A Idade da Terra, um filme para a era digital

Por: GUSTAVO MENEZES

A certa altura do documentário que acompanha a edição em DVD de A Idade da Terra, o jornalista Carlos Caetano, que trabalhou no filme como assistente de direção, conta que Glauber Rocha lhe havia confidenciado que aquele filme só seria compreendido 25 anos após o lançamento. A própria gravação daquele documentário, racionaliza Marcelo, seria parte do cumprimento da profecia. 

O DVD de A Idade da Terra foi lançado em 2008 – 28 anos após o filme – o que possibilitou que este finalmente fosse visto em larga escala da forma como Glauber o havia concebido: sem ordem prévia de montagem, com os rolos não-numerados e exibidos a critério do projecionista. Há uma ordem usual em que o filme costuma ser exibido (iniciando com o nascer do sol sobre o Palácio da Alvorada e terminando no Maracanã), mas ela não é obrigatória nem desejada. A opção explícita do realizador é pela aleatoriedade das sequências – cuja montagem, vale mencionar, coube a Ricardo Miranda, Carlos Cox e Raul Soares. Isto é possível porque, como se sabe, o filme não possui créditos de abertura ou encerramento, e as sequências são independentes, não concatenadas por uma trama propriamente dita. A tecnologia do DVD possibilita essa operação de modo muito mais prático. Basta selecionar no menu a opção ‘montagem da Terra’, e, a cada vez que um capítulo se encerra, o próximo é escolhido aleatoriamente entre os que ainda não foram exibidos.

Assistir ao filme dessa forma permite ao espectador fazer novas relações. Por exemplo, se vemos Norma Bengell primeiro como a mulher que grita na rua “miséria!” antes de como Rainha das Amazonas, ficam mais claras as semelhanças entre duas personagens tão díspares (notadamente a forma melódica de gritar). Se vemos Jece Valadão primeiro na rua, festejando ou trabalhando entre vários operários, antes de vê-lo isolado no mato, falando do “pássaro da eternidade”, o impacto do personagem é outro.

O advento do digital facilitou o acesso ao cinema brasileiro – inclusive àquele considerado mais hermético – como nunca antes. Da mesma forma, a fortuna crítica, entrevistas impressas e gravadas, filmografias inteiras, se difundiram entre os cinéfilos, que em muitos casos buscavam esses materiais durante décadas. Esse movimento foi decisivo para que agora A Idade da Terra figure como oitavo colocado na lista de melhores filmes dos anos 80 organizada por Pedro Lovallo.

Falecido em 1981, o cineasta baiano obviamente não teria como saber que tecnologias como essas existiriam, nem de forma tão ubíqua, no início do século XXI. Mas desde meados dos anos 70 já se falava em home video e computadores pessoais, o que pode tê-lo levado a deduzir sua onipresença no futuro e fazer sua previsão. Tanto assim que, guardadas as devidas proporções, sua obra derradeira parece concebida para os nossos dias.

A estrutura de A Idade da Terra é a “filha” dos estilos que Glauber vinha cultivando pelo menos desde 1967: temos um fluxo de consciência, como o do poeta Paulo Martins que dá forma a Terra em Transe; temos uma narração em off do próprio Glauber que explica ou até extrapola a ideia do filme (comentário em áudio avant la lettre?), como em Cabeças Cortadas e Di; temos delírios verborrágicos sobre a história mundial, como em Claro. Desta vez, tudo levado às últimas consequências, englobando o próprio processo de feitura do filme e as ideias usadas, mencionadas, meio-formadas ou balbuciadas de seu realizador. Cada cena, sem começar ou acabar, oferece uma gama de referências religiosas, estéticas, históricas, geográficas, cinematográficas, políticas… São, por que não dizer, hyperlinks que só hoje podem ser “clicados” da forma ideal.

Sem conexões extrafílmicas, aliás, não saberíamos sequer o nome dos personagens. Com exceção de John Brahms e Aurora Madalena, mais ninguém é nomeado dentro do filme. Não se ouve falar em Cristo Negro, Cristo Militar, Rainha das Amazonas, etc. Essa própria nomeação só é possível se recorrermos a material externo.

Assim, proponho que, não tendo começo nem final, A Idade da Terra nunca cessa as possibilidades de significado, indo se completar fora de si, nas imagens de No Tempo de Glauber, que Roque Araújo fez com as sobras de material filmado que Glauber lhe cedeu, nos depoimentos de Glauber em Anabazys, de Paloma Rocha e Joel Pizzini, e nos já citados extras do DVD. Cabem também os tratamentos de roteiro, as correspondências de Glauber, entrevistas suas sobre o filme… Assim, temos mais chaves, se não para decodificar a obra, pelo menos para apreciá-la mais detalhadamente.

A primeira referência é o manifesto Eztetyka do Sonho (1971), do qual algumas passagens saltam à vista quando lidas tendo em mente este filme: “Os sistemas culturais atuantes, de direita e de esquerda, estão presos a uma razão conservadora”; “A ruptura com os racionalismos colonizadores é a única saída.”; “A pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem e repercute psiquicamente de tal forma que este pobre se converte num animal de duas cabeças: uma é fatalista e submissa à razão que o explora como escravo. A outra, na medida em que o pobre não pode explicar o absurdo de sua própria pobreza, é naturalmente mística.”; “A razão dominadora classifica o misticismo de irracionalista e o reprime à bala. Para ela tudo que é irracional deve ser destruído, seja a mística religiosa, seja a mística política. A revolução, como possessão do homem que lança sua vida rumo à idéia, é o mais alto astral do misticismo(…)” e “[Jorge Luis] Borges, superando esta realidade, escreveu as mais liberadoras irrealidades de nosso tempo. Sua estética é a do sonho. Para mim é uma iluminação espiritual que contribuiu para dilatar a minha sensibilidade afro-índia na direção dos mitos originais da minha raça. Esta raça, pobre e aparentemente sem destino, elabora na mística seu momento de liberdade. Os Deuses Afro-índios negarão a mística colonizadora do catolicismo, que é feitiçaria da repressão e da redenção moral dos ricos“.

A próxima referência, penso, é Castro Alves. Em mais de uma fonte, li que o roteiro do filme teria sido inspirado em “um poema de Castro Alves”, nunca especificado. Ora, no filme em si não há nada que me permita fazer essa relação – salvo a fascinação de Glauber pelo poeta -, mas entre as sobras incluídas em No Tempo de Glauber, dois poemas de Castro Alves são declamados em off por Mário Gusmão e pelo próprio Glauber – respectivamente, Vozes d’África (por inteiro) e Bandido Negro (somente um trecho). Ambos compõem o livro Os Escravos, que ao ser consultado, nos fornece outras conexões, se não para decodificar esta obra que rejeita a razão opressiva (como dito no manifesto), pelo menos para expandir os horizontes.

Num texto logo após ter visto pela primeira vez o filme, Jean-Claude Bernardet discorre sobre o tratamento da luz nele. A luz, o sol e temas religiosos são recorrentes nos poemas de Castro Alves, como em O Século, que abre assim: “O séc’lo é grande… No espaço/Há um drama de treva e luz./Como o Cristo – a liberdade/Sangra no poste da cruz./ (…) Nos lábios dos horizontes/Há um riso de luz… É Deus”. E o trecho mais célebre do mesmo poema: “Quebre-se o cetro do papa/Faça-se dele – uma cruz!/A púrpura sirva ao povo/P’ra cobrir os ombros nus./Que aos gritos do Niagara/-Sem escravos, – Guanabara/Se eleve ao fulgor dos sóis!/Banhem-se em luz os prostíbulos,/E das lascas dos patíbulos/Erga-se estátua aos heróis!” Glauber herdou de Castro Alves o gosto pelas imagens grandiloquentes e totalizantes. 

Tentando montar este “filme de areia” – novamente Borges -, enxergo no título do filme uma pista, e deduzo que a história se passa durante toda a existência do planeta Terra. Cada um dos Cristos tem um lugar fixo: Cristo Índio em Salvador (às vezes Arembepe), Cristo Militar e Cristo Guerrilheiro no Rio de Janeiro, e Cristo Negro em Brasília. O único que transita e interage com todos é Brahms – personificação do imperialismo. Seus traços físicos – corpulência e  cabelos loiros -, seu desprezo pela América Latina e sua grosseria pública são um assombroso prenúncio de Donald Trump.

Temos o momento do “fiat lux” – a alvorada sobre o Palácio da Alvorada, ao som da faixa Amazonas, de Naná Vasconcelos – tambores e cantos ininteligíveis que remetem à África. Temos o aparecimento do ser humano no paraíso – o Cristo Índio/Pescador de Jece Valadão – que experimenta as coisas do mundo, faz fogo (momento em que a luz o torna a um só tempo branco, negro e indígena) e participa de uma orgia entre as amazonas. Temos o presente com Antônio Pitanga em Brasília entrevistando Carlos Castello Branco. E temos o futuro, em que o Cristo Guerrilheiro de Geraldo Del Rey se rebela contra Brahms e o Cristo Militar de Tarcísio Meira, com Aurora Madalena (rainha de Ogulaganda, “país afro-árabe”, segundo o primeiro tratamento do roteiro), anuncia o fim do mundo, a própria destruição do planeta. Todos os tempos acontecem simultaneamente e independentemente.

Claro, o próprio filme por vezes rejeita essas categorias, pois é uma série de contradições deliberadas. Traz um mesmo ator fazendo papeis marcadamente diferentes, sobretudo em termos de figurino e ações (Norma Bengell e Antônio Pitanga são os mais óbvios), traz os atores em meio a acontecimentos reais (o carnaval carioca), ao evocar ora o Eldorado cenário de Terra em Transe, ora o El Dorado mítico (“Brasília é o El Dorado…”, diz o próprio Glauber), ao mostrar a cena e o diretor que dirige a cena simultaneamente, ao mostrar os atores dentro e fora dos personagens (Maurício do Valle sentado na praia pedindo desculpas por ter se ferido durante uma tomada). O filme é e não é tudo que se apresenta. Tenta dar conta de tudo que existe no real e na ficção simultaneamente. Busca e rejeita a razão. Abraça-se a contradição.

A Idade da Terra é um filme em eterno estado de inspiração – a inspiração criativa de seu realizador, que inspira correlações e sobretudo dúvidas. O próprio Glauber faz teorizações sobre o filme enquanto ele acontece. Em dado momento, comenta de que forma a morte de Pasolini lhe levou a conceber A Idade da Terra, e seus pontos de contato com O Evangelho Segundo São Mateus. No filme de Roque Araújo, ele comenta, no mesmo estilo divagatório, um plano em que se contrasta a Esplanada dos Ministérios e um matagal: “O plano retrata exatamente o contraste entre o Brasil selvagem e o Brasil moderno”. Assim, somos convidados a partilhar da divagação.

 1 Podemos supor que, se Eldorado é o país-síntese da América Latina no universo glauberiano, Ogulaganda é o país-síntese “afro-árabe”. Na versão final do filme há uma breve menção a Ogulaganda numa fala do Cristo Militar.

Referências:

ALVES, Castro. Obra Poética Completa. 2015. E-book kindle.

BERNARDET, Jean-Claude. A Idade da Terra: um filme em questão. Revista Filme Cultura, nº 38-39, Rio de Janeiro: CTAv/SAv/MinC, 2010. Edição fac-similar.

BORGES, Jorge Luis. O Livro de Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

GARDNIER, Ruy. Dossiê A Idade da Terra: Apresentação. Disponível em <http://www.contracampo.com.br/74/idadedaterradossieintro.htm>

ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

ROCHA, Glauber. Roteiros do terceyro mundo. (Org.Orlando Senna). Rio de Janeiro: Embrafilme/Alhambra, 1985.

Anabazys. Direção: Paloma Rocha e Joel Pizzini. Brasil, 2007.

No Tempo de Glauber. Direção: Roque Araújo. Brasil, 1987.

Informações:
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