por Tomás Farias
O tempo e a maré (Shun liu ni liu, 2000).
As primeiras imagens do futuro casal ressoam as penúltimas reverberações da criação. Entre as primeiras luzes do filme uma elipse fatia o vidro dos táxis debaixo do vômito. A gravidez e a rejeição natural fadada ao passado. Entre algumas armas, antes de muita dança, o sonho de alguma praia brasileira não prometia as últimas imagens da cidade. Não prometia a faísca perdida das explosões de cinema no território. O ultimato, por pretensamente enganoso que possa ser, provoca o repertório assaltado de raízes expostas do território. Um passeio de Chang Cheh a Wong Kar-Wai, conduzido pelos mais atraentes escorregões nos próprios pés.
Na assimilação de sua inerente interação histórica em acenos diretos, na digestão, na renovação, nas nuances que essa comunicação guarda dissolvidas nos respingos da fonte que inclui seu próprio cinema das décadas anteriores, Tsui Hark manipula algo da mais genuína singularidade (não exatamente por diferenciação, mas por organicidade) na dinâmica rítmica de O tempo e a maré. A composição preserva a vulnerabilidade de sua matéria, dinamiza a tensão que se realiza na incompletude, que pelo império de sua insatisfação se satisfaz plenamente. A necessidade absorve os estímulos do gênero, os estímulos dramáticos e imagéticos, se metamorfoseia e encontra um fim em si mesma, carrega certo desespero que se confunde com o cinema nas suas origens, no seu sustento e no abraço de seu primitivismo.
A urgência vaga, a urgência por e através do vagar preenche O tempo e a maré inflamando os núcleos que o amparam, conduzindo o balanço de suas estruturas. Necessário como o parto da mulher que agoniza escondida em meio aos tiroteios, como esvaziar a pistola nas costas do homem que aparece ali logo depois, como conhecer alguém e querer “tomar tudo que tiver nos bares da rua”, depois deixar dinheiro debaixo da porta desse alguém insistentemente, como fantasiar a fuga, como seguir o fluxo das pulsões que isolam a fantasia no campo da fantasia, pode ser surpreender alguém com uma arma falsa e acabar com a luz de um grande evento. A indeterminação da bolha que se esvazia das incitações e inspirações mais ordinárias que canalizam sua ardência até a efemeridade do estouro deságua no trêmulo alinhamento entre subjetividades, nas conexões que se entortam para acolher o desejo desabitado que se ocupa da mecanização rebelde dos tiroteios, dos deslizes, da fisicalidade dos deslocamentos e da ação, do atrito no movimento das coisas.
A explosão que verte os atores no tempo, que fabrica o tempo nos atores, é ramificada pela câmera no ritmo da desocupação, a energia desenfreada se expande invertendo o sentido que se poderia atribuir a um acontecimento às ações, gestos e desvios em si mesmos, o frenesi leva os momentos ordinários, as pancadarias e tiroteios ao flerte com o ócio pela concretização que, antes de tudo a que pode servir, e a que serve justamente pelas vias dessa inversão, basta a si mesma. Tsui Hark organiza o espaço pela implosão rítmica dessa concretização, a brevidade que orienta, contrapesa as relações causa-efeito, a maleabilidade instalada na ação para que esta possa quase escapar à fruição, a montagem que fragmenta a pele, sobrepõe espaços nos próprios espaços, expande os posicionamentos pela concentração e aproxima espaçamentos nas elipses, tudo que a plasticidade oferece se o tempo não a permite se fechar em nada.
A ternura conquista pelo espanto, pela atração de uma intimidade velada pela câmera de Tsui Hark quando delineia as feições dos atores com sua delicadeza quase cansada, quando se insere na ação acolhendo as vibrações mais dispersas, entendendo a beleza digressiva dos apelos do gênero e estendendo-a ao mundo que escorre a partir de si. Fabricando a espontaneidade dos momentos de conexão contrastados com o desconforto diluído que não falha em criar clima, em fazer dessa indeterminação emocional a própria conexão, espremendo as faíscas entre as rochas concisas da digressão, vestindo os sentidos opostos que se esticam para frente quando os pés flutuam no plano final, a câmera de Tsui Hark faz maleáveis os limites do próprio filme, que encontram todo o próprio cinema.
Este artigo faz parte da rubrica Gêneros ao redor do mundo, como parte da programação que a Cinemateca do MAM promove em junho de 2023.