Um glossário interior

RUBENS FABRICIO ANZOLIN

  1. O Objeto: Existem os cineastas cuja obra é extensa, não raro difícil de ser encontrada nos acervos (digitais ou físicos) em sua totalidade. Ainda assim, é possível que se perceba nesses casos uma espécie de unidade singular, um conjunto estético que nos possibilita caminhar do Ponto A ao Ponto B sem maiores embaraços. Quer dizer, se você assistir a um filme de Ozu, de Ford ou de Mekas, por exemplo, — diretores cuja filmografia ultrapassa facilmente a casa dos 50 filmes —  irá encontrar uma estrada luminosa a ser trilhada. É possível que ela não se apresente com facilidade, mas, certamente, ela estará lá — atravessando as mudanças de suporte, os apertos no financiamento, as transições entre a película, o vídeo e o digital. Entretanto, há casos em que as largas filmografias sofrem alterações inestimáveis, em que os autores não parecem contentes em investigar tão somente uma espécie de modelo estético-narrativo. Esse é o caso da obra do professor, pesquisador, crítico e cineasta Marcelo Ikeda, em que curtas, longas e videocartas formam um conjunto de mais de 50 obras audiovisuais, muitas delas distintas entre si. Este texto procura ser uma espécie de porta de entrada, ou, como o título melhor traduz, um glossário para essas obras, o que nada mais é do que uma celeuma de elementos poéticos, humanos e cinematográficos que o leitor poderá descobrir nos filmes de Ikeda. Pois bem, comecemos por dentro, pela redoma.
  1. O Castelo: Os filmes de Marcelo Ikeda seguem uma estrutura bastante confidencial. Eles são íntimos, provenientes de um espaço interior, muitas vezes confinado. Quartos pequenos, paredes de hotel, cômodos solitários, paisagens estáticas. Volta e meia esses elementos retornam, trazendo-nos uma noção cabal de solidão, de resguardo e, sobretudo, de intimidade. Ou seja, ao vermos os filmes de Ikeda, estaremos vendo também um pedaço de sua alma, uma partícula de seu cotidiano, um canto de seus anseios. É um cinema de partilha, que escolhe dividir com o espectador aquilo que, de modo ou outro, o contorna e confronta enquanto sujeito. Depois da noite (1999), seu primeiro filme, já transporta esse elemento logo de cara, mas é algo que surge mais substancialmente nos filmes seguintes, como Casulo (2000), Alvorecer (2002), Cinediário (2004) e Diário de uma prostituta (2008). Em quase todas essas obras, o cineasta é obrigado a encarar a imagem dura de seu próprio mundo — o que está em jogo não é mais aquele Real que André Bazin trazia em seus estudos, mas sobretudo um Real outro, um Real de si. A dilatação espaço-temporal do cinema de Ikeda promove essa sensação, e nos obriga a lidar com pequenas figuras de seu imaginário, contornando um sentido primário que elementos anteriormente banais teriam. Daí, os cenários transformam-se em um castelo particular, uma armadura onde se esconde o cineasta. As paredes transformam-se em véus, e as janelas tornam-se a porta de fuga para outro mundo. Os filmes citados buscam olhar para si como se estivessem a confessar algo, como se o realizador nos contasse: “este é meu universo, o que lhes posso oferecer”. Sem perdas ou danos, mas sobretudo íntimo, apegado. E é aí que surge a narração, que nos permitirá libertar-se do casulo.
  1. O Cântico: Boa parte dos filmes de Marcelo Ikeda tem a presença de uma voz — a sua própria voz. Essa voz, no entanto, não é mera acompanhante das narrativas, ela é a espinha dorsal que interliga corpo e espírito dos filmes. Nesse ponto, é crucial que se compreenda uma coisa: a voz de Ikeda não está ali como a de um mero registrador. Pelo contrário, é essa voz que, com frequência, dá o sentido poético das obras. É menos uma voz, objeto duro, e muito mais um cântico (objeto poético, de adoração). Pensemos em um dos mais importantes filmes de Ikeda, Diário de uma prostituta (2008), que intercala trechos do livro de Bruna Surfistinha (O doce veneno do escorpião) com três imagens centrais. Dessexualizada, a voz do cineasta se propõe a um corajoso desvelamento, ela toma posse do eu-lírico, que antes fora da protagonista do livro, e escolhe vestir sua roupa, encarnando seus anseios e transformando-os em altivez. Essa mesma voz aparece em tantos outros filmes, caso de Alvorecer (2002), Natal (2005), É hoje (2006) e Eu te amo (2006). Mas, antes de representar o eu, aquela voz representa os personagens de Marcelo Ikeda. É ela quem traduz à tela seus sentimentos, o motor dos conflitos e paradoxos que encarnam cada uma das versões do realizador frente aos anos que passam.
  1. A Melomania: Não são poucos os filmes de Marcelo cuja musicalidade tem um papel frontal. Impedido de se expressar de outros modos, o cineasta transgride as imagens através dos sons. Interpretações e reinterpretações evocam na camada sonora, corriqueiramente cravando o tom de melancolia nas cenas. É uma paixão que descobri não por conta de Marcelo mas por conta de seus filmes. Essa melomania confunde-se com o Cântico, anteriormente citado, produzindo uma elegia. Boa parte das canções dão conta da solidão, da tristeza, de uma incompatibilidade com o mundo que as próprias obras retratam. No entanto, é como se fosse através delas, canções — como se dá também com a voz do autor — que se estabelecesse um potencial de comunicabilidade que essas obras escondem. São gritos de socorro, garrafas lançadas ao mar. Se é um cinema que não raro pode remeter a um gesto solitário — a famosa ideia de cinema caseiro, tão cara a Ikeda —, seus filmes pelo menos evocam o outro, pedem por sua presença, e acusam: eu estou aqui.
  1. A Garrafa: O blog que Ikeda mantém ativo anos a fio na internet brasileira chama-se Cinecasulofilia. Espécie de jogo de palavras entre casulo e cinefilia, mas que também corrobora um gesto que seus filmes reafirmam: ele escreve por si, mas escreve para o outro. Independentemente de quem seja. É um sujeito que, tal qual seu cinema, anseia pelo gesto de dividir. Incontáveis vezes já ouvi Ikeda falar sobre a ideia de que seus textos são garrafas lançadas ao mar, oferecidas a quem possa interessar. O gesto de escrevê-los é um passo primeiro para encontrar um leitor. O mesmo se dá com a obra audiovisual: se Ikeda canta, desafina, escreve/produz videocartas, é porque está sempre à procura de um interlocutor. 
  1. O Mar: O outro. Ou, melhor, os outros. Difícil encontrar um filme de Marcelo Ikeda que não seja dedicado a uma — ou a várias — pessoas. Natural do Rio de Janeiro, onde iniciou a carreira de realizador, produziu uma série de cartas destinadas ao Ceará, para onde foi posteriormente morar. Se as obras são a Garrafa, poderíamos dizer que as cartas são o Mar. Toda garrafa precisa de um. Mas há um elemento interessante a ser ressaltado, que é a presença do próprio cineasta em cena em alguns desses episódios. Chamo a atenção de dois, que podem ajudar a concatenar melhor algumas peças de sua filmografia. Um primeiro é em uma de suas videocartas (Carta do Ceará 2016 #01), quando Marcelo finge tirar uma foto dos amigos e, na verdade, produz um de seus curtas. A imagem estática, cristalizada, talvez seja uma das primeiras vezes na filmografia do cineasta em que ele se materializa juntamente de outras pessoas, nesse caso, os membros do coletivo baiano CUAL. Deixa de ser uma voz que ilustra imagens, tonalizando-as; deixa também de ser o homem que segura a câmera. Agora, faz parte do mundo. Não do mundo cerrado de Cinediário (2004) ou de Eu te amo (2006), mas de um mundo mais concreto, formado por afetos, mais espírito que corpo. Algo parecido acontecia em Entre mim e eles (2013), meu longa-metragem preferido de Ikeda, que retrata os bastidores da gravação de uma das principais obras do cinema brasileiro neste século, Os monstros (2011), do Coletivo Alumbramento. Em suma, é nas Cartas do Ceará que Ikeda me parece filmar pela primeira vez esse Mar ao qual durante tanto tempo jogou as Garrafas. 
  1. A Teimosia: A outra passagem à qual gostaria de me referir, ainda falando sobre a série Cartas do Ceará, feita posteriormente às Cartas ao Ceará, é um momento em que um amigo de Marcelo, em Cartas do Ceará 2016 #3 (2016) diz: “Ikeda, deixa de ser cineasta e crítico de cinema e vem ajudar a empurrar o buggy!”. Na ocasião, uma trupe de amigos tentava desencalhar o automóvel da areia. Instigado a sair do campo artístico, imaterial, e tomar corpo frente à situação, Ikeda responde com o gesto de filmar. Me parece uma metonímia clara à sua obra — ou, pelo menos, penso, ressignifica um pouco essa batuta de fazer cinema. Ikeda tem, só de carreira, o que eu tenho de vida. E seus filmes já sofreram diversos desvios e modificações. Começou no VHS, passou pela fiel MiniDV, filmou em digital, em película e fez filmes de arquivo. Seu cinema simboliza justamente esse ato de teimosia, de filmar como sobrevivência, como diário, como registro de si. Sua câmera é uma extensão do corpo, mas sobretudo uma extensão do estado de espírito. A obra de Marcelo Ikeda contém imagens vivas, passeia pela natureza — Domingo no Parque (2008) — e viaja com o cineasta (as Cartas do Ceará de 2016 foram todas feitas em distintos lugares com diferentes pessoas, além dos dois longas de viagem, Desertum e Exôdo). É como se, para Ikeda, filmar fosse um gesto de relatar o que se viveu. Assim o vejo, e me parece justo entendê-lo assim. Se no jargão do futebol diz-se que “Joga-se como se vive”, para Marcelo aplica-se o “Filma-se como se vive”. Isto é, fica impossível separar as duas coisas — o jeito de ver o mundo e o jeito de exercer a profissão. É tudo sempre junto, misturado, remixado. Tudo parte de um mesmo propósito de existência.
  1. O Cineasta: Em uma de nossas conversas, comentei com Ikeda que gostava muito de seus filmes mais narrativos. O posto (2005) e O homem que virou armário (2015) talvez sejam os exemplos mais cristalinos. Lembro de perguntar por que Marcelo não filmava sempre assim. Não recordo com exatidão a resposta, mas entendo o dilema. E me parece mais justo que Ikeda seja visto como esse cara do cine-diário, mesmo que seu cinema vá além disso. Falo no sentido da síntese de sua obra, da presença de espírito que seus filmes possuem nesse sentido e que o próprio autor faz questão de reafirmar. No glossário, o item O Cineasta é para lembrar que Ikeda também poderia ser o sujeito que constrói filmes narrativos, pois domina com habilidade os espaços — coisa que parece ter herdado dos filmes de confinamento — como também tem um pulso narrativo bastante ajustado. Há, também, os filmes políticos (codirigidos com Fábio Rogério), que impõem menos essa parte melancólica do eu e partem para um riso ácido, mesmo que conservem justamente o caráter cinematográfico em si. Operam a montagem com justeza, pois compreendem muito bem a matéria bruta com a qual estão lidando. Afinal de contas, o cinema é também uma semântica, a qual Ikeda domina com sabedoria.
  1. O Leitor: Por fim, a única nota do glossário que não diz respeito ao Marcelo e nem ao seu cinema, mas sim ao autor deste texto. Quando fui convidado a escrever um panorama sobre uma obra da qual desconhecia em grande parte, confesso ter levado um susto. Primeiro, pois sempre admirei os trabalhos de Ikeda como professor, pesquisador e crítico, e, segundo, pois teria de lidar com uma imensidão de trabalho em um tempo escasso. Preciso dizer que foi prazeroso encontrar estas garrafas há tanto tempo jogadas ao mar. Acho que é o que reside de mais especial no cinema de Marcelo, esse gesto de repartir, de querer ser conhecido, ouvido, assistido. De ter humildade em colocar-se para o outro e de também saber-se deixar de lado. Entre mim e eles (2013) é um de meus filmes favoritos que Ikeda realizou e simboliza muito bem essas questões — poucas vezes um making of significou tantas coisas diferentes, abrangeu tantas camadas distintas, para o pessoal (Marcelo, sujeito) e para o profissional (Ikeda, realizador). Sei que faltaram abordar muitos filmes neste texto, filmes dos quais gosto, outros que até agora não sou capaz de formular alguma ideia mais concreta. Existem várias facetas nesse cinema, o experimental mais radical — Filme abstrato I (2005) e Filme abstrato II (2005) —, o lado ousado — Um assunto meio delicado (2016) —, o lado confessional, o narrativo, o poético, enfim. As garrafas no mar não faltam, e meu desejo é que não somente as garrafas aumentem mas sobretudo que, com a Retrospectiva do MAM, possam haver novos interessados em navegar por essa maré. Em conhecer outros lados de um artista que filma por necessidade, por inspiração, como ato de viver. Eis o cinema de Marcelo Ikeda. 

Rubens Fabricio Anzolin é crítico de cinema e curador. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), colabora regularmente com o Cine Festivais e com a Revista Multiplot!. É produtor do Levante – Festival de Curtas-Metragens de Pelotas e foi Assistente de Curadoria da Mostra de Cinema de Tiradentes. Mantém o blog materiaprimacinema.com.

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