Oficinas e arquivo audiovisual: Espaços de criação e identidades queer

Todos os bairros possíveis, de Matteo Giampetruzzi (Itália, 2024)

Sumário

Apresentação, por Luiza Rosado

Memórias sem-vergonhas, Buenos Aires, 1979, por Alejo Duclós
A Raiz, por Isa Sáez Pérez
Sou uma lésbica deste país, por Rocío Llambi

Apresentação
por Luiza Rosado

100% Basco, de Amets Zulueta (País Basco, 2024)

Em homenagem ao Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual, a Mostra Oficinas e arquivo audiovisual: espaços de criação e identidade queer apresenta, ao longo do mês de outubro, uma seleção de curtas-metragens desenvolvidos em oficinas de criação cinematográfica a partir de arquivos digitalizados, em colaboração com instituições de memória audiovisual. Do trabalho realizado na Universidade do México à oficina “Memorias Sinvergüenzas – Taller de Resignificación Queer”, organizada com apoio da Filmoteca Vasca, da Tabakalera e de Elías Querejeta Zine Eskola, os filmes revelam como cineastas de diferentes países vêm mobilizando ferramentas arquivísticas para narrar histórias regionais e fazer emergir memórias dissidentes, ampliando o diálogo sobre o papel do arquivo na construção da cultura contemporânea.

As obras selecionadas reativam pontos de encontro e encruzilhadas, recuperam contos de resistência em contextos de repressão política e convidam o público a revisitar seus referenciais regionais, reconhecendo nas identidades de outras gerações a força que abriu caminhos para que vozes dissidentes possam se expressar em liberdade.

Durante essas oficinas, os diretores tiveram acesso aos mesmos materiais, e em cada projeto desenvolveram obras completamente diversas entre si, tanto em seus temas como em sua estética. A partir desses arquivos, cada participante utilizou-os tanto como base de apoio para rememorar vivências, voltar atrás em histórias que já conheciam, imaginar eventos que poderiam haver acontecido, e buscar pessoas reais que estão presentes nas imagens.

Ao retomar o conceito de Glissant de opacidade, daquilo que está presente e não permite que a luz passe totalmente, e que, no entanto, abre caminho para o que se pode desentranhar do íntimo, a autora Maria Rosón, no livro Memoria & deseo (2024),  fala como a opacidade do outro ajuda a admitir o próprio inenarrável. É a busca incessante na recordação externa que ajuda-nos a suportar as nossas próprias feridas. Dessa maneira, as oficinas servem como uma porta para o desejo se transformar em obra, ao dar oportunidade para iluminar o que está no fundo da memória. 

As imagens de arquivo conseguem despertar o desejo de criação de fantasias, do jogo, da possibilidade de inventar acontecimentos na vida de pessoas que nunca conhecemos, e que projetamos independentemente do real. Ver imagens do que já passou permite criar um futuro do que pode acontecer, ou convida a construí-lo coletivamente. Karen Plata, no seu filme Ensaios de Corpos Ausentes, apresenta uma história pessoal, familiar, que se cruza com um acontecimento histórico que nunca se passou. E se a partir dessa invenção deste evento histórico fictício, nos reunimos para criá-lo de fato? Karen convida o público a fazê-lo.

Em 100% Basco, Amets Zulueta recorre ao livro da autora basco-francesa Itxaro Borda, 100%Basque, para rememorar os primeiros contatos sáficos da autora durante a ditadura franquista espanhola, em que atividades culturais tradicionais do país basco, assim como ser homossexual, eram proibidas. Dentro das metáforas do dia a dia, a autora apresenta os paradoxos de sua identidade, e o perigo de ser o que era dentro de seu contexto político. Amets interpõe imagens de festas e eventos populares bascos que ilustram esses acontecimentos narrados por ela.

A obra Memórias sem vergonha, Buenos Aires, 1979, de Alejo Duclós é baseada em uma obra textual sobre a vida cuir durante o período ditatorial argentino. É apresentada a vida secreta das teteiras, ou os banheirões, como os chamam no Brasil. O termo refere-se ao espaço de intimidade em que homens cisgênero, travestis, maricas reúnem-se casualmente para colocar seus desejos para fora. Este espaço proibido, desde uma perspectiva heteronormativa castradora, chega ao seu ápice na comemoração da Copa do Mundo de futebol, onde os homens que estão comemorando um título, celebram a si mesmos e a seus corpos. O relato também recorda o espaço de festejo onde as locas, bichas, poderiam ser o que quisessem fora do lugar público, e celebra como a luta por esse espaço resultou quando vê novas gerações sendo o que são abertamente nos desfiles do Orgulho LGBTQ+.

À sua própria maneira, Matteo Giampetruzzi traz à superfície as fronteiras dos ambientes do cruising, dos lugares sabidos do boca-a-boca para encontros sexuais que não podem existir dentro de casa, mas onde é possível ser e experimentar o íntimo em certas localidades. Todos os Bairros Possíveis imagina exatamente onde e como se dão esses encontros, e como são lugares onde o senso de comunidade, algumas vezes marginal de centros de classe alta, se constroem em coletivo.

Já o filme A raiz, de Isa Sáez Pérez, retoma as memórias com sua avó, em que há o reconhecimento dos passos dados por gerações anteriores para a maior liberdade sexual de mulheres nas próximas gerações. Isa relembra uma conversa que tiveram, na cozinha, e mistura sua memória afetiva com descobertas de identidade pessoal, mostrando sua busca contínua por identificação, nas rachaduras onde a opacidade entrou.

O curta-metragem Sou uma lésbica deste país, de Rocío Llambi é a busca de uma pessoa real a partir de uma fotografia do primeiro desfile do Orgulho LGBTQI+ no Uruguai, em 1993. Trata-se de uma pessoa com um lenço árabe, ou Keffiyeh, escondendo seu rosto, que segura em suas mãos uma placa em que lê-se: “Não sou muçulmana. Não sou iraquiana. Sou uma Lésbica desse País.” A partir da leitura, entende-se que o uso do lenço está associado a identidade muçulmana e/ou iraquiana, e que por identificar-se como lésbica, tem de esconder sua identidade. Essa frase, apesar de dar ênfase à luta pela visibilidade lésbica, abre margem para uma interpretação anti-árabe e anti-islâmica ocidental, em que as identidades se confundem com o uso do lenço. Apesar da dupla interpretação da placa, é necessário esclarecer, principalmente neste momento em que há um genocídio contra a população palestina em curso, que só um lenço não é o que determina a identidade nacional iraquiana, e muito menos a identidade islâmica. Se em 1993 esse era um discurso incorreto, continua sendo hoje.

A diretora chegou à oficina com a investigação em curso, criando um filme sobre esse processo, e como sua imaginação projetava e criava personalidades diversas para essa pessoa real. Já quando a diretora perdia as esperanças de encontrá-la, a mulher aparece, dando seu relato sobre o contexto da fotografia e suas convicções, também comentando em como acredita que a luta pelos direitos LGBTQI+ é contínua e se orgulha de ver novas gerações de lésbicas demonstrando afeto em público.

Walter Benjamin analisa a tecnologia da imagem dentro de um contexto histórico de eventos ininterruptos e que são inseparáveis de si. Se pensarmos nos eventos e na luta pelos direitos LGBTQ+ nas últimas cinquenta décadas, é a partir deles que nos iluminamos para seguirmos em luta.  As imagens nos ajudam a rememorar e resgatar processos históricos. No fluxo de acontecimentos, nos damos conta da transparência a partir do reconhecimento e identificação dessas conexões circulares. A identificação nos inflama a construir o mundo que queremos, ou o que imaginamos, reverberando gritos dados ontem, na construção do hoje.

Essa mostra busca, portanto, enfatizar a importância da utilização dos arquivos audiovisuais como ferramentas de resistência e criação, rememorando o que já foi e criando novos lugares para o desejo, a partir da memória. Com ela celebramos o Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual, valorizando a visibilização das identidades cuir também do patrimônio arquivístico audiovisual.

Memórias sem vergonha, Buenos Aires, 1979
por Alejo Duclós

Memórias sem vergonha, Buenos Aires, 1979, de Alejo Duclós (Argentina, 2024)

O curta-metragem Memórias sem vergonha, Buenos Aires, 1979 surgiu a partir de uma convocatória da Filmoteca da UNAM intitulada “Cuir: memória, identidade e dissidência”. Prática experimental e concurso internacional de curtas-metragens”.

Ao ser selecionado para este concurso, fiz parte de um grupo virtual coordenado pela cineasta Ximena Cuevas, com quem nos reunimos online para refletir sobre o cinema com material de arquivo. Nesses encontros participaram várias convidadas mexicanas, que compartilharam suas visões sobre o cuir e o experimental.

A ideia do curta-metragem surgiu a partir da leitura do livro Fiestas, baños y exilios: los gays porteños durante la última dictadura militar (Festas, banheiros e exílios: os gays portenhos durante a última ditadura militar), de Flavio Rapisardi e Alejandro Modarelli. O livro relata como, em plena ditadura, a comunidade LGTBQIA+ (neste caso, especificamente os gays) encontrava formas alternativas de se reunir e se relacionar: desde o cruising em banheiros públicos e “teteras” até festas clandestinas no Delta do Tigre. Apesar da repressão e das adversidades, a comunidade sempre buscou manter o orgulho de sua identidade e, ao mesmo tempo, celebrar a vida.

Trabalhando com material de arquivo da Filmoteca da UNAM, editei o curta-metragem no Laboratório Audiovisual de Tabakalera. Essa experiência mais tarde deu origem ao workshop “Memórias sem vergonha: Reapropriando-nos de nossa memória queer”.

A raiz
por Isabel Sáez Pérez

A raiz, de Isabel Sáez Pérez (País Basco, 2024)

Este curta-metragem é o resultado de uma oficina onde utilizamos material de arquivo familiar para discutir a memória LGBTQI+. Usei esse material para falar sobre como a falta de modelos nos faz construir nossa identidade. Sou quem sou graças à família que tive e à família que construí ao longo da minha vida com amigos e modelos de movimentos sociais que me fazem ser quem sou hoje. Eles me fazem refletir sobre a memória histórica e como, se a revisitarmos, podemos nos encontrar.

Sou uma lésbica deste país
por Rocío Llambi

Sou uma lésbica desse país, de Rocío Llambi (Uruguai, 2024)

O curta-metragem surgiu da oficina criativa “Memorias Sinvergüenzas”. A proposta era ativar uma série de arquivos a partir da pergunta: como queerizar um arquivo? Havia uma fotografia que me obcecava há muito tempo: uma pessoa com o rosto e o corpo cobertos e segurando uma placa de uma das primeiras Paradas do Orgulho Gay no Uruguai. Então, este curta-metragem se torna uma busca: quem é essa mulher, onde ela está e em quantos arquivos que não pertencem a ela posso encontrá-la? Mais do que uma apropriação de um arquivo, a metodologia foi uma reimaginação de um arquivo possível e parte de pensar o arquivo histórico como uma memória futura, com a capacidade de criar fabricações, atravessar o tempo e executar cenas. Queerizar um arquivo torna-se, então, uma contraproposta à lógica de catalogação, institucionalização e hierarquização para imaginar suas possibilidades.

Ensaios de corpos ausentes, de Karen Plata (México, 2024)

Este dossiê acompanha a mostra Oficinas e arquivo audiovisual: espaços de criação e identidades queer que a Cinemateca do MAM promove em outubro de 2025.





Acessibilidade | Fale conosco | Imprensa | Mapa do Site