O rio corre para o mar: Anavilhana na Cinemateca do MAM

MARIA CHIARETTI

Aboio de Marília Rocha

A parte do mundo que me pertence de Marcos Pimentel

Acácio de Marília Rocha

Me lembro da experiência marcante de assistir à pré-estreia de Aboio (2005), de Marília Rocha, num cinema de rua belo-horizontino que já desapareceu. Voltando à paisagem do Sertão que o cinema novo imortalizara em seus inícios (Vidas Secas, Os Fuzis, Deus e o Diabo na terra do sol) e herdando alguns traços da videoarte produzida nos anos 1990, Aboio parecia no entanto inaugurar uma nova forma de olhar. Fundada naquele mesmo ano por Marília, Clarissa Campolina e Luana Melgaço, a Anavilhana surge na casa que abrigava o coletivo Teia na Rua Rio Negro (Belo Horizonte). Em certa medida, esse espaço de pesquisa em audiovisual (a palavra “produtora” não designa com precisão o trabalho da Anavilhana) herda um formato inaugurado pela Teia, de cuja história todas as três fizeram parte. Com um método de criação fundado em cumplicidade e troca entre os colaboradores, a Teia era uma espécie de cooperativa cinematográfica contemporânea que existiu entre 2002 e 2012 que contava com a presença de Clarissa, Luana, Marília, Helvécio Marins Jr., Leonardo Barcelos, Pablo Lobato e Sérgio Borges. Criando novos modos de produção, o coletivo de cineastas, artistas e produtores, respondia criativamente ao refluxo do cinema brasileiro mais independente no início dos anos 2000.

Nesta bela homenagem que a Cinemateca do MAM rende à Anavilhana, o público tem uma rara oportunidade de assistir a um grupo de filmes que renovam o cinema brasileiro pós-retomada: documentário que aposta na visualidade das imagens (Aboio), filme-dispositivo (Notas flanantes), filme que expõe sua escritura (A falta que me faz), filme ensaio (Acácio), ficções na fronteira do real (Girimunho e A cidade onde envelheço). Anavilhana empresta seu nome do Arquipélago das Anavilhanas (Rio Negro, Amazonas) e constitui um espaço de encontro entre muitas instâncias de colaboração. São notáveis as trocas entre Marília e Clarissa em filmes realizados pela primeira e montados pela segunda: Aboio e Acácio. Além disso, Clarissa foi diretora assistente em A falta que me faz e Marília colaborou com o texto de Notas flanantes. Chama a atenção a quantidade de filmes realizados por Clarissa em parceria, com Helvécio Marins Jr., ou com os cineastas fundadores do coletivo Alumbramento, como Luiz Pretti e Ivo Lopes Araújo.

Com exceção de Aboio e Notas flanantes, todos os filmes das duas cineastas contaram com Luana Melgaço na produção – como diretora de produção, produtora executiva ou associada. Mas o encontro entre as três vai muito além das funções passíveis de crédito. Sua interlocução impulsiona o surgimento de novos projetos, passa pela escritura dos roteiros, pelos debates sobre formatos de produção, pelas diversas versões de montagem e chega no compartilhamento da vida fora-de-quadro. Aqui a clássica função de produtor não tem lugar. Os filmes dependem de um trabalho coletivo, cuja partilha está expressa na sua própria fatura.

Dadas as desigualdades na presença de homens e mulheres no ambiente do audiovisual, não podemos pensar a Anavilhana separada dos movimentos feministas. Como escreve Sara Ahmed, “um movimento feminista é um movimento político coletivo. Muitos feminismos significam muitos movimentos. Um coletivo é aquele que não fica parado, mas que cria movimento e é criado por ele.” Apesar de tudo, três mulheres fundaram um espaço para criarem juntas filmes que são verdadeiras moradas feministas. Anavilhana é espaço de encontro entre as fundadoras e o mundo, e seus filmes refletem exercícios de alteridade, abordando essa problemática a seu modo. 

Apesar da pandemia, a produção de filmes da Anavilhana se reinventou. Convidada por grupos de teatro, Clarissa Campolina dirigiu Partida de Vôlei à Sombra do Vulcão, em co-produção com o Grupo Galpão, e Farol de Neblina, websérie de quatro episódios co-dirigida por Yara Novaes, transpondo o espetáculo teatral Neblina. Operando essa passagem para o teatro, a Anavilhana parece dar um passo à frente num cinema que encarna a coletividade, realizando filmes cuja potência reside no “jogo” dos atores, o que por sua vez resulta em desdobramentos originais, em termos de invenção narrativa, formal e gestual. 

Rever os filmes realizados pela Anavilhana lado a lado é navegar pela história do melhor cinema brasileiro recente.



Maria Chiaretti é doutora em teoria e história do cinema pela ECA-USP, programadora e integrante da equipe da Ubu editora. 

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