Carlos Reichenbach: trajetória (entrevista a Ruth Viana, 1984)

Carlos Reichenbach: Tenho 38 anos e fui aluno da primeira de cinema que havia no Brasil, a Escola de Cinema São Luiz, uma primeira escola vinculada a uma escola de engenharia, a Empresa São Luís. Como a primeira escola que havia de cinema no Brasil, ela abrangia o interesse de muita gente ligada que se interessava pela arte. Então dessa escola, Escola de Cinema São Luiz, saíram alguns outros profissionais, como Ana Carolina diretora de Das Tripas Coração, o João Callegaro, realizador do filme O Pornografo, Carlos Alberto Ebert, realizador do filme República da Traição. E essa faculdade, ela tinha quase um nível experimental e os nossos professores eram um negócio muito complicado, era muito misto. Anatol Rosenfeld um dos melhores críticos de teatro que já existiu no Brasil; Décio Pignatari, Mário Chamie. Paulo Emílio Salles Gomes, Jean-Claude Bernardet, e diretores de cinema, que tiveram muita importância na época como o Roberto Santos e Luís Sérgio Person, que foi a pessoa que me fez sair da escola e me profissionalizar em cinema. Eu fui levado à profissionalização por Luís Sérgio Person, realizador de São Paulo Sociedade Anônima, de O Caso dos Irmãos Naves. Eu comecei a me profissionalizar em cinema a partir de 1967. E como eu vinha de uma escola de cinema que vinha do fim do cinema novo, ou melhor, do pico do cinema novo, com um filme chamado Terra em Transe, com outra série de filmes importantíssimos como Menino de Engenho, A Grande Cidade… E como aluno de escola de cinema identicamente os colegas… Colegas que não só estavam ligados à área de cinema, mas a outras áreas da cultura, como Mário Chaves, que hoje é editorialista do Estado de São Paulo, como Samir Meserani, todos nós tínhamos o interesse de fazer cinema político participante, moderno, avançado. A grande verdade é que nos anos de 1968, da passagem de 67 a 68, um ano politicamente efervescente, ao mesmo tempo que a repressão começou, e ao mesmo tempo a eclosão de outro cinema, o chamado cinema marginal (movimento). Então eu posso dizer que eu comecei no cinema no momento que nascia o cinema marginal. Chamado de cinema, pejorativamente ou não, cinema udigrudi. E esta foi a saída por um certo desencanto com certo cinema revolucionário, quer dizer, ou seja, de repente era mais importante estudar um certo meio de comunicação que a gente estava usando do que propriamente usá-lo como referencial político e justamente questionar a capacidade desse cinema como referencial político. Eu acho que 68 e 69 foram anos tão fortes, visceralmente decisivos, que dá a impressão que todo movimento cultural, a Tropicália, todo esse movimento cultural, essa efervescência cultural, tudo tem importância. A música, a própria música popular… Foram os anos que coincidiam com o AI-5 e tem muito a ver com essa falta de perspectiva histórica. Então num momento desses, e esse é um dado fundamental, surge um movimento cinematográfico, o chamado contracultural, ou anticultural, e justamente no momento em que eu queria me iniciar em cinema fazendo um determinado tipo de obra política, progressista etc. É interessante notar como deu uma virada brutal e todos os referentes culturais, eles começaram a se modificar, e justamente por um lado completamente adverso, e foi o momento de descoberta da antiestética e que era uma forma de agredir. Quando surge o movimento tropicalista em 1968, tinha uma função meio agressiva em relação… uma tomada de posição cultural… Ao mesmo tempo se dava a eclosão do Teatro Oficina, entende? Acho que tá tudo muito ligado, de repente pinta um movimento cinematográfico como pintou em São Paulo, com dois filmes que foram feitos em São Paulo, O Bandido da Luz Vermelha, que foi feito por um cara da minha geração, e um amigo de infância que foi o meu sócio, João Callegaro e Rogério Sganzerla. Então a gente tem uma formação cultural muito similar. E no momento a gente fazia filmes ao mesmo tempo, e no momento em que ele fez O Bandido da Luz Vermelha, eu e o Callegaro e o crítico Antônio Lima, nós fazemos um filme chamado As Libertinas. E o que é que é esse filme? Esse filme é uma forma de abraçar uma ideia de antiestética, e de antiética inclusive. E no momento em que a gente estava tentando um movimento novo… Houve uma virada muito brutal e de repente a gente estava se iniciando e lançando um filme que contrariava todas essas pretensões, ou seja, realizar… e naquela forma de desencanto… Hoje é assim que eu enxergo, é uma forma de aceitar a gente acabou de aceitar um próprio jogo meio sórdido, de realizar um filme com os parâmetros mais comerciais e com os parâmetros mais antiestéticos possíveis. As Libertinas é um pouco isso, né? As Libertinas é um pouco do reflexo dos adventos da teoria de comunicação, daquela ideia de usar os clichês, o cinema comercial na época, que é o filme para crianças. Mas naquela época ele tinha um certo jogo de audácia e, ao mesmo tempo, uma ideia de em vez de começar do melhor, de começar do pior. Que no pior estaria o melhor. Isso era uma coisa consciente minha e do Callegaro, do próprio Rogério, do próprio movimento Oficina. E do próprio momento em que elegiam o Mojica, o Zé do Caixão, como parâmetro de uma nova estética.

Ruth: E qual que era a reação do pessoal?

CR: De que pessoal, do pessoal intelectualizado? Era uma reação de repúdio. Era uma reação pretendida mesmo. Com o filme As Libertina era uma reação favorável. Mas era uma época de cinema amadorístico mesmo. E uma época de assumir esse cinema amadorístico mesmo. Tem duas frases fundamentais que servem muito de epígrafe para o movimento cultural, ou seja: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha”. O cinema brasileiro, ele é obrigado a transformar a falta de condição em elemento de criação. Sobre esse ponto de vista foram feitos vários filmes, por exemplo no caso São Paulo, é aí que nascia o cinema chamado Boca do Lixo. Porque um dado fundamental: era muito barato se fazer filme naquela época. Geralmente o filme preto e branco, um filme sem condições, quer dizer, a fita meio cooperativa reunindo amigos, equipes de técnicos que trabalhavam de graça… Então naquela época foram feitos vários filmes nessas condições. E houve um retorno? Houve retorno. Tanto houve um retorno que logo imediatamente, no ano seguinte, ano de 1969, nós fizemos um outro filme. Desfizemos a sociedade e continuamos amigos. E o João Callegaro foi fazer um filme chamado O Pornógrafo, que era um outro filme que levava muito mais à frente a ideia de usar clichês e sobretudo a ideia de usar clichês meio antropofágicos, de se usar todos os clichês dos filmes policiais de classe B norte-americanos para contar uma história de gangsterismo no Brasil. Por um outro lado, eu e o crítico mineiro Antônio Lima continuamos associados e fizemos um filme chamado Audácia, que era um filme sobre cinema e sobre a falta de condições de se fazer cinema no Brasil. Sobre como fazer um filme a partir do nada. Audácia é um pouco isso. Obviamente lá tem muito mais que As Libertinas e é um filme muito pretensioso nesse sentido. E ao mesmo tempo ele foi o filme mais barato. Na medida em que a gente fez um filme sem nada, absolutamente nada. Era um filme todo improvisado no momento. Então acho que um detalhe importante de se observar é que Audácia é relativamente mais um tipo de vanguarda do que As Libertinas. Pelo menos no caso do meu episódio, da minha história, né? É um vale-tudo a nível de realização. Foi tudo improvisado. Era um filme que num momento… Eu acho um dado fundamental: é difícil você separar todo o momento cultural de todas as outras áreas culturais que atuam porque está tudo interligado, porque há um momento do sonho, de assumir uma certa porralouquice. De assumir um certo reacionarismo cultural. Audácia reflete muito o espírito desse momento. Audácia é um filme que se assemelha muito a outros filmes da mesma época, como alguns filmes de Júlio Bressane, como alguns filmes de Eduardo de Almeida (?), como filmes malditos e outros filmes que são considerados udigrudi, marginais. Todos os filmes tinham uma influência desse momento. Tudo era uma descoberta. Era o momento que a área cultural que era vanguarda descobrir a droga. Isso é fundamental, acho que em 1969 tem isso. Essa coisa que já está oficialmente oficializada, porque era uma coisa meio marginal mesmo. A coisa de Jimi Hendrix. Tudo isso acho que tinha uma certa importância. E no nosso caso, valeu a pena, porque ela teve uma resposta. Ela foi uma das últimas fitas em preto e branco a ser lançadas em cinema, porque a partir de 1970 o filme em preto e branco acabou praticamente no Brasil.

Ruth: E a crítica, como que reagiu com esse seu filme Audácia?

CR: A crítica também foi péssima porque foi como… Crítico de cinema é muito radical… eles não assumiam… foi o contrário do que se passou com As Libertinas, que foi um filme bem comercial. A importância dele é de um reflexo, muito da época, de um momento de uma amorfia cultural. Outra epígrafe que marca muito o momento de 69: “O cinema morreu”. Aquela coisa meio suicida de utilizar o cinema para matar o próprio cinema,que tá aí em discussão. E como o cinema existe até hoje, então aquela coisa meio suicida… No meu caso, como houve uma dispersão, por exemplo, não a nível cultural, mas em questão de cinema, de quem militava em cinema, então havia pessoas ou que mudaram completamente de ramo, ou que saíram do Brasil por problemas políticos. Aqui muita gente que resolveu… que pirou… que partiu… Aquele momento, sabe, que ninguém estava na de ninguém mesmo, sabe… Esse movimento não existiu como uma coisa pensada, imaginada. Era uma coisa que surgiu espontaneamente. Como dizia a Rosa de Luxemburgo, essa coisa nasceu espontânea, quando ela surgiu ninguém tinha nada com ninguém, mas todo mundo tinha a ver um pouco com alguém. Era uma coisa política mesmo. Era uma coisa pensada mesmo. Era uma coisa de resistência pessoal, cultural. As pessoas não tinham mais certeza de nada. Era o cinema das dúvidas, não o cinema da certeza. O que se pode dizer é que o cinema novo era o cinema da certeza e o cinema marginal era o cinema das dúvidas. Ninguém sabia onde ia dar em nada. Nem estava interessado em saber para que vinha esse movimento marginal. Eu estou enxergando isso hoje, no momento a gente nem via aquilo. A partir de 1970, no meu caso, por exemplo, comecei a trabalhar muito como técnico de cinema, ou seja, como fotógrafo e iluminador. A partir de Audácia, eu me liguei mais à iluminação, à fotografia de cinema do que a filmes. Como decorrência disso, a partir de 1971 eu fui convidado para fazer um filme e eu aceitei. Eu estava precisando de ter uma experiência de linguagem, trabalhar a nível de saber mexer com a linguagem cinematográfica. Daí eu dirigi um filme chamado Corrida em Busca do Amor, que é uma fita para crianças, que é uma experiência fundamental. Para mim, na verdade, Audácia e As Libertinas não tinham compromisso com a linguagem cinematográfica, eram filmes ao contrário. Eles queriam romper com a linguagem tradicional. Mas no fundo a gente não conseguiu revolucionar nada. A conclusão é que a gente só revoluciona aquela coisa na medida em que você domina aquela coisa profundamente. E era um domínio que eu não tinha ainda. É o domínio de saber narrar, de saber mexer com a linguagem cinematográfica. E daí um dado que é fundamental: saber narrar com começo, meio e fim uma fita que o cidadão entendesse no momento em que está se passando na tela. Saber usar a gramática cinematográfica. E embora eu não tenha podido fazer aí nada com resultados muito satisfatórios, porque a produção não tinha muitas condições. Era uma fita que mexia muito com automóveis e não tinha automóvel para fazer o filme. Então teve que se improvisar muito na hora. Mais uma vez, valeu a experiência do improviso, mas dentro de uma estrutura de filme comercial, no sentido de filme popular, de filme que o público entenda. Um filme acadêmico. Até era moderno e de repente você tem que saber manejar o cinema, o filme acadêmico. De repente, eu queria fazer um filme linear que narrativamente era quase didático mas que as próprias condições de produção muito pobres me forçaram a usar um improviso até exagerado nesse filme. Mas ainda se conseguiu manter, se conseguiu fazer uma fita que as pessoas entendem. A criança, o público normal que vai ao cinema consegue ver uma história com começo, meio e fim. Muita improvisação, muita citação cinematográfica. Mais do que fazer filmes, eu gosto de ver filmes. Os filmes que eu faço têm muito desse tipo de citação. A partir daí, esse filme curiosamente deu resultado comercial ruim. Eu fiz uma fita mal lançada, uma fita para criança que não foi lançada em mês de férias. Aí eu passei um período em que eu fui trabalhar com direção, fotografia e produção de filmes comerciais, de comerciais de 30 segundos. Eu fui trabalhar numa produtora, eu fui sócio de uma produtora de comerciais num período de três anos. Eu dirigi, fiz fotografia e produzi mais de 250 comerciais. E isso para mim foi uma outra escola a nível de dominar tecnicamente o cinema. Até que um dia me encheu profundamente a paciência. Eu vi que não era realmente o meu meio. Hoje, embora ainda eu continue iluminando, eu odeio comerciais. Pra mim cinema é ideia e eu não consigo desvincular cinema daquilo que eu escrevo. Então eu preciso escrever e filmar, fazer câmera, de repente, é uma coisa que está muito vinculada a mim, meu trabalho com cinema, justamente pela prática do meu trabalho. Em 80% dos meus filmes eu exerço a função de roteirista, como diretor de fotografia e cameraman e de diretor. Porque de repente, cinema de autor, ele tem conhecimento de tudo. Então, no momento em que eu saí, que eu me despedi do comercial, eu investi tudo que eu tinha e o que eu não tinha numa fita, a primeira fita que eu tinha produzido integralmente. Mas uma fita de uma proposta inclusive mais radical, mas pessoal possível. Daí eu fiz um filme, Lilian M, que talvez seja o meu filme mais pretensioso, que não é uma fita comercial mas ao mesmo tempo não é um filme maldito. Ao contrário, um filme que domina a técnica com muita segurança, a técnica cinematográfica, a linguagem cinematográfica, a gramática cinematográfica, e ao mesmo tempo subverte ela. Mas para esclarecer chegou um ponto em que tinha que dominar a técnica cinematográfica para poder subverter, se não você nem sabe lidar com ela. A conclusão a que eu cheguei realmente naquele momento é que nos primeiros times não funcionava apenas o fato de subverter, era realmente uma falta de domínio sobre a técnica. Então era por isso que os filmes não tinham nitidão perfeita. Então, a partir daí, eu acredito que eu tive uma aprendizagem por um processo natural em que eu fui cada vez mais podendo dominar a linguagem cinematográfica, quer dizer, o meu meio de comunicação. Com Lilian M, que foi uma fita que me deu muito prestígio cultural, a fita que me deu o Prêmio Governador do Estado, de repente surgiu, aconteceu uma coisa curiosa, de repente surgiu a fama. Dr. Carloni, diretor de filmes malditos, curiosamente. Então eu fiquei praticamente quase três anos sem fazer filmes, sem fazer filmes como diretor, continuando com o iluminador. Comecei a ser diretor, com medo de ser produtor a partir do advento dos filmes coloridos, em que o filme começa a ficar mais caro. No momento em que eu consegui dominar essa técnica cinematográfica, em que eu consegui chegar onde eu queria, onde eu me interessava desenvolver, eu tinha torrado tudo que eu tinha e o que eu não tinha, meu e de minha família, em um filme quase experimental, como é o caso de Lilian M. E no entanto foi uma fita que se pagou, ela não rendeu mas se pagou. A partir daí, eu fiquei três anos sem fazer filmes, até um dia em que um amigo me convidou para fotografar um filme. E dois dias antes de começar a fazer esse filme, eu fui obrigado, a pedido desse amigo meu, o Amauri Chaves, eu fui obrigado a assumir a direção dessa fita. Então pela primeira vez eu tive a experiência de realizar um filme com um roteiro que eu não tivesse escrito, que praticamente não tinha nada a ver comigo, mas que possibilitava exercitar a minha capacidade de narrar uma história. Esse foi um filme que eu fiz com menos gosto, mas no entanto para mim ele foi muito útil, porque eu aprendi a dominar cada vez mais a linguagem cinematográfica, como recurso de técnica cinematográfica, de saber contar uma história. E assim eu fiz um filme chamado Capuzes Negros, que foi lançado com o título Sede de Amar, uma história que tinha um elenco global: Luiz Gustavo, Sandra Bréa, Roberto Maia, que me possibilitou não só o domínio de direção de atores, saber contar, dominar o trabalho artesanal do cinema. Eminentemente artesanal, foi isso que me interessou quando eu fiz essa fita. A partir daí, eu resolvi nunca mais fazer uma fita que eu não tivesse escrito, por um problema do resultado do filme não ter sido plenamente satisfatório pra mim. E era o momento em que a pornochanchada vivia o seu grande momento, e uma coisa que eu sempre me perguntei: “Mas por quê? Por que a pornochanchada tem que ser burra? Por que não se pode fazer um filme inteligente com esse manancial de produção?” E foi assim, com esse meu pensamento que eu realizei meu filme, dentro de uma ideia de libertar o cinema, ou seja, que usa os recursos habituais de uma produção B, produção vagabunda, para poder fazer um filme de tese, o repertório de um filme comercial para fazer um filme pessoal. E assim eu fiz o meu primeiro filme nessa linha, chamado A Ilha dos Prazeres Proibidos, com o título de um filme comercial, com todos os clichês do filme erótico, mas no entanto fazendo um filme extremamente pessoal, e que obviamente dividiu terrivelmente a crítica. Eram todas pessoas que adoram filmes, que conseguiam entender esse jogo de cintura. Essa coisa começou a me fascinar e me fascina até hoje. De uma determinada maneira, eu fiz vários outros filmes com esse novo pensamento, ou seja, usar o recurso de produção, eles não limitam a tua criatividade, ao contrário, você pode dar muito mais vazão à tua criatividade com o mínimo de recursos e condições. Então, com esse tipo de produção eu fiz um filme chamado O Império do Desejo, que é talvez, eu considero, meu filme mais pessoal. Por incrível que pareça, o filme que eu fiz com maior liberdade, um filme que veicula inclusive ideias libertárias. A partir de 1975, eu comecei a me interessar cada vez mais por certos teóricos e pensadores do anarquismo, das ideias libertárias, entende, eu acredito realmente ter feito com O Império do Desejo, na medida em que falava de novos meios que se atingiam num estágio libertário de vida e de sistema de vida, e de sistema social. E, se se pode falar isso, em termos de socialismo libertário, mas vale tudo, vamos dizer assim. Então você pode ver que o que eu defendo, e que eu continuo defendendo até hoje, que as condições que aparecem, você não é obrigado a fazer um filme burro, que não tenha nada a ver com sua cabeça. Ao contrário, você pode utilizar justamente esses elementos para poder inclusive fazer um filme altamente criativo. É essa proposta que me fascina até hoje. Então a gente escreve A Ilha dos Prazeres Proibidos, O Império do DesejoO Paraíso Proibido, feito em 1978, foi uma fita feita em outro teor, não foi uma fita encomendada como pornochanchada. Ao contrário, foi encomendado como filme romântico. Romântico à minha maneira: personagens destrambelhados, com problemas existenciais, um filme muito mais pra baixo do que pra cima. E esses três filmes eu fiz com o produtor mais tradicional da Boca do Lixo, que é o Antonio Polo Galante. Ao mesmo tempo que me dava poucas condições de filmagens, ou seja, condições mínimas, e todas as condições razoáveis, eu tinha toda a liberdade de fazer o que eu quisesse. Coisa que às vezes não tinha no financiamento oficial. O que importava mais era eu ter liberdade de fazer absoluta, de fazer o filme do jeito que eu quisesse. Mesmo que eu tivesse que abrir, que fazer concessão, concessão a nível de título do filme, a nível de elenco, mas desde que deixasse eu filmar do jeito que eu quisesse, a contar a história do jeito que eu quisesse, a montar o filme do jeito que eu quisesse, não tendo interferência – como não tive nenhuma – a nível de realização. Posso dar um exemplo: O Império do Desejo deu a liberdade de botar Proudhon dentro do filme, na cartela “A propriedade é um roubo”. Isso é só com um produtor que tenha total liberdade que seria possível, isso só como um exemplo, um ponto de referência. Ele me dava liberdade, dizia que não estava entendendo o que eu estava fazendo, e um dia me falou: “Você bateu uns negócios meio difíceis mas seu filme me está dando dinheiro”. Curiosamente esse filmes tiveram resultados comerciais, eram filmes que mexiam com os clichês do cinema comercial, subvertiam esses clichês de repente. Por exemplo, mesmo n’O Império do Desejo, n’A Ilha dos Prazeres Proibidos, param o filme para praticamente ligar a uma discussão a respeito de marxismo dentro de uma estrutura comercial mesmo. E uma coisa curiosa é que perguntam se vale a pena, não vale a pena, mas a gente só vai descobrir o quanto vale a pena com o passar do tempo. Como, por exemplo, com o que houve agora esse ano com a última fita que eu fiz, teve uma receptividade em Gramado extraordinária, incrível poder chegar até lá. Os demais filmes que eu não fiz com o Galante, posteriormente eu fiz com produção independente, me aliando a amigos de maneira quase cooperativada. Assim foram feitos Amor Palavra Prostituta, com pessoas que já confiavam. A Ilha dos Prazeres Proibidos é uma das fitas da década de 80 que mais número de espectadores já teve do Antônio Galante. Isso me deu uma certa carta branca com relação a vários produtores. Então eu pude fazer Amor Palavra Prostituta com esse aval. Quando o filme ficou pronto, os produtores ficaram assustadíssimos, não acreditavam que a fita fosse dar nada. E a fita teve um resultado extraordinário. É uma fita pra baixo, que soma uma experiência com cinema down, é um filme profundamente existencialista. Assim, inclusive, fiz uma abordagem a respeito, por exemplo, do ABC, de uma maneira completamente pessoal, uma anti-visão otimista da classe operária, ao contrário, uma visão extremamente amarga dela. Posso dizer o seguinte: inclusive vários críticos que gostam de Amor Palavra Prostituta, puderam observar que Amor Palavra Prostituta é o anti-Eles Não Usam Black-Tie, porque ele mostra uma cinematografia anti-idealizada. Ou seja, os personagens são anti-românticos por excelência, que tendem a chegar muito mais ao real. Tem um crítico, João Carlos Rodrigues, que fez uma crítica na revista Filme Cultura, sobre Amor Palavra Prostituta, e falou que a fita foi uma das melhores do ano. Mas é uma fita que sempre dividiu a crítica demais. Tem uns caras que são apaixonados e tem uns que odeiam. Mas curiosamente de filme para filme, eu percebo que as pessoas mudam de opinião e têm uma reação tão extraordinária, e de público jovem, uma coisa muito curiosa. As ideias… O que eu enxergo é o seguinte: que o discurso cansou e certas ideias libertárias que o filme veicula vêm bater de tal maneira com o público mais jovem que você sente que o discurso tá claro, que você sente que o outro discurso deixou de existir. E tanto que o filme que provocou mais revolta, que foi a fita de um pai do cinema novo, que é Tensão no Rio. É uma coisa curiosa, né, ao meu ver. Assim foi que eu consegui enxergar. Que o compromisso idealizado, idealista, elitista de uma certa área cultural, ele tá perdendo terreno. Uma das provas tá aí, o cinema brasileiro, para provar isso, com exceção de Memórias do Cárcere, que dizem ser uma honrosa exceção. Nós estamos vivendo no momento de total inércia criativa, de não saber onde é que está o jogo da coisa, não saber o que vai pintar amanhã, sabe, essa coisa meio visionária. De repente a gente se encontra num estado meio de expectativa. De repente mesmo o processo político, as coisas estão acontecendo tão rapidamente, as coisas estão evoluindo tão rapidamente.

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