futuro grandes novidades. O artista comenta que nunca tinha visto projeções de slides no cinema e também fica impressionado com o uso de poster como linguagem cinematográfica, a amizade entre os dois, Hélio e Neville se dá no âmbito da criação e logo eles começam a planejar um filme para fazerem juntos. Hélio viaja para Nova York e Neville fica com a idéia de realizar aquele experimento, que mais tarde vai se chamar Mangue Bangue.

Com o impulso de Cannes parte direto para outros três filmes em 16mm: Surucucu Catiripapo (1973), Lunch Time (1972), Piranhas no Asfalto (1971). Para realizar esses filmes ele gasta todas as economias e tem até mesmo que vender um apartamento que tinha em sociedade com seu irmão em Belo Horizonte.

O primeiro deles Piranhas do Asfalto também é censurado, interditado e nunca exibido. Depois dessa experiência, mais uma vez traumática é que resolve não submeter mais seus filmes a censura. Numa busca incessante por liberdade ele cria Mangue Bangue, um filme experimento, que é feito com parcos recursos e com atores como, Maria Gladis, Paulo Villaça e até mesmo Daminhão Experiença, além de atuar, ele mesmo, também nessa produção. O filme é levado clandestinamente para ser montado em Londres e depois tem sua primeira exibição no Museu de Arte Moderna de Nova York, num screening organizado por Hélio Oiticica.

Desse novo encontro com o artista nasce um experimento, que vai colocar de vez o seu trabalho cinematográfico em um outro patamar, sua ânsia pela liberdade e por transcender a fronteira entre cinema e arte chega no ápice do que se havia visto até então, tanto no cinema, quanto na arte. Cosmococa que foi conceituado como um Programa in Progress, é a invenção do “Quasi Cinema”, uma espécie de barril de pólvora que detona a película cinematográfica, com uma câmera fotográfica e expande o conceito de cinema e arte para as mais variadas direções. O experimento coloca o corpo dentro do filme através de projeções em mais de uma tela, as séries originais são cinco e elas propõe dois tipos de instalações, públicas e privadas; o tempo do cinema aqui é detonado, os fotogramas dão a impressão do lapso de tempo e de letargia; levando o cinema a questionar o espaço tempo, o público deixa de ser espectador e passa a ser participante; a experiência corpórea passa a fazer parte do filme e os objetos que estão no ambiente na verdade são instrumentos de dilatação do tempo, são ativadores desses estados sensoriais.

Waly Salomão o responsável por unir os dois amigos, explica a função das lixas de unha como “aquele tempo das mulheres na janela lixando as unhas e vendo a vida passar” só um poeta baiano conseguiria descrever tão bem do que se trata Cosmococa e sua magia em dilatar o tempo, de tocar o corpo e penetrar corpo e obra simultaneamente. Esses novos trabalhos que se estendem de um modo só hoje chamado de multiplataforma, coloca o trabalho de D’Almeida como o mais inventivo cineasta de sua época.

No Brasil, Neville vai ao jornal onde trabalhava Nelson Rodrigues e pede para falar com ele, Nelson o recebe. Ele pede para comprar os direitos de A Dama do Lotação, mas sem ter um centavo no bolso, no final ele consegue que Nelson segure os direitos até que ele consiga o dinheiro. Finalmente ele consegue o dinheiro, compra os direitos e ainda contrata Rodrigues para escrever com ele os diálogos do roteiro. O filme é um sucesso e alcança a maior bilheteria de sua época e D’Almeida consegue levar Nelson Rodrigues ao cinema e a proeza de fazer muito dinheiro e ao mesmo tempo provocar ao colocar uma protagonista mulher, que é ativa e faz valer seu desejo, uma ruptura total no padrão do cinema da época, onde os protagonistas eram sempre homens.

O diretor segue seu caminho, sem se preocupar com a censura, e com a repercussão dos seus filmes. A Dama do Lotação feito em plena ditadura, tem oito minutos de corte, o que faz Neville quase desistir de exibi-lo, o assistente, Paulo Sergio de Almeida o convence, dizendo: “Nada disso (que foi tirado), tira a força do filme”. Finalmente o filme é lançado, o sucesso é absoluto, as filas viram quarteirões inteiros, Sônia Braga é um fenômeno, uma força cinematográfica e sensual. O filme é tão forte que provoca até hoje. Nelson Rodrigues finalmente é conhecido nacionalmente em uma escala nunca antes atingida o que vai gerar mais tarde uma outra parceria entre os dois, com Os Sete Gatinhos, filme de 1980.

Depois disso tudo vieram muitos outros: Música para Sempre (1980), Rio Babilônia (1982), O Encontro Amazônico (1989), Matou a família e foi ao cinema (1991), Navalha na Carne (1997), Hoje é dia de rock (1999), Maksuara – Crepúsculo dos deuses (2005), A frente fria que a chuva traz (2015) e Redenção (2017). O interessante que ao mesmo tempo existem outros filmes feitos no dia a dia, entre projetos de Quasi Cinema ao Além Cinema onde as fronteiras se transbordam, Cosmococa, Tabas Amazônicas e instalações diversas, a obra cinematográfica invade o espaço, o corpo, os sentidos e a própria vida. A certeza do que quer, o ímpeto de fazer, custe o que custar, produziu um corpo obra fílmico, que continua provador e nesse momento se torna mais que atual. Um cinema sem hipocrisia, uma arte sem fronteiras, esse é o legado, liberdade sempre, essa é a matéria da arte.

Com uma filmografia extensa que é difícil até quantificar todos os filmes realizados até agora, entre longas e videoarte, curtas e instalações, sem falar nos projetos ainda por realizar, num Programa in Progress infinito, Neville Duarte Almeida continua aquele garoto curioso, sempre buscando aquela cortina de veludo vermelho para abrir, a cada nova invenção, ele vai se apaixonando de novo, pela liberdade da arte, vivendo esse grande filme, todas essas instâncias da arte reverberam nessa obra vida, que agora completa 80 anos, como uma história de amor, uma história de cinema.



Acessibilidade | Fale conosco | Imprensa | Mapa do Site