19 de março de 2024

Escultor do Tempo

artigo de Gustavo Martins de Almeida 

Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Pós-doutorando em Direito pela USP. Membro da Comissão de Direito Autoral da OAB. Atua na área cível e de direito autoral e digital.

Introdução
A inauguração da Exposição “Lugar de Estar”, sobre o Legado de Burle Marx, no MAM Rio suscita algumas reflexões sobre o Paisagismo, com viés jurídico, pouco aplicado a esse ramo de atividade profissional e artística. Trago aqui algumas anotações sobre o tema, que podem ser úteis ao visitante e apreciadores desse nobre ofício.

Ordem, estética, visão holística, originalidade, multiplicação, fertilidade; o direito e as obras artísticas formam conjunto singular em que as criações são admiradas  e protegidas pelo sistema jurídico.

História 
A história está vinculada à terra, ao mundo vegetal, seja pelo sustento da agricultura, que contribuiu para fixar territorialmente povos nômades da antiguidade, até as experiências biotecnológicas de hoje.

Nesse longo período intermediário, os jardins da Grécia e de Roma já misturavam elementos decorativos e comestíveis, flores, arvores frutíferas e também as topiarias; arte de podar arbustos de modo a que planta adquirisse contornos com formas geométricas ou de aparência de animais.

Os jardins orientais pregam a serenidade, entremeados por  fluxos de água, as pedras, o musgo, a estabilidade, numa visão poética e harmônica. 

Já os jardins europeus, que complementavam os castelos, primam pelas cores e desenhos geométricos, dos quais são exemplos os de Versailles e Schönbrunn.

Enfoque legislativo
Essa integração entre os elementos da natureza, dos reinos vegetal, mineral e animal; das plantas com o homem, seja como ornamento, seja como alimento, recebe a proteção do direito, sob vários ângulos.

A proteção do paisagismo começa na Constituição Federal, ao estipular, em seus arts. 23, III e 24, VIII a competência da União, em concurso com Estados, Municípios e Distrito Federal, para essa atividade.

Ainda estipula a Constituição Federal que “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

……………………………………….

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

A Constituição do Estado do Rio de Janeiro ( art. 73 , VII  – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico) e a Lei Orgânica Do Município do RJ (art. 30, XXX – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico, cultural, turístico e paisagístico, as paisagens e os monumentos naturais notáveis e os sítios arqueológicos, observadas a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual; ) determinam o amparo jurídico as obras e aspectos paisagísticos do Estado e da  cidade. 

Na Convenção de Berna para a proteção das obras literárias e artísticas, que existe desde 1886,  foi revista pela última vez em Paris, em 1971, e da qual o Brasil é signatário, constam como “obras literárias e artísticas”, todas as produções do domínio literário, cientifico e artístico, qualquer que seja o modo ou a forma de expressão, tais como os livros, brochuras e outros escritos; destacando-se, para o presente artigo: “os projetos, esboços e obras plásticas relativos à geografia, à topografia, a arquitetura ou às ciências.” (Art. 2º, 1, Decreto no 75.699, de 6 de maio de 1975).

A lei de direito autoral em vigor, Lei 9.610/98, acrescenta um item no seu art. 8º, inc. X, justamente: – os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência;

Portanto a proteção aos projetos paisagísticos é garantida pela Constituição Federal, e no caso do Rio de Janeiro, pela Constituição estadual e Lei Orgânica do Município do RJ, além das leis de direito autoral brasileiras.

Projeto 
O projeto de paisagismo caráter dúplice. Enquanto projeto desenhado em papel, ou executado em maquete, ou expresso em produto de software, o artista/autor tem pleno liberdade e domínio sobre a criação, podendo representá-la da forma que seu intelecto e experiência imaginarem.

No entanto há um fator relevante e estranho ao projeto, não controlável de todo, que é o desenvolvimento efetivo das plantas, nem sempre coincidente com o desenho concebido pelo autor.

Como aquele espécie desenhada em certa escala vai, depois de certo tempo, adquirir determinada forma e cor, cuja interação com outras plantas deverá resultar no efeito desejado pelo autor do projeto? A experiência do paisagista prevê determinada forma, resultante do desenvolvimento das espécies vegetais constantes do projeto original.

Para ficar nos exemplos brasileiros o destaque do Rio de Janeiro é o Parque do Aterro do Flamengo, cujas formas sinuosas encontram poucas semelhanças no mundo. Atribuída a autoria do Parque do Flamengo à  paisagista Carlota de Macedo Soares, amiga do governador do então Estado da GuanabaraCarlos Lacerda, o projeto paisagístico foi entregue a  Roberto Burle Marx, que executou obra ímpar, verdadeiro patrimônio artístico. Tombado pelo IPHAN em 1965, não pode ser alterado em sua composição estética.

Ainda temos, no Brasil,  Inhotim, Parque Ibirapuera e muitos mais. No mundo os exemplos de Kew Gardens e Versailles simbolizam a beleza dessa arte.

Em  outubro de 2019  comemorou-se a única  floração de frondosa  palmeira cinquentenária originária da Índia, denominada “talipot”  existente no Parque do Flamengo, cuja inclusão naqueles jardins fez parte do projeto de Burle Marx*…

O tempo foi seu aliado no surgimento dessa beleza natural, cujo desenvolvimento vai reservando surpresas, ditadas pelas leis – e suas variações – da natureza. Já o projeto paisagístico é protegido pela lei de direito autoral muito antes da floração da arvore; basta a concepção da obra, ou, no dizer de José de Oliveira Ascensão, falando sobre a obra de arquitetura, em parte que pode ser aplicada ao paisagismo: “obra de arquitetura na não é a construção na sua materialidade, mas a realidade incorpórea, incarnada na construção.”**.

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https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/10/21/palmeiras-plantadas-por-burle-marx-ha-meio-seculo-finalmente-dao-flores-no-rio.ghtml

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Direito de autor e direitos conexos, Ed. Coimbra, 1992, p. 499

A profissão
A formação do paisagista envolve, como se disse, dentre outras disciplinas e objeto de estudo, o meio ambiente, arquitetura, biologia, clima e estética. Não exige curso superior, embora exista o da Escola de Belas Artes da UFRJ, mas existem várias pós-graduações sobre a profissão no Brasil

Landscape architect nos Estados Unidos, architect paysagiste na França, a profissão vem crescendo de importância devido à maior atenção da população e dos dirigentes públicos e privados  para os centros urbanos. Amenizar o espaço visual, integrar área vegetal na cidade de concreto, estreitar a relação do homem com os jardins da cidade, já que os espaços dos imóveis mal comportam áreas comuns, são fatores de redução de temperatura e poluição nas cidades, além de favorecer a estética da urbe.

A  The Cultural Landscape Foundation (TCLF), sediada em Washington, EUA , instituiu em 2019 um prêmio bienal de paisagismo de US$ 100,000,00, concedido a partir de 2021. Os aspectos de transportes, poluição, adensamento urbano são os mais gritantes problemas do paisagismo, já que alguns centros urbanos sofrem crescentes e significativas alterações.

Seja de interiores, com arranjos florais que ornamentam o Metropolitan Museum de NY, por conta de doação para esse fim específico, seja de centros urbanos, o paisagista desenvolve seu talento para obter soluções na área de integração do homem com o espaço de moradia, trabalho, circulação e prazer estético.

Criação e Transferência de obra.
A questão referente a transferência da obra criada guarda uma certa singularidade. O paisagista pode transferir o resultado do seu projeto para uma pessoa, ou, o que normalmente ocorre, incorporar sua arte ao terreno do entorno de determinado imóvel (castelo, casa, prédio), preservando o direito moral sobre a obra, como diz o art. 24  da LDA.

Destaque-se que o arquiteto transfere o direito material, patrimonial sobre a obra, isto é o de exibi-la, etc. e não o de reproduzi-la fisicamente, na prática fazer outro jardim, para o que é necessária sua prévia e expressa autorização. 

Já houve caso de  solicitação reprodução por tempo determinado de projeto de jardim em outro continente, em Bienal de arquitetura. Trata-se de reprodução efêmera – relativamente ao tempo de desenvolvimento de um jardim, que é necessariamente longo – já que tradicionalmente  efêmeras são, por exemplo, as esculturas de gelo e areia, os tapetes de flores, os fogos de artifício e as performances*.

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Art. 26. O autor poderá repudiar a autoria de projeto arquitetônico alterado sem o seu consentimento durante a execução ou após a conclusão da construção.

Direito moral
Nesse breve apanhado temático resta falar do direito moral do autor em projetos paisagísticos. O autor do projeto pode, a qualquer tempo, reivindicar  a obra como sua; impedir que terceiros usurpem seu nome, ou até solicitar que seu nome seja desvinculado da obra criada, pois alterações, por exemplo, na forma de um jardim, podem não corresponder aos critérios concebidos pelo autor, na consecução de seu trabalho original.  

Veja-se que a lei 9.610/98 estipulou pena significativa proporcional ao dano. O dono pode alterar a obra paisagística elaborada pelo arquiteto, o que é relativamente fácil em seu início, mas se tal alteração afeta o trabalho do paisagista, este pode repudiar a paternidade da obra.

Perspectivas de reprodução em logradouros públicos

Assunto polêmico é representação de um jardim situado, por exemplo, em logradouros públicos.

Diz o art. 48. da lei brasileira de direito autoral que: ”As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.”.

Ora, o jardim amador, cuidado  periodicamente, sem grandes sofisticações na sua concepção, não está acoplado a logradouro público, mas um jardim centenário, praticamente impossível de ser movido dado o enraizamento das plantas e sua identidade visual para a cidade, pode, por lei, ser representado livremente, pelos meios apontados.

A representação tridimensional não poderia ser feita, isto é um novo jardim ou mesmo uma maquete – salvo como demonstração para deficientes visuais e para ensino  já que a réplica do jardim  original, sem autorização do autor não é possível (art. 39, LDA).

Parágrafo único. O proprietário da construção responde pelos danos que causar ao autor sempre que, após o repúdio, der como sendo daquele a autoria do projeto repudiado.

Matéria Prima
Outro aspecto periférico ao paisagismo diz respeito à sua participação na economia mundial.  77% dos bulbos exportados no mundo inteiro pertencem à Holanda*, que tem 40 % do comércio de floricultura mundial, sendo o primeiro país exportador nesse setor.

No Brasil, o município de Holambra concentra 40% da produção nacional de flores, tem IDH alto e altíssima segurança e renda. Tais fatos mostram a importância dessa matéria prima para o paisagismo.

Ainda se pode falar sobre Cultivares, criações de plantas com características singulares, protegidas pela Lei 9.456/97, e as  sementes enriquecidas, comprovando a evolução tecnológica nesse setor.

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https://www.hollandtradeandinvest.com/key-sectors/horticulture-and-starting-materials/horticulture-facts-and-figures

Conclusão
O tempo mostra que a paisagem urbana se enriquece pelos complementos florais e o profissional desse ramo se valoriza com a demanda de espaços mais agradáveis ao ser humano.

A oportunidade de testemunhar o processo de criação dessas verdadeiras obras de arte, o seu resultado e saber da significação social e jurídica desses itens constitui atrativo especial para a exposição O Legado de Burle Marx.