por Henrique Quadros
A roda (La Roue, 1923).
A engenharia de um cinema do futuro
“Existe o cinema antes e depois de A Roda assim como existe a pintura antes e depois de Picasso” é uma frase comumente citada de Jean Cocteau para descrever o peso que o filme de 1923 realizado por Abel Gance tem para a história do cinema. Outros intelectuais também reconhecem a sua importância: Sergei Eisenstein e G.W. Pabst têm Gance como uma de suas principais inspirações, Jean Epstein descreve o filme como um dos mais belos do mundo, Akira Kurosawa disse que foi o primeiro filme a impressioná-lo. Muitos reconhecem D.W. Griffith como o criador do cinema hollywoodiano, mas está na hora de eleger Abel Gance como o criador do cinema avant-garde, o cinema do futuro.
Como muitos associados ao cinema avant-garde francês, Gance via a possibilidade de reentender e avançar a forma como se concebia o cinema e a linguagem. Enquanto os soviéticos estavam inventando a universidade de cinema no começo da década de 1920 e incorporando os estudos do então revolucionário “efeito Kuleshov”, Gance estava botando em prática essas mesmas teorias de montagem e composição que ainda só existiam no papel do outro lado do rio Reno.
Já no prólogo de A roda há uma sequência que pode parecer bastante familiar para os conhecedores da montagem soviética. Em uma ferrovia francesa, dois trens entram em colisão. Graças ao socorro imediato do personagem principal, o engenheiro de locomotivas Sisif, a catástrofe foi desescalada e a vida de algumas das pessoas envolvidas foi salva, uma delas uma criança inglesa chamada Norma, que perde a mãe no acidente e é sigilosamente adotada por Sisif como sua filha e irmã de Ellie, filho biológico de Sisif que tem a mesma idade da menina. Esse prólogo estabelece todo o drama do resto da história, mas também apresenta a genialidade de Gance em construir através da montagem (realizada pela montadora Marguerite Beaugé, que também montou A Paixão de Joana d’Arc de C. T. Dreyer) o espetáculo horripilante de ver dois trens imensos colidindo, quebrando, explodindo, e fundindo-se ao sangue e ferro quente. Através de cortes rítmicos, rápidos, e drásticos uma colisão é transformada em um evento apocalíptico. Não seria surpreendente descobrir que Eisenstein estudou essa abertura antes de dirigir a sequência final de A Greve ou a cena da escadaria de Odessa em Encouraçado Potemkin.
Também vale notar o uso mais simbólico da montagem na obra. Isso é um elemento constante no trabalho de Gance até em seu filme anterior, Eu acuso! (1919). Há uma construção imagética através de diversas técnicas cinematográficas para reforçar ideias como a relação entre o trem e a obsessão, Norma e a natureza, Sísifo e as ferrovias etc. O próprio título do filme é uma alusão a uma metáfora de Victor Hugo mencionada na abertura: “Eu sei que a criação é uma Grande Roda que não pode se mover sem esmagar alguém!”. Assistir A roda é ver um conjunto de signos se entrelaçando e formando uma rede de significados até conseguirem vida própria. A câmera apresenta tudo em relação aos seus signos, o trem em relação a Sísifo, Norma a flores, Ellie aos seus violinos, Hersan ao seu dinheiro. Até um ponto em que um trem, um violino, ou uma rosa passam a sinalizar tudo que foi a eles associado ao longo de múltiplas horas. O efeito é que o espectador passa a pensar na própria linguagem ganciana e aprende a ver os símbolos como superiores ao drama. Quando o filme conclui, o que se desfecha é toda a lógica imagética que o espectador carregou até o final. Um trem de brinquedo caindo no chão é a resposta para um milhão de metáforas. E para Gance essa era a forma mais profunda de cinema, quando se para de assistir de forma racional e se transcende para um processo quase que espiritual de ver o que está além da tela.
Depois de A roda, sua obra seguinte foi o épico Napoleão, de 1927, que para muitos representa não só o ápice da carreira de Abel Gance, como do cinema avant-garde francês, e até do cinema silencioso. Mas, ao mesmo tempo, 1927 é o começo do fim para o cinema mudo, e a partir daí Gance teve muita dificuldade de adaptar seu estilo para a nova indústria. Há quem diga, no entanto, que ele sempre lutou contra o próprio meio que ele ajudou a avançar. Napoleão, por exemplo, foi originalmente produzido para ter a duração de mais de 9 horas. Foi reduzido para 5 horas e meia, e depois 2 horas, até ter 90 minutos. Gance teve muita dificuldade para conseguir a distribuição de uma obra tão longa, e acabou cedendo à pressão de cortar 90% do filme. O mesmo aconteceu com A roda, que foi remontado e reduzido de 9 horas para 2, mas como o diretor criou versões diferentes do filme ao longo de anos, eventualmente foi possível reconstruir uma cópia que fosse próxima em duração da original de 1923. Em 2006 a Lobster Films encabeçou a restauração da versão de 4 horas de duração, usando negativos russos e franceses. Essa é a versão mais conhecida atualmente, que foi lançada em DVD em 2008. Em 2019 as Cinemateca Suíça e a Cinemateca Francesa participaram junto com a Pathé e a Fundação Jérôme Seydoux-Pathé na restauração de uma outra versão, ainda mais longa, de 7 horas.
Nos créditos iniciais do filme, há um plano próximo do rosto de Abel Gance encarando a câmera. Teóricos e historiadores interpretam isso como a “assinatura do autor” em sua própria obra, e embora essa seja provavelmente a leitura correta, é interessante também pensar que no momento em que um público em uma sala de cinema em 2023 olha nos olhos do homem de um século atrás, é a oportunidade que Gance teve de se imaginar olhando para o cinema do futuro que ele mesmo buscou construir. 100 anos depois, o seu olhar encontra o nosso.
Este artigo diz respeito à rubrica Aconteceu 100 anos atrás, e A Roda de Abel Gance faz parte da programação que a Cinemateca do MAM promove em junho de 2023.