High-tech mítico: Cazumbá recebe as máscaras de proteção

GÊ VIANA
Paço do Lumiar – Maranhão 

Foi anunciado que teríamos a morte do boi de Cazumbá do mestre Apolônio. Subimos a extensa rua Tomé de Sousa, no quilombo Liberdade, e avistamos uma multidão dividida por cordas. 

Notícia falsa! Não aconteceria a morte do boi, e sim a morte dos bichos. Ali, se fazia um corredor para que os bichos, com suas vestes e caretas, pudessem circular. A interpretação desse acontecimento estava no ato de brincar, dançar, se desviar e se manter em pé. Ali, tinha um personagem que laçava os brincantes, mas nenhum bicho gosta de ser preso ou pego. 

Precisava marcar um encontro com Jandir Gonçalves, sessenta anos de olhares e caminhos da nossa cultura. Com ele, aprendi que não existe um todo nem uma verdade absoluta diante de tantas complexidades, ainda mais dentro do nosso território de  vivências, contextos e realidades diferentes. Ele, Jandir, me apresentou as investigações de Luciana Carvalho, uma pesquisadora do “auto do boi”, que é o momento em que se faz a morte dos bichos. Segundo ela, a diversidade desta representação pode ser de indivíduos carnais a “visagens, santos, bichos e encantados”. 

Nessa mesma noite dos bichos, fomos surpreendidos por gritarias de crianças: “Vou te pegar! Corre, segura ele! Pá!”. A imagem delas, com rostos encapuzados, com suas próprias camisas, formava um clã de Cazumbá e um clã de esconde-esconde. E toda essa narrativa passou, rapidamente, dentro de mim em um estado de zonzeira, frio e medo. 

Com a necessidade de identificar as relações do uso da máscara de Cazumbá, a partir do desejo de falar de um momento que não seja de colonização de nossos corpos, conheci Lúcia, em Itamatatiua, um povoado de Alcântara, no Maranhão. No fundo do quintal, uma plantação de cana-de-açúcar cuidada por ela, iniciada pelo seu pai para alimentar os animais, e que mais tarde serviria de alimentação para os festejos oferendados a Santa Tereza D’Ávila, protetora do território. 

Lucia vestia a máscara de proteção feita por mim, modelada no rosto de Karlene enquanto preparava a alimentação de seus dois filhos. Se a selenita tem o poder de curar e limpar, comecei a experimentar formas de dissolver a selenita no caldo de cana e obter suas propriedades curativas, para que, no outro dia, eu pudesse massagear/despejar as mãos e os pés de Lucia. 

Era o início de germinar, trazer visualmente a beleza afrofuturista maranhense à genealogia high-tech, produzida por fitilhos, CDs e bordados, e que mais parecem luzes  nas placas e torres presentes no São João do Maranhão. 

Alguns detalhes apareceram, timidamente, nessa ficção, com os ensinamentos de Zimar,  brincante de careta de Cazumbá, no convívio dentro de sua casa e na capoeira no seu quintal. Era preciso abrir caminhos de marimbondos com Zimar, e me lembro de vê-lo saindo  de seu quarto, meio escuro, já que ele quase nunca abre a janela, e pensei no quarto de  minha bisavó (mãe nega, sem enxergar, se baseava no tempo, com a ajuda das brechas de sol que vazavam a rede chegando no seu corpo até sumir. Esse foi o modo que ela criou para saber das horas). 

Zimar trazia a primeira bata de ráfia usada para brincar com o boi, encardida do tempo, costurada em retalhos e cores das marcas alimentícias. Roupas e máscaras de Cazumbá, feitas na fé, dando as mãos para bordar tempos no algodão.  

Perguntei a ele o que era cazumbá. Resumidamente, ele falou: “É um palhaço, uma coisa feia, que anima o boi. Sem cazumbá não tem graça, faz doidices. É bom ser cazumbá”.  Sei que existem outras explicações sobre o ser mítico e espiritual do Cazumbá, mas gosto de ficar com essa memória de Zimar, meio sorridente falando o seu próprio significado. 

Quando estávamos em presença, nossa comunicação era atravessada pelas mãos. Lembro que, poucas vezes, mirei seus olhos. Ele, ali, batendo papel na água para modelar as máscaras de faces horrorosas, é assim que ele gosta de tratá-las. Depois de um AVC, as  frequências de seu corpo perderam o equilíbrio ao talhar com precisão as caretas de tronco  da árvore de jatobá. Hoje, modela com fogo os capacetes velhos em gestos que buscam resolver a vida através do fazer. Foi preciso se reinventar e produzir para si as ferramentas: o espanador, a lixa, o furador, o cabo da faca. 

Expliquei a ele que eu vi uma fotografia tirada por Jandir Goncalves, da “Turma de Zé  Mauro”, em Viana. Eram dois cazumbás que pareciam passear no terreiro de chão cru, usando camisas no rosto, a máscara ninja. Mas ele não reconheceu. Foi preciso pegar uma camisa que estava na mesa, já usada por ele, e pôr no meu rosto.

Amarrei como se fosse a máscara, imediatamente ele entrou no seu quarto falando que era comum os cazumbás a usarem. Esticou uma toalha de prato, de tecido fino, com um aspecto usado, e com pequenos círculos cortados, rasgos que representavam a boca e o nariz da máscara. O jeito como ele furou o tecido se assemelha à cara de animal que Zimar usava. Esse tecido para proteger o seu rosto e não dar choques térmicos quando estivesse dançando com o rosto coberto pela careta maior. 

Como a máscara ninja ultrapassou culturas diversas até chegar no alto do boi, na baixada do Maranhão? Isso eu não sei, mas entendo que a cultura não é fixa. 

Trabalhadores, de modo geral, têm a prática de proteger seus corpos através dessa vestimenta: nos plantios de cana de açúcar, nos diversos plantios e roças, no anonimato dos Black Blocks, nos agricultores do Oriente Médio, que vestem os keffiyeh para a  proteção de suas cabeças, nas cabeças de fiéis em alguns lugares da baixada maranhense, que as usam como movimento de prece, brincadeiras, batuques, enfim, muitos usos são dados a ela. 

Meses antes de me encontrar com Zimar, estava exausta por uma morte simbólica. Acordava com pesadelos que revelavam a notícia da partida de uma amiga, eu, ali, em um transe entre o dormir e o querer acordar, olhava para o alto e avistava um barco flutuante virado para baixo, cheio de cofos de palhas que não caíam. 

Meu avô Cazuza nasceu em Pequizeiro no baixo do Alto Parnaíba, rodeado de um reservatório de palmeiras babaçu, tinha a sabedoria de produzir cofos, como os que os  cazumbás usam amarrados na cintura para dar molejo na dança ou ser reservatório de  objetos de uso comum, como cachaça, faca, bonecas e suas roupas. 

Camisa, pano de prato, pedaço de retalho, toalhas de mesa, proteções por debaixo da  careta de cazumbá. No meu imaginário, elas têm funções simples: poder ajustar a máscara de cazumbá em seu rosto e não deslizar com o suor, ou não deixar a alma do cazumbá vagar solta por aqui. No fundo, ela é usada de forma muito espontânea.

O desejo de estar contando esses relatos, além da pesquisa pelas máscaras ninjas, é continuar falando do meu povo, é seguir o “amolar os gomos das mãos”. São desejos que tenho carregado desde as primeiras experiências, são convites para um pousar e lavar os pés de mulheres que manejam suas plantações. 

A frase “amolar os gomos das mãos” diz seguir estreitos caminhos, com punhos ligeiros, junto de minha avó Maria até Muriá. Para brocar a terra, não lembro dela usar algo para proteção no rosto, o que lembro é que ela passava um pano em volta da cabeça, deixando o cair no pescoço. Tinha a rudia, que era usada para abastecer o equilíbrio dos cofos cheios de coco de babaçu. 

Faz lembrar fartura. Famílias foram alimentadas pelo fazer de linhas e meias de roça: arroz, maniva, e por aí adiante. Esperar o feijão ficar pintado para colher, faz parecer certo aguardar o tempo da cheia. Com quantos alqueiros se levanta uma casa? 

Eu fui puxada para fora de minha mãe, para sentir o primeiro vento nas narinas. Três mulheres, três forças, seis mãos. Darica, mãe de parto de muitas gerações, vibra, até hoje, a vida. Na história de nossa gente as mãos nunca deixaram de ser amoladas, elas anunciam nossa existência e as diversas tecnologias inventadas a fios e forças. 



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