A Roda da fortuna, por Tomás Farias


O espetáculo está intimamente ligado à sobrevivência. As formas de representação enquanto linguagens artísticas desenvolvidas pela humanidade carregam em sua natureza a profunda necessidade humana de contato com o universo ficcionalizado. O sonho atesta essa necessidade, involuntariamente imergimos na fabulação durante o sono. A Roda da Fortuna (The Band Wagon) é essencialmente um filme de arte, não no sentido tosco do arthouse, mas por compreender a arte em sua potência humanizadora indispensável ao tê-la como matéria para falar da própria arte, explorando suas possibilidades em todas as dinâmicas da vida e mostrando como elas são inesgotáveis.

O filme começa com o fracasso do leilão de itens que foram usados pelo veterano ator de teatro e cinema musical Tony Hunter (Fred Astaire) por cinquenta centavos de dólar, enquanto absolutamente todos os figurantes no local estão indiferentes, se distraindo com alguma outra pequena coisa. Logo depois Hunter está no vagão de um trem entre dois passageiros que dizem que seus bons momentos ficaram no tempo e sua carreira estaria acabada. Hunter concorda, tira onda da situação e eles mal parecem reconhecê-lo. A trama que se segue é a mais rasa possível. Hunter encontra um casal de amigos (Oscar Levant e Nanette Fabray) que escreveu uma peça na Broadway para seu retorno. Nos bastidores ele tem como contraponto a bailarina Gabrielle Gerard (Cyd Charisse).

Hollywood em sua era de ouro é marcada pela eficiência ao combinar espetáculo e narrativa. Aqui a segunda se mantém, em sua concepção clássica, na superfície do que constitui A Roda da Fortuna enquanto estado de espírito. Se o cinema é fundamentalmente um meio de registro e a câmera é infinitamente receptiva à mais elementar realidade que se apresente diante dela, é justamente essa presença, em si mesma, que é explorada no fluxo das imagens. Mesmo ao narrar, Minnelli sobretudo mostra. Ou pelo menos as resoluções e os pontos mais altos assim se dão. A exploração da atmosfera antes da progressão narrativa como construtora de sentido referencia a arte como essencialmente um meio de representação, que tem na representação sua força emancipadora. É nesse sentido, ainda mais estando o autor inserido no sistema de estúdios, que o musical, gênero do espetáculo por excelência, se torna tão possibilitador: suas convenções manipulam camadas de ilusão no mundo diegético. Esse recurso é fio condutor das dinâmicas do filme.

Os números musicais aproximam, solidificam os laços, definem as relações, aglomeram o caos, abraçam as neuroses, sobrepõem os conflitos, seguem as intuições. São filmados com uma frontalidade que nunca transmite estaticidade. A direção dos atores imprime um dinamismo muito singular. São enquadrados como se representassem uma quantidade de líquido contida em um recipiente arejado e maleável, manuseado com uma precisão que mantém a consistência e permite o escoamento. Minnelli administra os movimentos de câmera oxigenando as coreografias, tonalizando sua força concêntrica e agregadora, incitante. São contagiadas pelo instinto de sobrevivência cujas manifestações atingem a fabulação. Os corpos precisam se manter em movimento, lutam para ocupar um lugar no mundo e então coexistem. O espetáculo precisa que resistam um ao outro para nascer enquanto superação das disputas, incorporando as marcas que elas deixam.

É preciso o desgaste entre Hunter e Gerard para que resolvam descobrir se podem realmente dançar juntos. E, para isso, dar um passeio de carruagem e olhar para as árvores, lembrar que estão abaixo do céu e passando por algo chamado “grama”, e que essas coisas estavam ali, e eles trancados em sua prisão artística, comenta Hunter. Então eles passam por vários casais que dançam timidamente como fazem os casais e sem dizer nada continuam caminhando até estarem sozinhos e continuam caminhando e os estímulos começam a se enredar na iconografia de um homem e uma mulher dançando. A intimidade entre seres humanos é o alcance rítmico da expressão de seus corpos, destacados pelos cenários em suas formas e contornos, realçados pela iluminação em seus movimentos. Os atores integram uma zona pictórica em que esses momentos de conexão através da externalização física transcendem a percepção exteriorizada. A potencialização dos instantes, dos impulsos, dos gestos, das intuições, desvia a encenação de esquematismos e amplifica a recepção das imagens pelo espectador. As composições mantêm, nos acontecimentos, aberta a fenda de uma experiência emocional complexa. Os estímulos sensoriais nunca as esvaziam de sentido, sustentam-nas em suas nuances, reforçam-nas enquanto superfície. E nessa superfície imagética os encontros constituem um universo fabulado, libertador de tensões reprimidas.

A condenação da arte à reminiscência que abre A Roda da Fortuna permeia suas articulações temporal e metalinguística, que permanecem unidas pela dinâmica rítmica impressa no fluxo da diegese. A manipulação através da repetição dessa suspensão diegética que marca os números transfigura o tempo a um estado devaneador, explorado no seu poder de catarse. O desenrolar do filme representa em si essa catarse. A trama mais rasa possível consiste na possibilitação de uma realização artística, e o que movimenta todo o filme são realizações artísticas. Na cena final Gerard diz a Hunter que a companhia se reuniu e comprou a ele… nada porque arte é um fim em si mesma. Eles então dão o seu beijo e são chamados para um último número. Se a arte sempre vai estar condenada à memória porque tudo que vivemos está fadado a escorrer pelo tempo, a arte sempre vai movimentar o tempo e provocar sua suspensão onírica. A arte sempre vai continuar sendo possibilitada e realizada pela mesma razão pela qual continuamos fazendo todas as coisas que fazemos enquanto continuamos vivendo. Ela confirma o homem em sua humanidade. 



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