CARLOS PRIMATI
A revolução nas artes nem sempre ocorre a partir de um conflito. Pode surgir em um cenário de estagnação, de marasmo, de entreato. Ou mesmo de terra arrasada. Pode surgir inclusive sem que seja plenamente notada, ou que se dê pouca importância no momento – afinal, muitas vezes a vanguarda só é compreendida depois de assimilada pelo cenário ao qual se mostrava estranha.
No cinema independente, marginal, subterrâneo e de vanguarda, aconteceram transformações significativas – em forma, conteúdo e produto – a partir de nomes como Roger Corman, Kenneth Anger, Herschell Gordon Lewis e John Waters, para citar apenas alguns poucos. No Brasil, Mojica, Sganzerla, Bressane e Ivan Cardoso perverteram, subverteram, instigaram e cutucaram feridas de um cinema às vezes por demais comportado, careta, submisso e letárgico.
O “cinema brasileiro”, é bom que se diga, era inexistente na primeira metade da década de noventa, período em que o desgoverno Collor ceifou todos os mecanismos de fomento, produção, regulamentação e distribuição de audiovisual no país. E foi às bordas desse terreno árido e praticamente infértil que brotou a obra do catarinense Petter Baiestorf, o cineasta que tornou nacionalmente conhecida a cidadezinha de Palmitos (onde nasceu e ainda mora), com seus pouco mais de 15 mil habitantes.
Fenômeno das produções S.O.V. (shot-on-video), como ele próprio faz questão de enfatizar, Petter começou a rodar filmes de terror e ficção científica aos 19 anos. Criou a produtora Canibal Filmes e foi logo emendando vários longas-metragens (gravados em VHS): Criaturas hediondas (1993), Criaturas hediondas 2 (1994), O monstro legume do espaço (1995) e Eles comem sua carne (1996), entre outros. Todos se tornaram clássicos e começaram a escrever um capítulo marginal na trajetória do cinema de gênero no país.
Embora de imediato seja identificado com o horror, pelos temas abordados, seu conteúdo e a estética gore, o cinema de Petter é fundamentado na anarquia narrativa, no ataque aos valores tradicionais e noções genéricas de “bom gosto”. É, acima de tudo, um cinema de afronta e abjeção, mais afinado com os movimentos marginal, udigrúdi e de invenção (e, mais adiante, com a pornochanchada e o sexo explícito) do que com fórmulas de filmes de gênero. O próprio baixinho Petter, falando ligeirinho com seu indefectível sotaque sulista (onde o duplo ‘r’ tem som de ‘r’ simples), costuma dizer que seus filmes “não são de ‘horor’, eu faço comédia avacalhada, mas se quiserem chamar de ‘horor’ também pode, desde que assistam!”.
Tendo Mojica como modelo de cara de pau e ousadia e Ivan Cardoso como uma espécie de guru do esculacho, Petter conjura uma respeitável bagagem cinéfila (a exemplo de Tarantino, o catarinense também cresceu dentro de uma locadora). Ray Dennis Steckler, Al Adamson, Joe Sarno, Jesús Franco, Christoph Schlingensief e Eddie Romero são apenas alguns dos cineastas mais obscuros que alimentaram o repertório de Petter, juntamente de mestres da arte cinematográfica de todas as épocas e tendências.
Figura singular no cenário underground, Petter é um agitador e incentivador de novos talentos (a exemplo de Lloyd Kaufman, da Troma, outro de seus mentores), e publicou com seu Manifesto Canibal – escrito em parceria do amigo Coffin Souza – uma espécie de manual de “como realizar cinema em tempos de crise e caos”. Ideologicamente, é uma espécie de releitura “gorechanchada” do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, peça fundamental dos Modernistas de quase um século atrás.
Petter seguiu despejando “fúria e raiva” criativa em outros filmes de terror e putaria, como Zombio (1999) e sua continuação Zombio 2: Chimarrão Zombies (2013), que rompeu barreiras ao ser exibido em Sitges, na Espanha, o prestigiado Festival Internacional de Cinema Fantástico da Catalunha, considerado um dos mais importantes do mundo no gênero.
O cineasta já teve seus canais banidos do YouTube e Vimeo (está num eterno entra-e-sai das plataformas), o que demonstra que seus filmes não perderam o poder de chocar – principalmente os mais agressivos e politicamente incorretos, como Vadias do Sexo Sangrento e Arrombada: Vou Mijar na Porra do Seu Túmulo. Mas seu cinema é também profundamente político e segue engajado em suas produções mais recentes, realizadas nas oficinas de produção de baixo custo que ministra pelo Brasil, como Beck 137 (2017) e 290 Venenos (2019).
Eu estava lá (e dizem que eu me diverti). Eu não costumo escrever sobre cinema na primeira pessoa – me soa pedante e ególatra (um pouco imaturo também) – mas considero que esse momento no tempo representou uma ruptura que pede um testemunho.
Meu primeiro contato com a obra de Baiestorf foi com Eles comem sua carne. O nome do catarinense já era mítico: circulava entre os jovens jornalistas culturais mais descolados de São Paulo – gente como Barcinski, Forastieri e Miranda. Eu estava no meio desse grupo muito empolgado e pouco ajuizado e, cópia vai, cópia vem, a tal fita chegou ao meu VCR. Eu, como qualquer um, não estava preparado para aquela mistura de gore extremo com humor espontâneo: numa das primeiras cenas, dois rapazes canibais, enquanto cortam a carne de uma vítima infeliz aprisionada no porão, conversam sobre decepções amorosas e um deles, sofrendo de paixão, desabafa: “Por que não é tão fácil que nem matar, hein? Matar é mais simples!” A cena – algo como O massacre da serra elétrica com diálogos de comédia romântica – me abriu toda uma possibilidade de enxergar um cinema independente possível no Brasil: feito com recursos precários, anticomercial e autoexilado em seu formato limitador, mas esbanjando sangue, tripas e, acima de tudo, um humor afiado, inconsequente e autoconsciente. Um gore tropicalista que canibalizava todo o cinema de horror visto até então.
O fenômeno Baiestorf coincidiu com esse período de inquietação e irreverência na mídia brasileira de cultura pop. A estética do “trash”, que buscava uma linguagem rebelde para se distanciar de tudo que soasse convencional, era um tema obsessivo para os jovens jornalistas em busca do novo. Foi o feliz encontro da notícia perfeita com a mídia que tinha gana de publicá-la.
Foi a época em que Mojica apresentava a sessão Cine Trash na Band; pouco depois surgiu a mostra Trash, em Goiânia (atualmente denominada Crash, pois o termo perdeu seu sentido original de transgressão, tornando-se agora apenas bobo). Havia articulações de movimentos jovens – do mundo do rock, das histórias em quadrinhos e do cinema – para criar espaços e divulgar trabalhos originais.
Petter estava na vanguarda disso tudo. Seus filmes estavam para o cinema assim como o fanzine para a imprensa profissional; a imagem do VHS era como o xerox desbotado em comparação ao 35mm. A originalidade e o talento, no entanto, eram mais latentes, mais singulares e mais brasileiro que a estética afetada de comercial de perfume das “conspirações” do chamado Cinema da Retomada.
Na cronologia do horror nacional, Petter retomava a partir de onde Fauzi Mansur, um mestre dos filmes de “sexploração”, havia parado em 1990, com suas produções faladas em inglês, Satanic Attraction e Ritual of Death, com sangue e tripas a níveis raramente vistos no cinema brasileiro. Petter passou ao largo da Retomada oficial; seguiu um trajeto paralelo em que espaços tiveram que ser criados para receber suas obras (um deles foi a HorrorCon realizada em São Paulo em 1995, um marco nos eventos de horror no país), e trinta anos depois é celebrado pela Cinemateca do MAM com uma retrospectiva que o reputa como um autor genuíno.
Em 1993, o nome de Petter Baiestorf começava a se espalhar como uma figura exótica que era ver-para-crer. Três décadas depois, preserva sua mística lendária, e continua incomparável naquilo que faz. Seja horror, horor ou comédia.
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CARLOS PRIMATI é crítico, curador e pesquisador especializado em cinema fantástico, com ênfase na produção
brasileira em horror, ficção científica e fantasia. Escreve sobre cinema de gênero para diversos livros, catálogos de
mostras e para lançamentos em DVD e Blu-ray.
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