O preço de um homem, de Anthony Mann

por Pedro Serpa

O preço de um homem (The Naked Spur, 1953).

O preço de um homem se inicia com um tema musical ameaçador e a figura de um homem cujo rosto não vemos, mas que aparenta ser um fora da lei antes de qualquer outra coisa. Primeiríssimos planos de sua espora e de seu revólver evidenciam que se trata de um homem belicoso. Acontece que esse homem é James Stewart. Já nesse momento, Anthonny Mann coloca o espectador em uma posição de dúvida. Como poderia ser James Stewart ameaçador? Mann saberá explorar a figura de Stewart como poucos, e o colocará em uma posição de ambiguidade.

Howard Kemp (James Stewart) é rancoroso e está disposto a tudo para reaver um rancho que perdeu ao ser enganado por sua mulher, que fugiu com outro enquanto Kemp estava na guerra. Para isso, ele precisa de dinheiro, e é caçando recompensas que ele o busca. Quem ele persegue é Ben (Robert Ryan), que parece ser a pura reencarnação do diabo. Contudo, não é desde o princípio do filme que sabemos de tudo isso. Em um primeiro momento, Howard apresenta-se para Jesse (Millard Mitchell) e Roy (Ralph Meeker) como um oficial que busca o responsável pelo assassinato de um colega. O espectador, naturalmente, não pode duvidar de James Stewart e também é enganado. É apenas no momento da captura de Ben que a verdade é revelada aos dois “sócios”, de modo que se instala uma atmosfera de desconfiança entre os três. Como Ben faz questão de relembrá-los: “o dinheiro se divide melhor entre dois do que entre três”.

Com suas falas maliciosas, o antagonista capturado – que não poderia ser interpretado por outro ator que não fosse Robert Ryan – faz questão de colocar em dúvida a lealdade do recém-formado trio. Para isso, não precisa introduzir novas ideias, apenas – como um escultor que já vê a escultura no bloco de mármore e só precisa retirar os excessos para que a obra de arte apareça – traz à tona aquilo que já povoa o inconsciente de Kemp, Jesse e Roy. Daí a força de sua provocação: tudo que ele ardilosamente fala é verdadeiro.

Ainda que a vilania de Robert Ryan seja destacada, os outros quatro personagens estão longe da figura heroica comum aos faroestes. Roy cria um conflito armado desnecessário com os indígenas, Jesse acaba por trair os demais em razão de uma promessa de ouro, Lina (Janet Leigh) ora pende em favor de Ben, ora em favor de Kemp, mostrando-se pouco fiel a ambos, e Kemp, como já dito, está disposto a trocar a vida de um homem que mal nenhum lhe fez por dinheiro.

O título traduzido do filme – em oposição ao abstrato título original The Naked Spur – de certo modo é o sopesamento que Howard deve fazer: qual o preço da vida/morte de um homem? O que a vida/morte de um homem pode comprar? Ao fim sabemos que a morte de um homem não pode levar verdadeiramente a nada. “Choosing the way to die, what’s the difference? Choosing the way to live, that’s the hard part” diz Ben [“Escolher a forma de morrer, qual a diferença? Escolher a forma de viver, essa é a parte difícil”]. É o seu way to live que, uma vez atingido o seu objetivo, Kemp deve escolher. E é por meio de sua relação com a personagem de Janet Leigh que ele muda.

Lina, a princípio aliada de Ben, aproxima-se de Howard, sendo o momento mais belo entre os dois aquele na noite chuvosa na gruta em que os pratos e canecas expostos à água fazem uma estranha música. Ocorre que, nesse mesmo momento, ela distraía Kemp para possibilitar uma malsucedida tentativa de fuga de Ben. Howard não pode crer que durante aquele romântico momento ele estava sendo traído, “it just happend that way” diz ele.

É no maravilhoso final que há a reconciliação. De Kemp com Lina e também dele com o mundo. Mas, antes disso, a queda da sociedade. Jesse é morto por Ben após cair em uma armadilha em que o facínora valeu-se da ambição que Jesse possui por ouro. Por sua vez, Roy, ao tentar buscar posteriormente o corpo do antagonista na correnteza para resgatar a recompensa, é levado por um toco de árvore. Salvou-se o morto e matou-se o vivo. Kemp vê-se, portanto, no cenário ideal: com a recompensa e sem sócios. Contudo, Lina está lá, e é ela quem faz a diferença. Não se pode viver às custas da morte de um homem. Kemp desamarra o corpo de Ben do cavalo e passa a cavar uma cova para o oponente. Ele não levará o cadáver de volta a Abilene. A espora de sua bota jamais tocará o chão do seu antigo sítio outra vez. Howard Kemp escolheu um novo modo de viver.

Este artigo diz respeito à rubrica Incontornáveis, e O preço de um homem de Anthony Mann faz parte da programação que a Cinemateca do MAM promove em setembro de 2023.






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