A mulher do aviador

Por: LUCAS SATURNINO

“Paris me seduziu” é o nome da canção com a qual se encerra A Mulher do Aviador (La femme de l’aviateur, 1981), de Éric Rohmer, o primeiro filme de seu ciclo “Comédias e Provérbios”. Tendo versos escritos pelo próprio cineasta, a música sobe para acompanhar a derradeira frustração do protagonista masculino no tocante às suas expectativas afetivas de excepcionalidade no horizonte de pulsões românticas das mulheres com quem convive. Antes havíamos testemunhado como encontros fortuitos podem inadvertidamente formar conexões encantadoras entre dois há pouco estranhos. Mas para cada pulga atrás da orelha que surge dos cruzamentos urbanos (“será que…?”), existe também um balde de água fria à espreita (aperceber-se substituível diante do excesso de virtuais alternativas, amorosas ou sexuais, pois o cotidiano na metrópole implica a intensificação espacial das hipóteses de interação). Nos minutos finais de A Mulher do Aviador, assistimos François (Philippe Marlaud) acobertar suas desilusões sob a confidência da noite, e logo em seguida sumir na rede de transportes parisiense, onde a solidão se dissipa na massa anônima — enquanto ouvimos sobre sentir-se engolido, sufocado e desorientado pelo frenesi da cidade grande, a quem o eu lírico da canção acusa de lhe ter roubado os sonhos e as esperanças; “Eu não valho mais do que uma pedra na calçada”, diz, e completa: “Paris me traiu”.

Ainda no âmbito das inquietações frente à modernidade, A Mulher do Aviador se inscreve numa tradição de comédias românticas cuja narratividade está ligada aos quebra-cabeças que voluvelmente caracterizam a formação de casais na era do livre-arbítrio matrimonial. Anne (Marie Rivière) avisa que não planeja se casar ou compartilhar a mesma residência que um parceiro, tencionando preservar sua autonomia para agir como bem deseja. Lucie (Anne-Laure Meury) comenta sobre a habitualidade dos divórcios, expediente tão aceite que até estaria na moda realizá-lo de modo amigável (o divórcio por mútuo consentimento havia sido estabelecido na França em 1976, marcando um revés histórico para os católicos conservadores do país). Com quem ficar quando em tese se dispõe da liberdade de ficar com quem quiser? Após decifrar o próprio desejo (problema n.º 1), só faltaria acertar a relação junto ao par escolhido… (problema n.º 2) — sendo a compatibilização de vontades insondáveis entre si a força motriz constitutiva por trás do gênero da comédia romântica. E vejamos: assim como uma opereta de Lubitsch, os tranches de vie (“recortes de vida”) rohmerianos giram em torno de tentações sexuais, ainda que as ideias de elegância pelas quais se notabilizaram possam porventura desviar a atenção disso.

Já sem o referencial de valores socialmente consensuais quanto ao compromisso conjugal, aos indivíduos resta a comunicação. Os personagens de Rohmer são sujeitos condenados à comunicação — à expressão da interioridade em face do mal-entendido. Em entrevista a Fabrice Ziolkowski, à época do lançamento de A Mulher do Aviador, Rohmer explica o reenquadramento narrativo de sua passagem da “moral” a “comédia” como questão de desestabilização da verdade. Para começar, a prestabilidade dos provérbios apresentados deveria ser tomada com ceticismo. Além de renegar intenções moralizadoras, ele ressalta que a verdade não segue fórmulas. Daí o que prevalece na teatralização do cotidiano é a altercação entre pontos de vista relativos — e isso é matéria de comédia. Do real, François só tem acesso imediato a fragmentos, condicionados pela sua posição de observação. A partir dos quais dá asas aos exercícios de fabulação tendenciosa — abarcando-se também o fomento das próprias neuroses — que lhe pautam a curiosidade e, por tabela, o humor. Anne chega a alertá-lo: ao invés de ficar se apegando às concepções equivocadas que faz dos outros, melhor seria passar a viver em função de si. Porém, essas mentalidades sequer são incompatíveis. Isto, afinal, não é um conto moral. E assim tanto mais irônico que os dois grandes flagras, nada tendo a ver com iniciativas ciumentas, sejam frutos do acaso.

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