O tempo nas instituições museais e a atuação da Cinemateca do MAM à luz do tema do Dia Internacional de Museus 2020: “Museus para a igualdade: diversidade e inclusão”
HERNANI HEFFNER
Baixe a versão em PDF para impressão.
Plateia na sessão de abertura do Cabíria Festival – Mulheres & Audiovisual em novembro de 2019 na Cinemateca do MAM. Fotografia de Paula Kossatz.
Instituições museais têm um importante papel em suas comunidades. De maneira formal, promover o acesso à informação, às coleções e à uma nova experiência individual ou coletiva do passado e do presente. Como instrumento de mediação, seu trabalho se concentrava até bem pouco tempo na organização de um discurso coerente e sancionado a respeito de um passado encerrado ou ainda em curso mas suficientemente delineado para ser compreendido como orgânico, definido, maduro. Fugiam desse escopo (ou camisa de força) justamente as instituições com perfil voltado para o contemporâneo, particularmente as do campo das artes, envoltas quase sempre na indicação de tendências presentes e futuras. Nesse sentido, e restringindo o leque de questões que podem ser levantadas em torno de perfis, diferenciações, estratégias e engajamentos, podemos continuar explorando primordialmente essa dimensão, o tempo. O museu clássico abstrai o tempo, sobretudo o imediato em suas tensões, contradições, pontos de vista, mudanças de paradigmas. O museu contemporâneo propõe ideias de tempo, ou melhor, não apenas ideias, mas também a percepção do tempo vivo em seus choques, afinidades, territorializações, disputas e encarnações.
Profundamente repensados ao longo do século XXI, sob o impacto do paradigma digital e da sociedade da informação, que aponta utopicamente para comunidades mais igualitárias em suas demandas e em suas oportunidades, os museus, em especial os de arte contemporânea, redefiniram objetivos, modos de atuação e principalmente públicos. A intenção é se tornarem cada vez mais inclusivos e diversos, mais autenticamente iluministas, ainda que agora a “destruição criativa” seja um paradigma tão importante quanto o da “formação”, o que nem todas as entidades admitem e praticam. O surgimento de uma cultura de “citações”, “samplers”, “mashups”, meta-obras e mesmo o apagamento da fronteira e da hierarquia entre os sujeitos e as criações abalou a cultura aurática, em especial a do mercado. O movimento de apropriação e deglutição das obras, de modo preponderante as famosas, com resultados como passeios em realidade virtual de anônimos cidadãos dentro de quadros e filmes, gravados e postados nos canais e redes de cultivo pessoal, impôs um reposicionamento e uma reinvenção das instituições que ao mesmo tempo coletam passado e presente e sondam o futuro – que palavra mais antiga sondar, do tempo da corrida espacial, que nem existe mais, ainda que bela; talvez devêssemos dizer mais contemporaneamente experimentar o futuro, acentuando o presente estendido da distopia atual. Não por acaso a estética, e os museus estão na berlinda. Divagações experimentais retrofuturistas.
O presente antigo e os paradigmas da atualidade
Museus de arte moderna (ao seu tempo em verdade contemporâneos) e contemporânea são naturalmente espaços retrofuturistas. No Brasil, sem dúvida, por conta da ambição de inventar um país futuro através da arquitetura e da cultura de um Modernismo no ocaso, desde pelo menos a década de 40 do século passado. Mas também pelo acúmulo temporal de coleções, ainda que de modo seletivo, com descartes e valorizações e revalorizações. Mais uma vez o tempo está no cerne da questão e se torna o desafio para modular o transe e o trânsito do presente. A dimensão performática se tornou inescapável da vivência museal contemporânea. Mas no século XX sempre houve uma outra forma de lidar com o tempo e suas variações, percepções, atmosferas e proposições, para além do percurso e de reações subjetivas às cores, formas, traços, dimensões, profundidades e outros elementos plásticos. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi uma das únicas instituições brasileiras, e mesmo mundiais, a considerar logo de saída o cinema como item da Modernidade, de um presente antigo que só fez se ampliar e se aprofundar sob outros arranjos e paradigmas na atualidade, deslocando a imagem em movimento e a experiência do tempo “acelerado” para o centro mesmo da vida contemporânea.
Ao contrário do estatuto original do Iphan que retirou o cinema da dimensão patrimonial, histórica e artística prevista no projeto de Mário de Andrade, o desenho institucional do MAM carioca proposto por San Tiago Dantas, em conformidade às idéias de Raymundo Ottoni de Castro Maia, repôs de forma estratégica e privilegiada a nova arte do tempo, reservando-lhe o estatuto de Departamento e logo Cinemateca, e não apenas circunscrevendo uma programação de filmes. Formalmente um arquivo audiovisual desde o começo de suas atividades em 1955, em conformidade com os preceitos da Federação Internacional de Arquivos de Filmes – FIAF, entidade à qual se filiará, a Cinemateca do MAM atuava originalmente em duas linhas, a do cinema como arte e o da história dessa forma de expressão artística. Foi identificada publicamente nas décadas seguintes como uma instituição de memória, de patrimônio, de preservação do passado audiovisual. Mas já em seus primórdios, ainda que de forma muito tímida, pode-se dizer que tinha uma dimensão mais ampla e afinada a uma política de valorização do presente e ao tema do Dia Internacional de Museus de 2020 – Museus para a igualdade: diversidade e inclusão. A inserção dentro de uma instituição museal pesou de um lado para o olhar atento ao contemporâneo e para a construção de uma difusão cultural que ultrapassava a noção de “clássico”, procurando influenciar os rumos da futura criação fílmica brasileira. A dimensão arquivística permitiria a coleta (não a exibição) de obras negligenciadas, isto é, “não artísticas”, como filmes de família, cinejornais, documentários, filmes industriais e outras modalidades não canônicas. Com isso, o acervo pode conter por exemplo o registro fílmico privado mais antigo de uma família negra brasileira de classe média, moradora da zona sul do Rio de Janeiro (entorno da avenida Visconde de Albuquerque, bairro da Gávea), realizado em cores por volta de 1956.
Convite para a terceira sessão de filmes promovida pelo departamento de Cinema do MAM, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa, em 6 de setembro de 1955. Acervo Cinemateca do MAM Rio
Entidade pensada para funcionar dentro de padrões canônicos, mas atravessada pela contradição de lidar com uma artesania tecnológica, de entretenimento e massiva, uma arte popular descartável, a Cinemateca descobriu sua primeira identidade pública mais forte pelo lado da inclusão. Nos anos 1960, optou pelo que ficava de fora do mercado, como as cinematografias contemporâneas da América Latina e do Leste Europeu, pela criação jovem, com a valorização e apoio de produção ao novo curta metragem brasileiro, pela promoção de cursos de formação e pelos longas metragens modernos, cinemanovistas e “marginais”, amplificando a crítica política à ditadura civil-militar e às elites dominantes. Irmanada ao museu com um todo como foco de resistência e dedicada ao cinema contemporâneo tanto quanto aos programas com filmes de arquivo que espelhavam a historiografia clássica, a Cinemateca incorporou sem muita distinção ou relevo raros filmes que revelavam diversidades de vozes, raças, gêneros e origens em formação na cinematografia brasileira. A periferia, por exemplo, ainda era apenas e tão somente a favela. Temas e não perfis identitários, de grupos ou coletivos dominavam a pauta de então. A centralização e a unidimensionalização como posturas curatoriais; de resto típicas naquele momento histórico em praticamente todas as instituições culturais.
Capa do Boletim de Outubro de 1957 do Setor de Cinema do MAM Rio. Acervo Cinemateca do MAM Rio
Capa do Boletim da Cinemateca do MAM Rio, de janeiro de 1959. Na capa cena do filme “Madame De…” (1953) de Max Ophüls. Acervo Cinemateca do MAM Rio
O padrão permaneceu o mesmo até fins dos anos 1980. O lento debate que se seguiu, e a mudança de posturas decorrente, tiveram no campo da preservação audiovisual a FIAF como caixa de ressonância privilegiada. Ressoando a pandemia da AIDS e a ascensão do New Queer Cinema, que levaram jovens curadores/programadores europeus a defender uma programação mais contemporânea e engajada socialmente, a entidade acolhe uma saudável querela do tipo antigos x modernos. Os inusitados desdobramentos revelam o quanto a dialética de inclusão/exclusão pode seguir por caminhos inesperados. Com a necessidade política de acolher e afirmar diversidades temáticas, culturais, geo-políticas, identitárias e de gênero, entre outras, uma agenda de feição intensamente contemporânea, acompanhada da igualmente necessária revisão dos paradigmas e cânones anteriores, quase excluiu a razão de ser dos arquivos audiovisuais, o passado. Mais do que isso, ameaçou a própria identidade dos arquivos, responsáveis em parte pela própria construção dos variados cânones cinematográficos erigidos ao longo do século XX, como a influente programação de Henri Langlois na Cinemateca Francesa, e a da Cinemateca do MAM para o Cinema Paissandu. Como conciliar a crítica ao colonialismo, às diásporas, à xenofobia e ao racismo, à heteronormatividade, aos genocídios, aos fundamentalismos vários e ao neoliberalismo, sem desqualificar totalmente – sem pô-la no “esquecimento” – a difusão empreendida pelos arquivos no bojo de sua constituição, de sua defesa do cinema como arte e da valorização do filme e sua documentação correlata como documentos históricos e culturais fundamentais; como um patrimônio amplo atravessado por contradições graves e inescapáveis – afinal arquivos audiovisuais são aparelhos culturais emanados da própria sociedade – pode seguir em frente abrindo mão de sua própria história e identidade, já que não trabalha com recortes e sim com o “todo”?
A resposta da FIAF, que foi construída em resposta também à ascensão do uso da tecnologia digital na criação e exibição de filmes, o que tornou ainda mais dramática a idéia de um “abandono” ou exclusão radical do passado, propôs a manutenção de programações regulares dedicadas à história do cinema em sentido amplo e aos cânones nacional e internacional construídos nos ambientes de cada arquivo. Na prática isso resultou na recomendação da exibição regular dos “clássicos”, preferencialmente em película quando pertinente ou possível, em cursos de fundo histórico, em formação de um setor educativo para apresentação desse passado às novas gerações, no estímulo à exposições e na publicação de estudos, sobretudo relativos às cinematografias nacionais. Um reforço de identidade, corporativo e local, enfim. Com o tempo e já no século XXI a idéia de um passado audiovisual foi cristalizado muito mais na apresentação da restauração dos “clássicos” e em festivais de filmes antigos e restaurados, quase todos conduzidos por arquivos audiovisuais. De certa forma a estratégia renovou fortemente a identidade tradicional do setor e libertou a programação para ou seguir uma linha mais conservadora, focada mais diretamente no passado, ainda que revisado, questionado ou criticado, ou se voltar também para o presente imediato e suas questões, abrindo espaço em definitivo para a agenda afirmativa consolidada nos últimos anos em todos os campos da sociedade. Do ponto de vista da Cinemateca do MAM houve ainda a percepção do eurocentrismo de uma proposição de história do cinema excludente de uma “periferia” cinematográfica, denominada agora eufemisticamente “World Cinema” e coincidente em grande parte com o chamado Sul Global. A concentração geográfica e o centralismo curatorial continuaram apesar de demandas crescentes de trabalho em rede, regionalização e programação participativa e colaborativa.
No começo do século XXI o movimento cineclubístico carioca e brasileiro voltou com força e mais acentuadamente coletivo, com trocas intensas entre os vários grupos espalhados pelo país, antecipando o que viria a ser a extraordinária política de rede e descentralização cultural da gestão Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura. A maioria dos Pontos de Cultura criados incluíam programação audiovisual e muitos se desenvolveram a partir de uma base cineclubística anterior. A seleção de filmes também refletiu em grande medida a implantação de políticas afirmativas endereçadas aos grupos indígenas, mulheres, comunidades LGBTQI+, quilombolas, sem-terra e pequenos agricultores familiares, negros, portadores de necessidades especiais e comunidades periféricas das grandes cidades. Em diálogo com o momento e as mudanças em curso, resumidas na promoção de ações igualitárias, na implementação do respeito à diversidade dos sujeitos sociais e na inclusão de grupos, saberes, práticas, áreas, espaços e patrimônios antes discriminados por um ou por outro motivo, a Cinemateca convidou em 2004 os cineclubes da cidade do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense para programarem por um mês inteiro a sala de exibição, ação que acabou extrapolando para as áreas livres do museu, com intervenções, performances e instalações apoiadas e incentivadas pelo curador do MAM Fernando Cocchiarale. Evento precursor do espírito colaborativo e descentralizador quanto à programação que a Cinemateca desenvolveria mais sistematicamente na década seguinte, Cineclubes em Ação deixou como legado mais saliente a abertura à participação regular de cineclubes externos, dos quais o mais antigo ainda em atividade na grade do arquivo é o Sala Escura, criado em 2007 e voltado para o cinema latino-americano.
Ação afirmativa na esfera privada contra desmonte público
A década que se encerrou em 2019, em particular os últimos cinco anos, viram um decréscimo do investimento em cultura e um arrefecimento de políticas públicas afirmativas. Na contramão, a ação social afirmativa desenvolvida pela sociedade civil e pela esfera privada se manteve, resistindo ao desmonte e indicando o quanto essas pautas são justas e necessárias para a construção de uma sociedade efetivamente igualitária. A Cinemateca, atenta ao impacto negativo junto a iniciativas tradicionais, como a Mostra Cinema e Direitos Humanos e diversos outros festivais e retrospectivas, a eventos que perderam parcial ou totalmente patrocínios e espaços de exibição, e a agentes tradicionalmente mantidos ausentes do circuito cultural, reformulou sua política de difusão e ofereceu seus espaços e parte substancial de sua grade, de forma gratuita e solidária, para a incorporação ou continuidade dessas criações, ou de novas, e sua apresentação à sociedade, fazendo circular a informação, provocando afetos e reflexões, cultivando a formação de novas parcerias, redes, consensos e dissensos, na confluência de interesses que visam a vida social orgânica, justa, participativa, mobilizadora, criativa, inovadora, democrática, positiva e melhor em todos os sentidos porque pulsante e acolhedora das diferenças mais do que das confluências. Colocou-se firmemente no apoio a eventos censurados parcial ou totalmente por orgãos culturais federais, abrigando de pronto iniciativas como a 3ª. Mostra do Filme Marginal e o 12º. Encontro do Cinema Negro Zózimo Bulbul: Brasil, África, Caribe e outras Diásporas. Manteve também seu compromisso com a preservação audiovisual, através de datas comemorativas do património audiovisual (27 de outubro) ou do filme familiar (17 de outubro), da revisitação regular do passado cinematográfico brasileiro e mundial, da manutenção da exibição em película, do Super 8 ao 35mm, ao lado da digital, e outras iniciativas, mas procurando decididamente a participação e a curadoria externas, entendendo que esse é o desenho atual e seu papel público, estratégico, cidadão, cultural e político no momento – honrando a trajetória do MAM e de sua cinemateca.
Buscar a inserção na comunidade e em via de mão dupla permitir que a comunidade use seus espaços, coleções e equipamentos revelou-se uma experiência rica em ensinamentos e resultados, com o reforço e valorização do vetor típico do arquivo audiovisual, o tempo. Dos mais de 900 filmes exibidos em 2019, quase a metade encarna de forma direta ou substancial a agenda afirmativa atual, com suas tensões, provocações, descobertas, embates e reflexões, especialmente nos eixos da diversidade e da inclusão. Em paralelo tal agenda se redimensiona conceitual e historicamente pela inserção no espaço da Cinemateca e pela lógica de uma entidade de patrimônio – o passado importa. Percorrendo a programação, para o primeiro eixo, pode-se citar a intensificação da exibição de filmes e retrospectivas de realizadoras, cobrindo um amplo espectro, com destaque para o resgate histórico de pioneiras como Lois Weber, Leontine Sagan e Ida Lupino, esta merecedora de uma mostra completa de seus trabalhos como diretora e indicativa de um histórico e perfil específico de luta, e no Brasil nomes também inaugurais como Helena Solberg, Lúcia Murat e Maria Luiza Aboim, e mais inúmeras pré-estréias de filmes assinados por mulheres, como Ser Feminino, de Márcia Poppe. Transversalmente podem ser citadas as apresentações de filmes de realizadoras negras como Grace Passô, Anna Pi, Sabrina Rosa, Luciana Bezerra e Sabrina Fidalgo, integrantes de outras programações não exclusivas, e o singular documentário de Flávia Lima sobre uma banda musical composta por pacientes de um hospital psiquiátrico, intitulado Harmonia Enlouquece, e mesmo debates como o de uma das sessões de cinema do projeto ArtCore, sobre a presença de mulheres no skate. O ponto alto no segmento feminino foi o Cabíria Festival – Mulheres & Audiovisual, em sua quarta edição e inteiramente dedicado à filmografia feminina, do passado ao presente. Painéis como “Gênero e diversidade na cadeia produtiva do Audiovisual” e “Encontro de Iniciativas Afirmativas: Identitárias e Territoriais” espelham a sintonia do evento com a nova agenda social e cultural.
Atriz e Cineasta Leontine Sagan, cujo filme “Senhoritas em uniforme” (1931) foi exibido na Cinemateca do MAM em 2019 durante a mostra “Alusões homoeróticas do cinema clássico”. Acervo Cinemateca do MAM Rio
Atriz, Cineasta e produtora Ida Lupino que foi tema da mostra “Ida Lupino: Diretora de Cinema” realizada em março de 2019 na Cinemateca do MAM Rio. Acervo Cinemateca do MAM Rio
A diretora Helena Solberg cujo filme “Meio-Dia” (1969) foi exibido em outubro de 2019 na Cinemateca durante sessão do Urubu Cine. Acervo Cinemateca do MAM Rio
A diretora Lucia Murat cujo filme “O pequeno exército louco” (1984) foi exibido em sua presença na Cinemateca do MAM no quadro do cineclube Sala Escura. Acervo Cinemateca do MAM Rio
Apresentação do grupo Harmonia Enlouquece durante a pré-estreia do filme homônimo de Flávia Lima na cinemateca do MAM fevereiro de 2020. Fotografia de Elisa Gaivota
Fórum das Lideranças Femininas reunido na Cinemateca do MAM durante o Cabíria Festival – Mulheres & Audiovisual em novembro de 2019. Fotografia de Paula Kossatz
Outro segmento com presença e alcance semelhante foi o dedicado à comunidade e à luta LGBTQIA+. Da mesma forma encontramos na programação obras e mostras de autores consagrados como Bruce LaBruce, Pedro Almodóvar e o brasileiro Carlos Adriano, assim como pré-estreias como O que fazer, de Fernanda Teixeira, e cruzamentos como a sessão “Black LGBTQI+”, exibida no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul. A parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, iniciada em 2007 através da Faculdade de Educação, e continuada de forma histórica em novembro de 2017, através do Fórum de Ciência e Cultura, com o multi-evento “Dissidências Sexuais – Cinema, Gênero e Direitos”, passou no segundo semestre de 2019 a uma parceria com a Escola de Comunicação, a ECO. As questões de gênero e identidade foram esmiuçadas em um longo seminário de pós-graduação, com projeções e aberto ao público intitulado “Afetos e Sensações no Cinema Brasileiro Contemporâneo”, ministrado pelos professores Denílson Lopes e Mariana Baltar. Investigando o que denominaram “sensibilidades dissidentes”, compuseram um instigante painel da produção marcada por identidades flutuantes ou não-identidades na produção audiovisual brasileira. A seleção de filmes passou pela exibição de títulos que podem ser denominados como “clássicos instantâneos”, entre eles, Tatuagem, Nova Dubai, Tinta Bruta e a obra-prima Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes.
Cartaz de “Inferninho” (2019), de Pedro Diógenes e Guto Parente, exibido na Cinemateca do MAM durante o curso “Afetos e Sensações no Cinema Brasileiro Contemporâneo”
Cartaz do filme “Bicha-Bomba”, do diretor Renan de Cillo
Igualmente a questão negra, tão acentuadamente marcada pela dimensão temporal, teve grande inserção na programação anual, a começar por títulos fundamentais como Eu não sou seu negro, de Raoul Peck, e As filhas do vento, de Joel Zito Araújo. A presença de obras mais experimentais, como o documentário Eu sou o Rio, sobre o músico Tantão, ou o programa da sessão cineclubística CineMAM dedicada à produção da favela do Vidigal, cruzando realizadores brancos e negros e explorando um dos espaços mais ricos e críticos da constituição da identidade negra brasileira, diz muito da diversidade da filmografia voltada para o segmento e das possibilidades prismáticas de recorte, transversalidade, aproximação e diálogo com vozes diversas. O 12.o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul: Brasil, África, Caribe e outras Diásporas foi o ponto alto, seja pela amplitude da programação, com destaque para a filmografia brasileira e africana, seja pela apresentação de eventos paralelos com uma exposição dedicado ao criador do Encontro, o ator, militante e cineasta Zózimo Bulbul. Mega evento de celebração da negritude, funcionou também como plataforma de divulgação e disseminação de conhecimentos, discussões políticas e promoção de um audiovisual inclusivo e de inclusão de jovens negros aspirantes a realizadores audiovisuais. A aposta na radicalidade, com a exibição de filmes como Ilha, de Ary Rosa e Glenda Nicácio, e Retratos de Marielle, de Ng’endo Mukii, junto a mais 39 produções de diretoras negras, entre centenas de filmes, revela os frutos de anos de políticas públicas inclusivas, assim como a maturidade artística, militante e social da nova geração de realizadores negros.
“Filhas do Vento” (2004), de Joel Zito Araújo, exibido na Cinemateca do MAM em fevereiro de 2020. Acervo Cinemateca do MAM Rio
A causa indígena, em sua incessante busca de aproximação desarmada ao outro e aspiração à compreensão de seus princípios de harmonia com a natureza, vida comunitária sustentável e recusa da monetarização e hierarquização das relações humanas, a par da continuação do genocídio de suas nações e apagamento de suas culturas, ganhou importante instrumento de expressão no cinema. Nesse universo a passagem do tempo é mais sensível, o presente mais contraditório e inescapável, e a produção de realizadores indígenas mais fortemente marcada por noções e sentimentos de inevitabilidade e tradição.
Além da inclusão, o reposicionamento acompanha os acontecimentos. Por exemplo, importante documento da trajetória de ativismo do índio brasileiro, o longa Raoni, restaurado em 35mm pela Cinemateca do MAM, teve histórica sessão com a presença de um de seus artífices e diretor de fotografia, Luís Carlos Saldanha, reencontrando o filme em película depois de décadas, e teve desdobramento imediato. Vem aí Raoni II. Outra rara sessão em 35mm de um clássico dessa filmografia, colocou frente a frente jovens alunos de cinema e a obra-prima secular de Andrea Tonacci, o definitivo Serras da Desordem. As contradições que atravessam a condição indígena no Brasil estiveram também presentes na pré-estréia de Filhos de Macunaíma, filme que apresenta histórias de deslocamentos da identidade indígena em sua relação com a sociedade e a cultura dominante. A perda dos saberes tradicionais talvez seja a tragédia cultural maior, tal como evidenciado na pré-estréia de Canoa Caiçara, curta que procura fixar não a dimensão material em jogo, mas os saberes imateriais que o atravessam, saberes que remontam a séculos atrás.
Foto do filme “Raoni” (1978), de Luiz Carlos Saldanha e Jean Dutilleux, exibido em sessão especial na Cinemateca em novembro de 2019, com a presença de Luiz Carlos Saldanha. Acervo Cinemateca do MAM Rio
Para além desses quatro segmentos, em que se pode perceber através do cinema a diversidade humana, social e cultural brasileira e mesmo mundial, assim como a luta por direitos e pela inclusão negada antes de tudo ao próprio cinema brasileiro, cujos muitos dos filmes acima exibidos estão excluídos em grande medida de seu próprio território, do contato com sua própria gente e da possibilidade do diálogo construtivo e provocador, a programação de 2019 foi atravessada mais amplamente por uma dimensão específica e que reitera o sentido urgente da incorporação social: a dos territórios periféricos e em particular a questão dos espaços de moradia. Na maior parte do ano, fosse uma definição da própria Cinemateca ou uma indicação vinda de algum parceiro, evento ou festival, filmes clássicos como Rio 40 graus e Santo Forte, de um lado, e Deixa na régua e Parque Oeste, do outro porque bem mais novos, trouxeram a periferia em sentido mais amplo para a tela do auditório Cosme Alves Netto.
Em uma proposição como a do curso de Ciências Sociais da UFRJ, a série Sobreurbano, que teve sessões ao longo do segundo semestre, a curadoria investigou a urbanidade carioca e brasileira, em especial suas geografias excludentes, com acento nos espaços sociais suburbanos e periféricos. Um tema se destacou em meio ao conjunto das programações envolvendo também cineclubes, mostras e os próprios eventos da Cinemateca, o da remoção, de que nos conta de forma eloquente o longa homônimo de Anderson Quack, cineasta negro egresso da Cidade de Deus. A perspectiva da periferia também pode ser explorada em visada mais etnográfica nos filmes de uma mostra como a do XII Prêmio Pierre Verger. Ou ainda, agora de forma inclusiva, e dentro de uma iniciativa de alguns anos da Cinemateca, com as pré-estreias de mais duas produções oriundas do movimento cinematográfico popular da Baixada Fluminense, como o longa O lendário, e o média O agressor. Procurando superar a invisibilidade de uma produção audiovisual periférica, a produção da Baixada ou interiorana vem se mantendo de forma contínua e surpreendente. Envolto na roupagem do western caboclo pode surgir, por exemplo, a velha e ao mesmo tempo atualíssima questão da posse da terra. A abertura de espaços de exibição a essa produção funciona muitas vezes como o gesto básico e ao mesmo tempo definitivo de inclusão dos que estão por um motivo ou por outro alijados da cidadania em sua plenitude social e cultural.
Cartaz de “Rio 40 graus” (1955), de Nelson Pereira dos Santos, exibido em outubro de 2019 na Cinemateca no quadro da série Sobreurbano do curso de Ciências Sociais da UFRJ. Acervo Cinemateca do MAM Rio
A extensa programação da Cinemateca, exposta em alguma medida acima, apresenta-se já há alguns anos com esse sentido consciente, colaborativo e afinado às lutas da sociedade em que se insere. Procura ser plural, democrática, aberta ao contraditório, sempre na busca por uma sociedade mais justa. Exibe títulos que agora talvez sejam inclusive considerados controversos ou francamente antigos, conservadores ou “ultrapassados”. Exatamente para que possam ser experenciados, compreendidos e criticados de qualquer ângulo que o público se interessar. Nesse sentido, a Cinemateca não abandonou completamente as antigas linhas de programação, vendo nelas virtudes conceituais no diálogo com a contemporaneidade. Preocupa-se em abrir espaços para tudo e para todos, fiel a seus princípios e à sua missão primordial de preservar o “todo”. Ser inclusiva, de forma responsável, sem proselitismos ou censuras prévias.
Filmes obscuros, esquecidos, órfãos, comerciais, canônicos, não canônicos, banidos, censurados, ou ainda triviais (um simples divertissement) podem contribuir para a compreensão do campo cinematográfico, em particular sua preservação, mas também para as questões e indicações levantadas ao longo do texto. Por isso, a presença inclusive de blockbusters, que muitas vezes se mostram engajados a um certo limite e funcionam como propagadores e consagradores de novas tendências, percepções e compreensões, vale dizer de novos mundos possíveis. Sua programação também é uma forma de engajamento com a história da sociedade que os consome e um diálogo necessário com a produção independente e com aquelas formas eternamente excluídas de um sistema de distribuição e exibição mais amplo e cruel, e para as quais a Cinemateca reserva um carinho especial, como a produção experimental e os formatos e bitolas não-profissionais. Títulos como Infiltrado na Klan, Meninas não choram, Audição, As virgens suicidas e O sexto sentido têm inúmeras correlações com as questões e os comprometimentos levantados aqui. Integram a constelação chamada Cinema da qual a Cinemateca do MAM procura oferecer a cada sessão um instantâneo suficientemente significativo para contribuir em alguma medida com o trabalho de milhares de profissionais artísticos e culturais e com os milhões de cidadãos que buscam conhecimento e alento para suas angústias, desejos e mobilizações.
Hernani Heffner é curador, crítico, professor, pesquisador de cinema e atua como conservador-chefe da Cinemateca do MAM.
Texto publicado em 1 de junho de 2020.