Três curtas: Casa Grande e Senzala, Segunda-Feira e Espaços Sagrados

Casa Grande e Senzala (1974)
Segunda-Feira (1975)
Espaços Sagrados (1975)

“Trata-se de um filme introdutório; isto é, não apenas reflete vivência recente do autor com um universo do qual pouco a pouco está compartilhando, como pressupõe a realização de mais filmes, resultantes de outras vivências, que poderão complementar, aprofundar e – por que não – vir a revisar o tema que aqui se expõe”. Foi com essa reflexão que o saudoso Geraldo Sarno escolheu finalizar a narração em off introdutória de Espaços Sagrados (1975), curta-metragem documental que se envereda nas práticas do candomblé baiano por meio da visita a um terreiro na cidade de Cachoeira.

Essa advertência pode parecer meramente trivial, ou um polido pedido de desculpas quanto às possíveis lacunas do filme, atribuindo-as a uma inexperiência em relação às temáticas abordadas. E, ainda assim, as palavras com as quais Sarno abre Espaços Sagrados sintetizam sua vasta produção documental, que ocupa uma parcela substancial de sua obra como um todo.

O olhar do diretor está sempre submetido ao seu nível de experiência, e visa captar uma parcela de um universo que é de seu interesse, ciente de que seu trabalho será não mais do que um retrato simplificado de uma realidade riquíssima. Sua obra é um trabalho perpetuamente em andamento, que almeja dar conta de um rol de temáticas e preocupações.

No caso de Geraldo Sarno – documentarista, ficcionista, cineasta completo – havemos de citar tópicos que podem ser descritos, grosso modo, com rubricas como “História do Brasil”, “cultura popular brasileira”, “tradições e religiosidade nacional” e “a situação do trabalhador brasileiro nos dias atuais”. Ainda que tais rótulos falhem em expressar a multiplicidade de abordagens, elementos, situações, personagens e lugares que Sarno transformou em cinema, eles podem dar uma ideia acerca do porquê de filmes como os três curtas documentais que o diretor realizou entre 1974 e 1975 – Casa Grande e Senzala, Segunda-Feira e o próprio Espaços Sagrados – ocuparem uma posição tão natural em sua filmografia. Olhando para cada um desses filmes, podemos não apenas extrair algumas das preocupações do Sarno documentarista e de seu olhar para com o social, mas também perceber a sofisticação de um autor que, mesmo em obras que poderiam tender ao didatismo, explora com avidez as possibilidades da linguagem.

Em Segunda-Feira, o texto-base para o filme, uma parceria com o poeta e compositor José Carlos Capinam, situa o curta em uma posição estanque em relação a outros trabalhos que analisam a vida do trabalhador rural brasileiro, sobretudo dentro do documentário social dos anos 1960. Sarno se envereda pela rotina dura da labuta por meio de um olhar muito próprio, e submete seu filme a um ritmo quase musical, desviando-se do olhar sociologizante e um tanto quanto frio que se encontra em produções como as realizadas pela cúpula do Cinema Novo durante seus primeiros anos de experiência.

De igual maneira se desenrola Espaços Sagrados, em sua exploração imagética e sonora dos terreiros e ritos do candomblé. Se a narração em off, já ao início, pode deixar a impressão de que esse seria um trabalho mais engessado, o filme não tarda em se afrouxar em relação a algumas formalidades do formato e se deixar levar pela cultura que almeja investigar. Geraldo Sarno olha para o candomblé despido dos preconceitos do senso comum, e realiza um curta-metragem que, entre outras coisas, hoje também pode ser visto como um valioso documento histórico.

Casa Grande e Senzala, por sua vez, talvez seja o mais ambicioso dos três filmes compreendidos pelo escopo desse texto. Seria fácil, para o cineasta, “adaptar” a obra seminal de Gilberto Freyre através da mera seleção de parágrafos que sintetizam os principais pontos do livro, para que estes fossem entoados por uma narração e justapostos à imagens ilustrativas. Em certa medida, até há, no curta de 1974, trechos que seguem por esse caminho. Sarno, entretanto, vai muito além: seleciona fotografias e gravuras com esmero e cálculo tamanhos que suas imagens não apenas ilustram como aprofundam o sentido da prosa freyreana. As imagens que ele capta especialmente para o filme, nos engenhos e usinas do Brasil rural, fazem um contraponto ao bucolismo romântico do cinema de Humberto Mauro: com a presença da narração, elas não escondem a ligação simbiótica que os sistemas de produção brasileiros possuem com a escravidão e as origens coloniais torpes do país. Critica veementemente as elites nacionais de forma experimental e elegante, de modo tão simples como através da exploração de um amplo salão (lembra a câmera onírica e vagarosa de um Alan Resnais em Toda a Memória do Mundo ou mesmo O Ano Passado em Marienbad) enquanto o texto de Freyre descreve a opulência dos antigos barões. Caso isso tudo não bastasse, o Casa Grande e Senzala de Sarno possui, assim como Espaços Sagrados, algo de documento histórico, graças às valorosas imagens coloridas que capta de Gilberto Freyre e, principalmente, dos depoimentos que coleta do autor especialmente para o curta.

Cada um à sua maneira, esses três documentários, realizados em um período de dois anos na década de 1970, nenhum com mais de vinte minutos de duração, são puro suco de Brasil – ou do que Geraldo Sarno entendia do Brasil. Entre nossos cineastas, Sarno tinha uma das visões mais complexas, completas, interessadas e interessantes sobre a formação e a contemporaneidade de nosso país e de seu povo.

Igor Nolasco, Bacharel em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio, colaborador dos portais Plano Aberto e Revista Badaró.

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