FRANCIS VOGNER DOS REIS
Sobre a Retrospectiva Dellani Lima.
Assista aos filmes na Cinemateca do MAM online.
Perambulando numa tarde
Pela estrada eu cruzei
Uma garota e uma olhada
Me deu vontade, eu parei
E naquela mesma olhada
Mãos e braços eu cruzei
Sentimentos me causaram
Em amassos eu gozei
Os punks também amam
É verdade, eu comprovei
Os punks também amam
É verdade, eu comprovei.
“Os punks também amam”, Lixomania (Violência e sobrevivência, 1982)
“Os punks também amam” é uma canção do Lixomania feita há quarenta anos. Relaciona vadiagem juvenil (perambulação desocupada), estômago e sexo. Um fragmento poético da empiria do extravaso suburbano que, em plena abertura democrática, não contava com a possibilidade de o “dia nascer feliz”, mas também queria gozar. É do disco Violência e sobrevivência, primeiro álbum individual de uma banda punk depois da coletânea Grito suburbano, do mesmo ano. É uma música direta, agressiva na velocidade, mas de um sentimento que passa pelo apetite e pelo desejo furtivo no qual o amor – sem mito romântico – é comprovado no gozo. Sugere uma experiência física da saciedade. A banda terminaria em 1983 depois de um show que gerou um quebra pau entre gangues punks rivais.
Esse prelúdio sentimental e ruidoso do Lixomania nos evoca a experiência e o experimento que caracteriza o punk, estética que se faz na dimensão do sensível e da urgência, entre a economia mínima de meios materiais e expressivos e o excesso tortuoso dos sentimentos. O gesto punk, na música, na poesia, nas artes visuais, resulta em uma imagem de alto grau de entropia, um colapso estético desde as ruínas industriais do capitalismo tardio. Um vômito triunfal sobre a mesa posta que muitas vezes é (Lixomania não nos deixa mentir), paradoxalmente singelo. No audiovisual, que é o que ao fim e ao cabo nos interessa aqui, certamente Dellani Lima é a maior e tardia expressão do punk.
Sobre o amor em tempos difíceis
O ano de 2022 parece fértil para reavaliações dos processos que se deram nas duas primeiras décadas dos anos 2000. Em um período de duas décadas vimos uma transição tecnológica forjar uma cultura digital e nela concentrar as novas estratégias do mercado capitalista, a mudança na gestão do tempo (cada vez mais célere), o que criou novos problemas para o trabalho, para a noção de sujeito e para a economia política.
Entre avaliações e reavaliações históricas dos nossos processos políticos e culturais em larga ou em curta distância temporal, fazer em 2022 uma retrospectiva da obra de Dellani Lima é se lançar ao mapeamento da prática e do imaginário, em síntese, do que foram as entranhas do cinema “independente” brasileiro nas duas primeiras décadas do século XXI. Não há melhor cineasta do que ele para fazermos essa prospecção. Uma aproximação mais criteriosa da obra do artista é o gesto necessário de responsabilidade histórica em reconhecer um artista único, particularíssimo, que carrega em si ao mesmo tempo todo o legado das imagens que o cinema de forma e temperamento moderno e a arte do vídeo acumularam durante décadas. É reconhecer nele o cineasta que melhor usou a câmera digital como ferramenta e motivo criativo, o artista que investigou com obsessão (sem cerimônia e sem pedir licença) em termos formais a artesania possível desse meio com métodos que vieram da performance, da música e da arte gráfica (pintura, fanzine, poesia visual) e eletrônica em uma estética e em um elã “punk”.
Wilson Dellani Lima nasceu em 1975 em Campina Grande, Paraíba. Estudou no Instituto Dragão do Mar em Fortaleza de 1996 a 2000. Filho da classe trabalhadora, foi operário. Em São Paulo no início dos anos 2000 trabalhou fazendo câmera em filmes pornográficos. Em Belo Horizonte deu aula em cursos e oficinas e realizou praticamente todas as funções técnicas e artísticas no audiovisual: direção, produção, montagem, som, trilha, elenco e finalização. Realizou documentários, videoartes, videoclipes, filmes de longa-metragem e dezenas de curtas. Dirigiu solo, em duo e em trio (é um gregário da criação). Fez a curadoria de Cinema de Garagem, em parceria com o crítico e realizador Marcelo Ikeda. A mostra foi uma das principais empreitadas que tentou organizar a produção independente de audiovisual brasileiro dos anos 2000. É ator emblemático de um segmento do cinema contemporâneo brasileiro em filmes como Os Residentes (2010), de Tiago Mata Machado, Linz, onde todos os acidentes acontecem (2013), de Alexandre Veras, Pingo d’água (2014), de Taciano Valério, Tropykaos (2015), de Daniel Lisboa, entre outros. É também músico. Na música responde pela alcunha Tuca, como também pelo seu nome original Dellani Lima em Dias de surto, Madame Rrose Sélavy e SDDS.
Essa versatilidade elencada aqui não é pra provar talento pela quantidade, mas revela uma dinâmica compulsiva típica de sua obra de 2002 a 2017 e não o define como um artista especialista em um único ofício, mas como uma usina criativa em que som e imagem se retroalimentam, em que sua presença, visível ou não, mistura obra e vida. Mas, diferente de uma tendência mais ou menos atual que dilui a dinâmica entre obra e vida a um inventário de pequenas sensibilidades e uma performatividade inofensiva e burguesa – que neutraliza o atrito necessário entre o trabalho estético e a experiência cotidiana – nos filmes de Dellani a relação entre vida e trabalho de arte desorganiza o mundo, altera a percepção e o humor, como uma sobredose de anfetamina. Não existe a “vida mesma” em oposição à arte. Tudo é um trabalho de agenciamento do caos.
Videoartes como o Plano-sequência para os amigos (2002) e Netsplit: queda de conexão (2003), vão do minimalismo retratista que nos remete à Warhol (o estudo do “pogo” em Plano-Sequência…) mediado pela textura macilenta do vídeo à um ensaísmo próximo da videoarte oitentista, mas realizado por meio de uma estrutura imagética baseada nas quedas de conexão e hiperlinks da Internet em Netsplit. Ou seja: ele reprocessa vanguardas anteriores nos meios novos, entre a revisão do mínimo bruto punk e a angústia da realidade – ruidosa e lacunar – emergente de um cotidiano atravessado pelo virtual.
O punk como atitude extravasante e melancólica não foi uma simples escolha entre outras possíveis. Foi (e é) a prerrogativa necessária que pôde levar mais longe as potencialidades inauditas de um meio novo técnico, foi a aposta expressiva de uma realidade material e um sentimento de ruína futurista do Brasil do século XXI, bem longe dos modelos do audiovisual brasileiro que se quiseram standards ou repletos de “boa consciência” nesse momento. Trazer o punk pra falar de seu trabalho é menos uma aproximação dos signos e uma estilização fetichista de um ideário anacrônico setentista e oitentista e mais a proposição de uma estética que relaciona uma prática, uma ética e uma estratégia técnico-formal de estilização tardia. O lema punk “do it yourself” (faça você mesmo) não seria o elogio da precariedade amadorística formal, carente de técnica e abundante no niilismo, mas uma economia estética básica que consiste em ir diretamente às coisas a partir dos poucos elementos disponíveis como em Inquietude (2007), em que o cineasta faz o filme com registros de ligações telefônicas em que ele pergunta a outros artistas sobre a relação entre arte e inquietação. Um ponto de partida modesto, uma forma do mínimo em duração pequena. Uma canção de três acordes e um tema. A carência de recursos materiais pode ser um imperativo, mas o mais importante é o atrito com os valores estéticos (e inevitavelmente políticos) de um audiovisual (incluindo aí os artistas de conceito) em fuga do seu passado de “condição subdesenvolvida”, o que abre espaço para uma liberdade à revelia das sensibilidades médias ou da sofisticação de boutique. Lembremos também que no momento em que Dellani surge a divisão entre videoastas e cineastas era bem marcada – em prejuízo dos primeiros.
A obra de Dellani Lima traz a estratégia da estética punk e reconfigura o legado iconoclasta do cinema marginal (Sociedade dos Amigos do Crime/2009, Vertigem Branca/2012), as colagens diário-ensaísticas do superoitismo brasileiro (Sobre o amor em tempos difíceis/2004 e O sonho segue a sua boca/2008) e os experimentos gráficos com happening, poesia visual e performance da videoarte (incluindo o videoclipe) em Enquanto houver amor entre os meus pés (2007) e todos os outros trabalhos da fase mineira (2002-2015). Conhecemos muitos artistas nesse segmento do vídeo/cinema, é verdade, como Cao Guimarães e Lucas Bambozzi, para ficarmos em dois exemplos importantes de Minas Gerais onde Lima realizou seus trabalhos decisivos. No entanto, a arte punk de Dellani Lima criou um desvio importante porque deslocou o seu trabalho para o verdadeiro underground, deu a ele um ímpeto disruptivo e um metabolismo que resistiu ao conforto simbólico do mercado da arte contemporânea e teve, relativamente, pouca capilaridade no mercado dos festivais internacionais, ainda que tenha desfrutado de circulação e evidência decisivas nos festivais brasileiros.
Essa condição de underground nunca foi uma opção totalmente voluntária para o artista que sempre quis e quer ser visto e discutido, quer sobreviver do que faz, pois nunca cultivou ilusões sobre heroísmo do artista difícil como se isso por si só fosse atestado de reserva moral. Nessa cilada ele nunca caiu. Acontece que seu deslocamento, e também sua força, se dá nos seus paradoxos. A obra de Dellani Lima é visceral e terna. Nem fora de moda, nem up to date. Ao mesmo tempo é onde desembocou todo o legado dos nossos artistas mais radicais da imagem. Isso tudo o torna um cineasta único e difícil de enquadrar. Como “Os punks também amam” do Lixomania, filmes como Sobre o amor em tempos difíceis e Sociedade dos amigos do crime, investem na agressividade ao mesmo tempo que realizam um exercício da maior singeleza.
Uma videoarte de três minutos realizada em 2007 em parceria com Rodrigo Lacerda, Jr (artista com quem dividiu a autoria de vários trabalhos) chamada O amor e o desejo podem ter excesso (2007) pode ser considerado um pequeno inventário dessas recorrências. Curiosamente o ritmo e o (des)ordenamento das imagens lembram um pouco a estética dos fragmentos de performance cotidiana dos stories dos atuais aplicativos, mas ao mesmo tempo é dissonante do “padrão app” na sua variação rítmica. É uma sucessão muito veloz de imagens icônicas que remetem a um ideário da rebeldia e da transgressão contracultural: aqueles que amaram muito, piraram muito, e criaram muito e/ou faleceram sob o signo do excesso como Sid Vicious (uma figura presente, e enviesada, em outros trabalhos), Allen Ginsberg, Raul Seixas, John Belushi, Jimi Hendrix, Tim Maia, Cássia Eller, Charles Bukowski, GG Allin, e muitas outras imagens de artistas, filmes e bandas. Uma overdose de centenas de fotos em três minutos em uma edição que, apesar da velocidade vertiginosa na sucessão de uma imagem à outra, nos dá a impressão de lentidão quase tediosa. Às imagens de ícones do excesso se misturam fotos e frames de vídeos de documentos, fotos pessoais e familiares de Dellani e Rodrigo, amigos, paixões, sexo, noitadas no apartamento caótico em Belo Horizonte, drogas, muitas drogas: cápsulas, pílulas, muito pó e pedra. Uma música melancólica pós-punk incidental conduz o vídeo com poucos acordes em uma montanha russa de depressão e euforia. As coisas estão imiscuídas em um torvelinho de estados de ânimo movidos por explosões químicas na experiência do corpo, da mente e do coração. Não há distanciamento seguro: a franqueza da auto exposição nos trabalhos da dupla (e de Dellani solo ou em outras parcerias) é um gesto de coragem raro, pois a exposição da fragilidade do seu próprio corpo e da suas vidas pessoais usadas como matéria artística, viveu o risco de se tornar demasiado tóxico para um mercado que toma distância se não tiver oportunidade capitalizar em cima dessas imagens.
Sobre o amor em tempos difíceis, seu primeiro longa, é uma espécie de laboratório doméstico de química afetiva do capitalismo, o que torna o amor impossível. Três personagens, três corpos melancolizados em um cotidiano doméstico de exaustivas performances e pequenas narrativas decisivas e banais atravessadas por informações do acidente radioativo em Goiânia. Na narrativa de Ana Clara há uma indeterminação entre sonho e realidade. Ela “não fez as compras”, cuida de um gato, faz suas necessidades básicas, limpa e cozinha. O universo onírico tomado pelo automatismo do cotidiano domiciliar, a realidade imersa em uma performance doméstica e determinada pela solidão.
Ronaldo Magela que conduz o segundo episódio é o personagem que, também isolado em seu apartamento, realiza uma série de gestos corriqueiros: lava a louça, limpa a casa, faz ginástica, vouyeuriza alguém, fala de encontros na porta do cinema, entra em desespero em frente ao espelho. No áudio, ouvimos suas histórias sobre imagens absurdas do dia a dia e amores malfadados por conta das demandas artificiais das relações afetivas frustradas frente às expectativas sistemáticas do mundo capitalista (isso está inclusive sugerido nas cartelas). No terceiro episódio, “as histórias geneticamente modificadas de Otávio Martini”, o personagem interpretado pelo próprio diretor, faz no chão da cozinha um cachimbo de crack com uma lata de Coca-Cola, prepara a droga, fuma. O narrador conta histórias de família, meio tristes e meio idílicas, não sabemos o que é inventado ou não, mas não importa. Os detalhes da preparação da droga correm alternadamente às cenas de um arquivo familiar em super-8. Espaço recorrente em seu cinema, o ambiente da casa é um laboratório (O céu está azul com nuvens vermelhas/2007, O sonho segue a sua boca, Apto 420/2016, Da janela pra Consolação/2016 e etc.), toda experiência se consolida em experimento químico que mobiliza a criação de coisas que até então não pertenciam à esfera da realidade imanente e natural. As químicas do cérebro, nas substâncias do crack (as explosões de dopamina), a intensidade depressiva da frustração amorosa (incluindo a familiar), a vigília atravessada pelo sonho, o trabalho como prática na qual o delírio não está ausente, criam vetores que fazem do seu trabalho o inventário mais original sobre os estados bipolares da euforia e depressão dos afetos dos corpos melancolizados no capitalismo tardio. É um filme anticapitalista que antes de se fazer por uma análise estrutural do que constitui o “sistema”, abre mão da abstração sistemática e vai identificar na relação entre estômago, mente e coração a intervenção reificante do capital e se opõe a ele como gesto, não como discurso ou solução apaziguadora. É um cinema basicamente de cozinha (comida), quarto (sexo e sonho) e banheiro (evacuação). A da obra de Dellani Lima em Belo Horizonte até sua mudança para São Paulo em 2015 se faz nos interiores domésticos geralmente esvaziados, caóticos ou arruinados. A dinâmica entre a melancolia e o desespero que se traduz em uma estética que não aceita as coisas como são, mas que assume os refugos afetivos e materiais com intensidade exasperante como Basquiat, Glauco Mattoso, Lyndia Lunch, Vivienne Dick e Richard Kern, para ficar em alguns artistas de outras searas, ainda que maior parte deles e delas esteja, como Dellani, intrinsecamente ligado à música punk.
Eu tenho vendido tudo na rua de trás (e a partida para São Paulo)
A rua e a perambulação também é uma imagem do seu cinema. As ruínas de Vertigem Branca, a paisagem de prédios e topografia quase vertical de Belo Horizonte em O tempo não existe no lugar em que estamos (2015) e as andanças e manifestações de junho de 2013 em Trago seu amor (2015) pulverizam no espaço da cidade a angústia antes concentrada nos interiores. O videoclipe de Jonnata Doll e os garotos solventes Rua de Trás (2015) e o curta Aquele Cara (2013), retrato de Jonnata Doll (com que co-dirigiu o terror Planeta Escarlate, em 2016) parte da perambulação na rua e das relações com as drogas. O videoclipe começa como um documentário, com Tia Zú declarando “eu caminho pelas ruas, a rua é uma passarela porque eu consigo captar a vida ao vivo, eu sinto a dor, a necessidade, a tristeza, o orgulho, eu sinto a nobreza, a austeridade, o egoísmo com o altruísmo, a soberania, a obsessão, a escuridão do mundo dos viciados, o fundo do poço”. Jonnata Doll canta “eu tenho gastado tudo na rua de trás”, em um relato sobre adicção e perdição. Ele dança e se dirige à câmera com volúpia. A droga como pulsão de morte e amante aguardada com expectativa. Já Aquele Cara é uma longa caminhada na orla de Iracema toda em close up do começo ao fim, com algumas lascas de paisagem. Sentado nas pedras junto à água, Jonnata fala de sua história a partir do rock e da drogadição. A abstinência para ele é “ir ao fundo da existência, é conhecer a condição humana”. As elipses tão sutis quanto misteriosas encantaram Nicole Brenez que considerou o filme um dos dez mais de 2013 na sua lista anual. Aquele Cara é o mais forte dos retratos de artistas realizados pelo diretor. Calça de Veludo (2010) (em parceria com Ana Moravi), com o poeta do underground belorizontino Vidigal, e Pássaro Transparente (2018), com o poeta Marcelo Ariel, são ao mesmo tempo retratos de artista e contraplano de um mundo em convulsão. Performance debochada no Baixo Centro em Calça de Veludo e Eco disaster na Serra do Mar em Pássaro Transparente.
Dellani Lima deixou Belo Horizonte em 2015 e se instalou em São Paulo. O filme de passagem é Trago seu amor. Filmado em BH e SP, é uma ficção com três histórias de relacionamento amoroso nos seus estertores e também um testemunho não programado das jornadas de 2013, quando ninguém ainda sabia ao certo o que aquela movimentação nas ruas representava. A partir de Trago seu amor seus filmes ganham em serenidade, se tornam cenicamente mais arejados, menos convulsivos, mas não emocionalmente menos graves. Há uma inflexão em direção à narrativa mais linear, aos trabalhos mais detidos na modulação dramática com os atores, as drogas mudam de figura em Apto 420 (um híbrido de documentário e ficção sobre a cannabis) e o punk também em As Faces de Mao (2021), em parceria com Lucas Barbi, se tornando questões mais objetivas e menos intimistas. Dellani também se aproxima cada vez mais do trabalho com um grupo de atores de teatro em São Paulo, não por acaso sua primeira casa na cidade foi um pequeno apartamento ao lado da praça Roosevelt, cenário de alguns dos últimos trabalhos como Rompecabezas (2020).
Como outros filmes de São Paulo dos anos 1960 aos dias de hoje, a paisagem da cidade é vista recortada desde a janela de um apartamento e dos dramas de personagens, caso de Copo Vazio (2019) e Da Janela pra Consolação (2016). São Paulo teria amaciado ou amansado o cineasta punk? Seu temperamento como artista muda relativamente e a compulsão na produção seriada de álbuns, vídeo e filmes dá lugar a um outro tempo, menos frenético na vociferação expressiva. Na verdade, desde o longa O Tempo não existe no lugar em que estamos, realizado ainda em Belo Horizonte com por meio de um edital para curta-metragem, o diretor tem experimentado o ofício do narrador, menos vocacionado ao abismo e mais interessado em observar a metamorfose gradual dos personagens. Mas o amor, o trabalho, as drogas, o espaço doméstico, as ruas, o mundo em colapso permanecem nos seus filmes, porém com um outro traço, de grafia menos nervosa, de ritmo mais sinuoso. Se ainda vemos a descida aos infernos ela é menos fatalista, ainda que marcada pela impossibilidade. O seu elã punk é menos ruidoso e mais melodioso, mas ainda não sugere limpeza e nem soluções redentoristas.
A retrospectiva de sua obra que conta filmes de longa e curta-metragem, videoarte e videoclipes, assim como seus filmes com Joacélio Batista e filmes que fez como ator que se apropriam de sua persona. Teremos a oportunidade de conhecer essa obra fundamental para entender o cinema brasileiro contemporâneo, seus imaginários e seus modos de fazer. Sexo, trabalho, drogas, música, poesia e cotidiano (tudo em excesso) se entrelaçam em seu trabalho. As ruínas e o amor, sobretudo, são os dados intrigantes e desestabilizadores no coração e na mente desde a experiência do corpo no capitalismo ao sul dos trópicos. Se os punks também amam, como preconizou o Lixomania, qual é a experiência e a qualidade desse amor?
Francis Vogner dos Reis
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