O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro apresenta a mostra Prospectiva – Carlos Vergara, que mapeia, sobretudo, a produção do artista das últimas duas décadas. Com curadoria do próprio artista, a exposição combina obras de sua autoria, pertencentes ao seu acervo com excertos de textos escritos por curadores e críticos de arte que vêm acompanhando a trajetória poética do artista durante esse período. Para ele, no entanto, não se trata de uma retrospectiva que avalia ocorrências já sedimentadas em seu processo criativo. Ao contrário – e o título da mostra nos indica –, para o artista, o material exposto segue sendo um desafio poético atual, posto que articula o presente e o futuro de sua produção.
Carlos Vergara nasceu em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 1941. Após viver em São Paulo, no início da década de 1950, mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade em que floresceu como um dos artistas essenciais das vanguardas neofigurativas brasileiras da passagem dos anos 50 para os 60.
O Rio vivia, então, seus últimos anos como Capital Federal, função perdida em 1960 para Brasília. Ainda assim, a antiga capital possuía uma vitalidade cultural impar. Nas artes, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, recém-inaugurado naquela ocasião, tornou-se um dos epicentros das vanguardas e do experimentalismo no Brasil. Aqui foram lançados, por exemplo, o neoconcretismo (1959), a nova figuração (1965) e a nova objetividade brasileira (1967), movimentos referenciais para a renovação da arte produzida no país. Podemos afirmar que a história da produção de vanguarda brasileira nos anos 50 e 60 é inseparável da história do MAM Rio. Consequentemente, tal história deve e pode ser potencializada nesta e em outras exposições com perfil semelhante.
Nesse sentido a curadoria do MAM Rio organizou, no terceiro andar, uma sala complementar, formada por obras pertencentes ao acervo do museu e à coleção Gilberto Chateaubriand MAM Rio, realizadas nos primeiros anos da trajetória poética de Carlos Vergara, ausentes da Prospectiva sob sua curadoria. O entrecruzamento desses dois conjuntos de trabalho permitirá ao visitante do museu uma visão panorâmica da obra de um pioneiro da arte contemporânea brasileira.
Fernando Cocchiarale
Fernanda Lopes
curadores
Natureza inventada[1]
Os recortes no aço corten das esculturas de Carlos Vergara produzem uma conexão quase que instantânea com a imagem de caules. Suas estruturas vazadas criam um convívio harmônico entre obra, espectador e paisagem. São obras abertas, tanto no sentido formal da sua aparição ao mundo quanto na participação que estabelecem com o público, pois a sua revelação se dá na medida em que ocorre o deslocamento do espectador. A escultura, que não possui frontalidade definida, promove contínuas formações ou visões que se tornam aparentes a partir do desejo do espectador de criar múltiplas perspectivas do objeto. Essa leitura me faz pensar que escultura e desenho em Vergara se aproximam também pela qualidade de projeção ou propulsão, no sentido de ampliarem investigações, aumentarem a capacidade de significação e experimentação do objeto. Essa crítica se aproxima do que Hélio Oiticica descreve sobre um sintoma muito próprio a respeito da obra do amigo: “vergara leva esse impulso de decorar às consequências últimas, no momento, aqui; recortar, como cenários para uma ambientação caligariana – recortar paisagens-folhagens – recortar-aparar-juntar – papel-pardo, papelão – criar o módulo”.[2] Chamo a atenção para os verbos de ação (recortar, aparar, juntar e criar) que Oiticica elaborou. A ideia de módulo é muito bem-vinda para compreendermos, num primeiro momento, a construção de suas obras e a forma como essa escolha se apresenta frequentemente em sua trajetória. A ideia modular está nas esculturas que são originadas pelo desenho, como uma projeção para o tridimensional. Eis a experiência do recortar-aparar-juntar, pois depois se tornam recortes em aço, como unidades separadas. Finalmente, essas peças são reunidas, aproximadas e encaixadas.
A existência de módulos, nessa perspectiva tão original de Oiticica, também pode ser pensada na maneira como as pinturas de Vergara são construídas. Camadas que se sobrepõem de forma a chegar a um estado de “paisagem-folhagem”[3] para citar outro conceito de Hélio. Nas pinturas da série Bodoquena (2018), uma referência à serra que dá título à série, um dos ecossistemas de maior riqueza do país, situado no Pantanal (MS), somos conduzidos para esse momento absolutamente original de encontro e conversão a uma multiplicação de afetos e potências visuais. As pinturas, seccionadas por imagens de troncos, galhos e caules em tons amarelados, parecem revelar uma mata fechada. Contudo, antes de qualquer descrição que possa ser feita sobre esse emaranhado pulsante e orgânico, a pintura possui uma potência em direção a fenômenos da natureza que é bem particular. É uma pintura que como operação fenomenológica, tem cheiro, cor, pele e som do Pantanal. Daí o fato de Vergara lançar mão simultaneamente de vários meios e técnicas combinando pintura, fotografia, monotipia, pigmentos naturais entrelaçando formas distintas de experienciar o visível.
Em suas pinturas e fotografias aqui expostas, a representação da natureza e a sobreposição de camadas de distintos materiais, incluindo o pigmento que formalmente se assemelha à terra, fato que não ocorre por acaso, criam uma intersecção de imagens que estão perfeitamente associadas às formas orgânicas e livres das esculturas. Essa atmosfera quase “líquida” do seu trabalho – pela translucidez que ocorre nos vazados ou no nanquim que escorre pelo plano – é reflexo, suponho, da sua relação fértil e crítica com a natureza. Interessa a Vergara, refletindo sobre as suas monotipias e a inclusão de pigmentos na tela, coletar e fabricar histórias por meio da natureza. Não é só representação mas a natureza em si que se apresenta. A natureza não é só tema mas meio; é processo de construção de narrativas. O galho, a terra ou a folha que ocasionalmente surgem são indícios e testemunhos da história. Uma história que é escrita por imagens e objetos em vez de da escrita. Que guarda lembranças e sentidos de um território. São camadas de visualidade que se sobrepõem e se misturam continuamente. Suas pinturas mais recentes, em especial, revelam uma associação peculiar entre pigmento – a origem da cor ou a ligação mais primária entre pintura e natureza – e terra. A densidade própria do pigmento ou do pó de mármore traz uma memória da natureza. Não se trata de ilustração de algo mas uma “liberdade de improviso, movida pelo desejo de explorar acontecimentos poéticos inesperados”.[4] É peculiar esse balanço que Vergara constrói entre o que chamaria de uma magia do imprevisto e a objetividade de um pensamento de pintor. Eis a força dessas obras: sua capacidade de se mover por entre esses limites e permanentemente questionar as adversidades do mundo.
[1] Este texto é uma edição do ensaio publicado no folder da exposição “Natureza inventada”, realizada na Galeria Referência e no CCBB-Brasília entre abril e junho de 2019.
[2] OITICICA, Hélio [sem título]. In: VERGARA, Carlos. Carlos Vergara. Rio de Janeiro: Funarte, 1978, p. 16.
[3] Idem, ibidem.
[4] OSORIO, Luiz Camillo. Hüzün. In: VERGARA, Carlos. Hüzün. Rio de Janeiro: Contra Capa; Automática, 2008, s/p.
Felipe Scovino
Prospectiva
É preciso primeiro viver, para depois filosofar.
Lima Barreto
Não me peça perdão.
Nunca, nunca vou te perdoar, nunca vou esquecer as marcas que tenho e os olhares e as vontades e todas as coisas que você não sabe. Nunca vou perdoar o que você não sabe. E que você não tem como saber se não escutar.
Não me peça perdão, vamos assimilar possibilidades. Vou aceitar seus convites e vamos ficar bem. Vamos começar uma briga que já começaram por nós e não vamos fugir. Porque não é sobre a briga, estamos no território de suspensão proposta por nós aqui.
Sim, vai ser aqui, na Arte, com letra e sensação maiúscula. Vou seguir trocando, colocar você ao meu lado, perceber observação ativa e propor parcerias; é assim, juntando, que vamos. Escutando, querendo estar nos mesmos momentos, dividir espaço-tempo e percepções multiplicadas.
E vamos beber, beber dos momentos vividos e desfrutados. Beber pelas possibilidades perdidas e conquistadas, sorrir e chorar. Juntas e separadas. E vamos nos entender.
E assim, vou ver você arrancar do solo marcas de um tempo. Ver este solo banhado de sangue se deixar receber por você, mas nunca em silêncio. Meu poder e seu poder, vamos sim assumi-los.
Não é sobre perdão, nunca foi. É sobre afeto, sobre coragem de se deixar afetar. Sobre possibilidades de encharcar a dor de arte. De não esquecer o ritual para ser arte. De ser e não estar.
Nunca foi sobre perdoar, é sobre ser escutada e estimada. Assimilada antes do convite e percebida antes de ser destaque.
Carlos Vergara ao me convidar para estar nesta exposição, nestes trabalhos, em forma de texto e companhia, declara uma tratadística da conversa. Uma oralidade assimilada por multiculturas e multiverdades. Passar pelo processo, faz a arte ganhar contornos. Por uma construção de liturgias múltiplas para não se preocupar com o consenso.
Vamos no balanço, que antes fora do mar nos porões que arrastou muitas populações; que hoje vem também receber o leve movimento aqui, e cai levemente sobre o solo. Nos faz dançar em cima para que seja arte. A dor, a cor e a troca. E nós.
Keyna Eleison
Sudários
Tudo começou ainda nos anos 1970 com a vontade de Carlos Vergara olhar para fora do ateliê e realizar uma obra que contivesse, a um só tempo, planejamento e acaso. Essa ida para o mundo sempre buscou gravar uma forma, cor ou paisagem, em um pedaço de tecido ou papel e, nesse mesmo lance, instaurar um acontecimento poético inaudito, atravessado pelo signo da surpresa. Se esse método já teve como desdobramento grandes pinturas, os trabalhos batizados de Sudários seriam os momentos mais introvertidos desse processo que faz do mundo uma espécie de coautor da obra.
Desde o final da década de 1990, Vergara viaja levando consigo pigmentos naturais e lenços de bolso que lhe servem como suporte para pequenas monotipias. Regiões tão diversas quanto São Miguel das Missões, São Thiago de Compostela, Salvador, Londres, Nova York, Turquistão, Pompeia e Capadóciajá fizeram parte desse mapeamento poético empreendido pelo artista. Assim, cada lenço traz consigo vestígios de diferentes tempos e espaços, bem como ritualiza uma repetição. Estamos diante de presenças ausentes perpassadas pela memória de cada lugar visitado. Marcados pela discrição, atuam contra a aceleração característica da nossa época e a favor de um olhar mais paciente e cuidadoso.
Já foi escrito certa vez que a obra de Vergara encarna uma admiração pelo mundo que difere do olhar desconfiado, cético, próprio da política liberal. Ao contrário, seu trabalho estaria alinhado com uma espécie de política libertária, amorosa, marcada pela constante capacidade de admirar.[1] Essa abertura para admiração pressupõe um certo tempo, uma certa disponibilidade, uma certa qualidade da atenção em tudo diversa desta, dispersa e ansiosa que nos acossa cotidianamente. Cada sudáriopode ser visto como um chamado para uma ligação com o mundo, em suas camadas visíveis e invisíveis, em tudo diversa a essa que sequestra os sentidos e as subjetividades. Ao incluírem momentos de parada, ao buscarem captar aquilo que murmura, ao devotarem um olhar cuidadoso para acontecimentos coadjuvantes, os sudários de Vergara surgem como índices de uma deriva antiturística capaz de desvelar “cosmogonias ao rés do chão”.[2]
[1]Ver Luiz Camillo Osório. Da pintura e do sagrado – a contradança da ternura. In: Paulo Sergio Duarte (org.).Carlos Vergara – pinturas. Rio de Janeiro: Automatica, 2011.
[2]Ver Luiz Guilherme Vergara. Sudários: utopias ao rés do chão. Rio de Janeiro: Automática, 2014.
Luisa Duarte
CARLOS VERGARA
É toda uma tradição de pintura de paisagem que está por trás de muitos trabalhos de Vergara. Uma paisagem íntima do mundo, que busca revelar não o detalhe pitoresco, mas o sentimento das coisas. As telas, lenços e monotipias de Vergara são feitas com uma percepção acurada do mundo. Uma percepção que advém de um mergulho sem boia na experiência do desconhecido.
Ele imprime o chão na parede. Saturando certas superfícies de pigmento ele transpõe a pele do solo para o suporte artístico. A sua técnica não é manual, mas visual: é mais uma questão de deixar ver do que de fazer. De suas viagens ele traz memórias e sinais que afetam o olho e o tato simultaneamente. Suas cores são mais texturas do que luz. De dentro dos tons terra, azuis e amarelos, pulsa um tempo próprio e misterioso.
O artista viajante não é uma questão de mero deslocamento pelo planeta, mas uma inquietação interna de lidar com o não sabido. Levar nessas viagens pequenos lenços brancos é uma forma de responder à urgência desses encontros. Eles estão sempre dobrados no bolso esperando o momento poético. Pigmentar o detalhe, retirar sua pele e transferi-la para o lenço, faz desses encontros algo palpável. Vergara é um artista de afetos fortes que não se preocupa com a depuração formal. Ele quer traduzir formalmente uma emoção de modo a fazê-la tocar um outro olhar, distante no tempo e no espaço.
O lenço, assim como um clique fotográfico, quer explorar esses momentos na sua fugacidade e na sua impossível fixação. Busca o registro impresso de um afeto, de uma tonalidade afetiva que o tocou, mas que não é reproduzível. Dessa impossibilidade vive o artista, ela alimenta a incessante busca por novos caminhos poéticos. Vergara é incansável na busca pelo desconhecido que salta para dentro do poético como uma flecha que nos mira – e que escapa se não estivermos disponíveis para saltarmos junto.
Luiz Camillo Osorio
Sudários, Carlos Vergara
De Saintes-Maries-de-la-Mer a Sainte Baume – 2019
Desde cedo, o artista brasileiro Carlos Vergara sentiu a necessidade de escapar do isolamento do seu ateliê, das galerias e dos museus.Sem nunca se satisfazer com a utopia e a abstração,ele procurou romper com a prática da arte enquanto luxo desconectado dos problemas do mundo.Ele tem consciência de que o foco da arte se deslocou de uma função de representação para uma função de relação com o mundo e com os outros.Para o artista, o espaço da arte é a vida,dentro da própria vida.O objetivo da arte já não é produzir mais uma imagem, mas criar um espaço e um tempo de experiência relacional.Em seu trabalho, ele tenta reformular a inserção do homem em seu meio, reconectado ao mundo por uma base filosófica e espiritual.
Antes de descobrir Saintes-Maries-de-la-Mer e Sainte Baume na França em maio de 2019, as viagens experimentais de Carlos Vergara no âmbito de seu trabalho sobre os sudários o levaram durante anos à Índia, à Capadócia, ao Cazaquistão, passando pela descoberta das tribos Guarani em São Miguel das Missões, bem como pelo Pantanal e por Salvador da Bahia.
“Impressões do suor da terra – vestígios de utopias ao rés do chão”, assim ele descreve esse trabalho em seu livro publicado em 2014 por ocasião de sua exposição no MAC de Niterói.ComSudários ele se alinha perfeitamente com as grandes correntes que marcaram o pensamento a partir das revoluções artísticas do século XX : a fronteira entre um quadro e uma escultura desvanece, o mesmo ocorrendo na relação de todas as disciplinas tradicionais entre si.Os sudários são ao mesmo tempo performance, colagens, apropriação, desenhos …
Tudo pode ser arte depois dos ready-made de Marcel Duchamp ou ainda do movimento Gutai no Japão, que abriu caminho para a primazia do gesto do artista sobre o objeto criado.Vergara não pinta, não esculpe, não usa ferramentas.Ele estende sobre um solo cuidadosamente escolhido um simples lenço de algodão branco, tendo antes polvilhado pó de carvão de modo a revelar as superfícies.Às vezes, ficam colados ao lenço fragmentos de capim, pedrinhas e mil outras lembranças espalhadas pelo solo.A obra é figurativa, talvez hiper-figurativa, mas também totalmente abstrata, um mero vestígio evocatório, uma abertura para o invisível feita de elementos subtraídos ao solo dos locais escolhidos.
Da mesma forma, Carlos Vergara se aproxima dos artistas da land-art que conferiram valor artístico à caminhada.Vergara vai ao encontro dos lugares que escolheu, lugares carregados de história e de histórias, lugares às vezes imersos na natureza.
Ele também nos faz pensar na provocação de John Baldessari, que em 1971, na frente das câmeras, limitou-se a levantar o braço ou a movimentar-se, repetindo:“ I am making art” (estou fazendo arte).Depois de pressionar obstinadamente ambas as mãos sobre o lenço, de modo a capturar os vestígios dos lugares, Vergara se levanta e mostra para a câmera a monotipia (1) obtida.A obra final que será exposta pode ser o próprio sudário, uma série de sudários ou ainda o sudário contextualizado, ou seja, ao lado de uma fotografia ou de um vídeo mostrando seu lugar de origem.
“A arte se abre à prática de um modo de ser e de fazer.Nunca ela esteve tão próxima do homem, talvez nunca se tenha a tal ponto revelado como guia para ver, viver, pensar, ser, agir verdadeiramente, isto é, poeticamente”,indica Guillaume Logé em seu livro La Renaissance Sauvage, L’art de l’Anthropocène (A Renascença Selvagem, a Arte do Antropoceno, em tradução livre).Foi o que Carlos Vergara assimilou perfeitamente em sua obra Sudários.Não é uma experiência religiosa que ele quer oferecer ao público, mas a descoberta do inefável.“Quero que o espectador experimente o invisível através do visível. Quando fragmentos de lugares são deslocados para o âmbito do museu, outras possibilidades de significados se constroem”, diz o artista, convidando-nos assim a viajar e a pôr nossa imaginação para funcionar.Saintes-Maries-de-la-Mer, Sainte Baume e todos os outros lugares visitados não são para ele peregrinações no sentido próprio do termo, mas a expressão da vontade de captar esses momentos de graça em que o Homem se volta para aquilo que é maior do que ele, que o transcende, seja isto verdade ou não.Para Carlos isso não importa (2).
A obra é a transformação de “figuras de forças” (François Lyotard, TRANSformateurs Duchamp, 1977), ela mostra aquilo que vive e trabalha na invisibilidade das ligações e produz formas.O Homem está no centro da lógica que aciona e liga os seres entre si, os sentimentos, os fenômenos, os elementos naturais … É disso tudo que nos fala Carlos Vergara.
Ele procura se transfigurar e deseja que seus sudários advenham pela Natureza e incorporem a Origem.Seu gesto é iniciático.Sua obra se funde com aquilo que absorve e provém do que captura.Sua arte fala de comunhão no sentido religioso de absorção de um corpo como uma eucaristia com as espécies da Natureza/Deus.Seus sudários se deslocam da representação à manifestação da trama das relações invisíveis que governam os fenômenos visíveis.O objeto resultante é menos importante, em termos de processo dinâmico, do que aquilo que é revelado pelo dispositivo ou o ambiente criado pelo artista.
- Monotipia: A monotipia aplicada à estampa, é uma técnica de impressão sem gravura através da qual se obtém uma prova única. Geralmente consiste em pintar com tinta tipográfica, tinta a óleo ou guache, sobre um suporte não poroso como vidro, metal ou plexiglas. Carlos Vergara, quanto a ele, baseou sua técnica no pó de carvão, que aplica nos relevos do solo. A pintura é em seguida prensada com o papel que acolhe a prova. Carlos Vergara exerce uma pressão com os dedos em determinados lugares e obtém diferentes tipos de preto. A monotipia não é uma “gravura” no sentido estrito do termo, mas uma estampa (obra obtida após prensagem manual ou mecânica).
- Por exemplo, o famoso sudário de Turin, que mostra a imagem borrada de um homem que apresenta vestígios de ferimentos compatíveis com uma crucificação. Embora seja objeto de devoção popular e considerado um ícone pela Igreja Católica, a datação feita com carbono 14 comprova sem ambiguidade sua origem medieval (séculos XIII – XIV). Vergara se deparou com diversos fenômenos de mitologização durante essa viagem ao sul da França. As diferentes versões em conflito tornam confusas as histórias da chegada das Santas e da transferência de suas supostas ossadas de Santes-Maries para Vézelay para serem preservadas e suscitam dúvidas quanto à veracidade das datas de chegada dos ciganos. Mas o que interessou Carlos Vergara foi a energia daquilo que talvez sejam apenas mitos.
Marc Pottier, julho de 2019.
Uma memória não se apaga facilmente. A descoberta do Cais do Valongo, em meio aos escombros do processo de revitalização da Zona Portuária do Rio de Janeiro, é um grito contundente contra a tentativa de esquecimento daquela que pode ser considerada a nossa maior tragédia: o tráfico transatlântico de africanos escravizados.
As monotipias que Carlos Vergara produziu sobre as pedras do sítio histórico são obras de uma sensibilidade extrema e de uma beleza visceral, que lançam um outro olhar sobre essa trágica memória. Não privilegiam a dor ou o flagelo. Não reificam uma história dos africanos e seus descendentes no Brasil como vítimas passivas da escravidão; ao contrário, revelam o Cais do Valongo como um espaço de superação e luta. Mostram que essas pedras possibilitam outras formas de existência. Um exemplo disso é o seu reconhecimento pela Unesco como patrimônio da humanidade.
Aqui se encontram dois eixos importantes do trabalho do artista. Um deles é a preocupação e a intervenção artística em patrimônios históricos que nos fazem repensar o papel desses lugares de memória, como foi o caso de sua emblemática produção sobre as missões jesuíticas no sul do país. Outro, é o seu olhar sobre a negritude carioca, principalmente no que diz respeito às imagens que produziu sobre o carnaval da cidade, protagonizado principalmente pela população afrodescendente.
O fato desses eixos de reflexão e produção artística permanecerem em seu trabalho não significa nenhum tipo de revisionismo. Como o próprio nome da exposição “Prospectiva” sugere, Vergara está sempre lançando seu olhar adiante, sem nenhuma preocupação em se voltar para trás e rever seus passos, o que não impede uma coerência presente em suas obras, ainda que se renovem e que criações absolutamente inéditas surjam a todo o momento.
Numa imensa operação que envolveu artistas, curadores e colaboradores, Vergara liderou uma ampla produção de monotipias, cobrindo o Cais do Valongo com nove módulos de pano, imprimindo as marcas de um patrimônio sensível, intervindo na história por meio da arte, promovendo uma ação que nos faz pensar sobre o legado da diáspora africana no chão em que caminhamos.
Maurício Barros de Castro
Estranha proximidade
Vergara prossegue, com generosidade, a investigação das monotipias; método que explora há várias décadas oferecendo ao nosso olhar surpresas que demonstram a persistência da pintura na arte contemporânea. Permito-me transcrever aqui, extratos de um texto que publiquei, em francês, por ocasião de uma exposição do artista, em Paris, em 1995, com o título “Étrange proximité”.
“Em um país onde uma parte da arte contemporânea se relaciona direta ou indiretamente, por interação ou reação, com o capítulo construtivista que marcou e ainda marca sua arte, a pintura que Carlos Vergara desenvolve desde 1989 produz certa estranheza. Essa diferenciação é conseguida pela maneira que introjeta questões locais. Este é o paradoxo: é estranho porque é uma pintura brasileira sem se fixar nos estereótipos da província. Quando rejeitamos os ícones que uma determinada figuração explorou produzindo imagens exóticas de si mesmo, chegamos a admitir o esforço de reflexão de obras construtivistas e pós-construtivistas que tomaram como orientação uma ordem conceitual em que qualquer elemento local é quase despercebido por causa das várias instâncias mediadoras. Mas como, essa pintura pode ser o correio de uma estranha proximidade? Lembro-me de um pequeno texto de Walter Benjamin, entre outros textos curtos nos quais ele narra seus sonhos, cuja ansiedade se aproxima da sensação comprovada por alguns brasileiros diante dessas pinturas. No sonho, ele estava na frente de uma parede de pedra enorme, tão perto que ele não conseguia ver toda a construção; sua angústia aumentou porque sabia que essa pedra na parede era a Notre Dame. Estava ao lado da catedral e não conseguia vê-la porque não era possível observar o todo – um verdadeiro pesadelo. Se minha memória não me trai, Maurice de Gandillac traduziu essa pequena história com o título Proche, trop proche.
“Esta pintura de Vergara carrega essa proximidade em excesso. Em primeiro lugar, o seu procedimento sublinha a sua natureza imediata […]
“A cor e o caráter imediato do procedimento não podem nos satisfazer para compreender essas pinturas, lá são igualmente escala e inversão inteligente. Do ponto de vista visual, terra, ferro, ocre, tons de óxido de ferro avermelhado não são suficientes para transportar uma parte significativa do Brasil em suas telas. Falamos sobre a paisagem, mas as pinturas sugerem, é claro, um interior. Duplo movimento carregado de sentido: trazer para o lugar da arte, como uma cena interior, os valores cromáticos e a extensão do exterior. Evocar que certos valores habitam ainda, incertos, como uma subjetividade turva, a consciência cultural do país.”
Agora, em 2019, as telas tanto se enriquecem cromaticamente, como se submetem a uma rigorosa economia, reduzidas ao preto e ao branco, quando imprimem os trilhos do bonde de Santa Teresa, bairro com o qual convive no dia a dia no seu ateliê. Temos ainda, os lenços ou “Sudários”, como Vergara os chama. Para os mais velhos, é mais um momento de prazer revisitar essa obra e conhecer as telas inéditas. Para os mais jovens, é aproveitar o extenso ensinamento aqui presente.
Rio de Janeiro, 9 de setembro de 2019.
Paulo Sergio Duarte