Sergio Santeiro e o cinema documentário

YVONNE MAGGIE

Sergio Santeiro

Em 1975, nove anos depois de ter assistido ao filme “Paixão” de Sergio Santeiro, uma interpretação radical do golpe de 1964, eu publicava o meu livro de estreia, Guerra de orixá. Sergio foi um dos leitores de partes do trabalho e incentivador em muitos momentos da escrita no tempo em que eu ainda não havia desenvolvido o amor próprio em bases suficientemente fortes para aguentar críticas. Quando leu o texto publicado me disse: “Você não acha que seu livro é uma interpretação do golpe de 1968?” Eu não havia pensado nisso, mas talvez a realidade tenha explodido na minha descrição, como ele diz no seu belo e importante artigo “A voz do dono – o conceito de dramaturgia natural”. 

Descrevi em “Guerra de orixá” a história de um terreiro de umbanda no Rio de Janeiro e contei o que vi e ouvi do nascimento ao cisma e fim do centro espírita Caboclo Serra Negra. Foi uma história que se passou num sobrado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Ninguém falou em golpe, mas, de fato a briga que gerou o fim da casa foi um golpe, uma guerra de orixá, uma demanda, como os personagens da história definiam o que estava se passando ao longo dos poucos meses de existência do grupo. A leitura do amigo me deixou mais apaziguada depois de críticas que recebi por parte de muitos colegas que me acusavam de ter revelado o lado do conflito em vez de ter enfatizado os aspectos de consenso do grupo religioso.

Neste mesmo ano de 1975 Cosme Alves Netto, diretor da Cinemateca do MAM por décadas – 1964 a 1985 – tendo transformado o espaço em ponto de encontro e discussão durante a ditadura, me convidou para organizar uma mostra sobre cinema documentário e religião popular no Brasil. Durante semanas frequentei a Cinemateca e com ajuda de Cosme, grande articulador e profundo conhecedor do cinema brasileiro e seus autores, vi praticamente toda ou quase toda a produção de filmes documentários sobre religião no Brasil. Organizei a “Mostra Filmes Etnográficos sobre Religião Popular” com esmero convidando o autor do filme e um antropólogo para comentarem e debaterem os temas levantados em cada um dos curtas exibidos. Foi um momento mágico porque ao longo da mostra a Cinemateca reuniu centenas de jovens e não tão jovens que discutiram aqueles filmes com paixão. 

Naquele tempo da ditadura militar era proibido reunir muitas pessoas em algum ambiente, fechado ou não, a fim de promover debates. Como o assunto era religião e a organizadora uma antropóloga talvez não tenha chamado tanto a atenção dos censores e da repressão. Tenho certeza que se algo por acaso aconteceu, Cosme soube me proteger e proteger todos os que vieram ali instigados pelo tema, pelo cinema brasileiro e pela antropologia que se renovava. 

Os debates foram curiosos, mas o que me marcou profundamente foi ter lido o artigo A voz do dono – conceito de dramaturgia natural escrito por Sergio Santeiro neste ano de 1975 sobre o tema do cinema documentário ainda em versão não impressa e que publiquei no folheto de divulgação da Mostra de Filmes etnográficos sobre religião popular.

O artigo, publicado em 1978 na revista Filme e Cultura n. 30 em 1978 e depois republicado na Revista Comunicações do Iser, Ano 3, n. 10, outubro de 1984 e reproduzido em ABD 30 anos (Associação Brasileira de Documentaristas), serviu de base para muitas reflexões sobre cinema documentário e influenciou Jean-Claude Bernadet em seu livro Cineastas e imagens do povo. O artigo discute o cinema documentário depois do surgimento do som direto no qual o conjunto de imagens sonoras passa a constituir uma unidade autônoma e dotada de significado pleno, como nos diz o autor. É neste artigo que Sergio desenvolve a base do conceito de “dramaturgia natural”. Atores naturais são os personagens reais, os entrevistados que circulam diante das câmaras, as vozes dos que falam e representam consciente ou inconscientemente as suas elaborações sobre a vida ao seu redor. A realidade explode no quadro porque os atores naturais fazem o papel inesperado de revelar o seu ponto de vista, quer com suas categorias nativas, quer com suas ações diante do pesquisador – ou do documentarista – como diz a antropologia dos fundadores. O artigo me pareceu e me parece uma discussão até hoje muito pertinente não só entre os documentaristas e curtametragistas como entre os antropólogos. Há hoje e havia na segunda metade do século XX um intenso debate sobre etnografia, sobre a autoridade etnográfica e sobre “a verdade” do que se escreve sobre os outros. 

A voz do dono, um artigo de poucas páginas, elabora a questão do estatuto do documentário ou da “verdade” ou autoridade das cenas filmadas de forma análoga ao que se discutia e se discute hoje sobre o relato etnográfico. Isso tudo antes da Antropologia Visual ter se popularizado na disciplina a partir dos anos 1990 e antes da antropologia ter se afastado dos fundadores, como faz no século XXI. 

Ao longo das semanas em que vimos e discutimos tantos documentários brasileiros sobre religião no nosso país, Sergio Santeiro foi aquele que nos ajudou a olhar os filmes não como verdade, mas como relatos que mesmo contendo a forte presença do autor, não deixam de revelar a “realidade” porque ela é impossível de ser cerceada. Com dois exemplos de filmes documentários clássicos Visão de Juazeiro de 1970 de Eduardo Escorel e Viva Cariri de Geraldo Sarno, Sergio Santeiro mostrou a relação complexa entre o autor e o que é descrito entre imagem e “verdade”.

A paixão de Sergio Santeiro pela cultura e pelo cinema brasileiros fez com que sua voz fosse ouvida. Ao longo de seus muitos anos de trabalho descreve a voz dos que precisam ser ouvidos sem impor a sua autoridade, deixando a realidade explodir na tela em seus muitos documentários e curta-metragens. 

Foi com Sergio que aprendi a lição de Paulo Emílio Salles Gomes na frase famosa do historiador e crítico de cinema – “Até o pior filme brasileiro nos diz mais que o melhor filme estrangeiro”. Foi a partir da lição dos filmes de Sergio Santeiro e seguindo o ponto de partida da minha geração que passei anos sem ver filmes estrangeiros. De fato tinha diante de mim a tarefa de ver a imensidão dos filmes nacionais nos quais nos reconhecemos nos cenários, nas falas, nas dores e nas delícias de sermos o que somos. 

Yvonne Maggie é professora Emérita da UFRJ.

Texto publicado em 27 de janeiro de 2022.

Outros links:

Mostra Encontro com Sergio Santeiro

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