por Henrique Quadros
À antiga e à moderna (Three Ages, 1923).
O não tão tímido primeiro longa de Buster Keaton
Pode parecer estranho, mas a ideia de fazer um filme de comédia em longa-metragem já foi algo impensável. Na era do cinema silencioso, comumente os longas eram acompanhados de cinejornais, animações e comédias, todos em formato de curta-metragem. As produções “sérias” viravam longas, enquanto o entretenimento “barato” permaneceu como curta. Na década de 1920 isso começou a mudar.
Tudo começou em 1921 com O garoto de Charles Chaplin. O ambicioso lançamento do longa-metragem de comédia (mesmo que com elementos dramáticos) foi um sucesso estrondoso de bilheteria, Harold Lloyd seguiu com O homem mosca em 1923, até hoje seu filme mais icônico. Buster Keaton já apresentava interesse em fazer longas, mas até então o máximo que conseguiu foi um papel em O panaca de 1920. Durante três anos, Keaton permaneceu produzindo curtas, muitos dos quais se tornaram clássicos. Apesar do sucesso, ele decidiu experimentar dirigir o seu primeiro longa. O resultado é o filme À antiga e à moderna.
É uma produção, a princípio, tímida. Composto por três episódios que se intercalam, o longa poderia ser dividido a qualquer momento em três curtas-metragens separados. A estrutura se assemelha com o clássico épico de D.W. Griffith Intolerância (1916), um filme que tem quatro núcleos dramáticos situados em diferentes períodos históricos (Griffith também considerou dividir seu filme em duas partes). O longa de Griffith é famoso por possuir uma metanarrativa que conecta os diferentes períodos, como o próprio subtítulo explicita: A luta do amor ao longo das eras. O filme do Buster propõe uma resposta: “o amor é o eixo imutável sobre o qual o mundo gira”.
Os três períodos são estrategicamente selecionados. O primeiro é o paleolítico, conhecido como “idade da pedra”. Graças às descobertas de Charles Darwin no século XIX, o gênero de histórias envolvendo os “homens da caverna” se popularizou na Europa e, no cinema, virou um breve subgênero iniciado por D.W. Griffith em 1912 com seu filme Man’s Genesis. Esse curta da Biograph dramatiza o momento em que um homem primitivo utiliza sua inteligência para produzir a primeira arma (o bastão de pedra) e vencer o seu oponente mais forte. Nos anos seguintes outros filmes foram feitos usando a mesma premissa e até Chaplin parodiou a trama com seu O passado pré-histórico de 1914.
O segundo período é a era do império romano. Assim como o paleolítico, o cinema abraçou o império romano como um cenário de espetáculo no lançamento de obras supracitadas como Intolerância e de filmes como Cabíria, Ben-Hur, Salomé, etc. O último período é chamado de “era moderna”, mas em si é a representação do que hoje chamamos de os “loucos anos vinte”.
Assim como em Intolerância (e em outros filmes com estruturas parecidas, como Páginas do livro de satã de C.T. Dreyer, e A morte cansada de Fritz Lang), há uma repetição poética da trama. A mesma narrativa se desdobra nos três períodos e, no processo, podemos ver como cada era se assemelha e se diferencia uma da outra. Nas tramas, um jovem (Buster Keaton) se apaixona por uma mulher (Margaret Leahy), porém para conseguir conquistar seu coração, ele tem que convencer a família da moça, e para isso ele deve competir com um outro pretendente (Wallace Beery). O problema? Esse rival é sempre mais forte, mais rico e mais traiçoeiro que o protagonista. Em cada período, o jovem luta pelo amor da menina enquanto precisa sobreviver às artimanhas do vilão.
Nesse momento, a timidez de Buster Keaton como diretor vai embora. Cada período conta com efeitos especiais ousados. Na era do paleolítico, por exemplo, há o uso de stop motion para animar um dinossauro que serve de transporte para o protagonista (uma referência às animações de Willis H. O’Brien, que trabalhara em The Ghost of Slumber Mountain de 1918, e que depois produziria O mundo perdido, de 1925, e o clássico King Kong de 1933). Na era romana, sets enormes foram usados e engrandecidos com o uso de dupla exposição. Nos anos modernos, há até uma famosa cena em que Buster foge dos policiais e pula de um prédio para o outro, mas não consegue se segurar no terraço e se estabaca todo na queda. Por incrível que pareça, essa queda foi improvisada: Keaton erra o pulo e cai de verdade, mas ao invés de cortar a gafe, ele a incorpora na trama. Talvez não seja o seu filme com os artifícios mais elaborados, mas com certeza é a obra com a maior variedade visual.
Fascinado pela intertextualidade e autorreferência, Keaton brinca com os anacronismos de cada período, projetando elementos modernos nas eras antigas (homens da caverna jogando baseball com bastões e pedras, ruas de Roma possuindo placas de “proibido estacionar”) e ao mesmo tempo comentando as peculiaridades dos tempos modernos (se nos dois primeiros períodos quem decide com quem a moça vai casar é o pai da família, na era moderna é a mãe quem decide; enquanto nas duas primeiras eras o casal têm muitos filhos, na era moderna eles se contentam só com um cachorrinho).
Enquanto Chaplin experimentou com o humor em longa-metragem em O Garoto ao combinar o riso com o choro da forma que só ele soube fazer, e Harold Lloyd usou do formato para construir uma extensa e eletrizante sequência de ação e comédia em O homem mosca, Buster Keaton brincou – de sua forma não tão tímida – com os clichês e expectativas do filme de gênero através do seu humor caracteristicamente metalinguístico e irreverente. À antiga e à moderna chega em 1923 para estabelecer a nova fase do cinema de comédia: em uma Hollywood em expansão, agora até os humoristas estão fazendo filme “sério”.
Este artigo diz respeito à rubrica Aconteceu 100 anos atrás, e À antiga e à moderna de Buster Keaton e Edward F. Cline faz parte da programação que a Cinemateca do MAM promove em dezembro de 2023.