Alma Corsária: depoimento do realizador

(do kit de imprensa francês)

A ideia do projeto data do começo dos anos 80 com o título de Alma Gêmea. Na origem, o argumento da história da amizade entre dois poetas urbanos se inspirava na harmonia visionária e poética que unia o poeta português Cesário Verde e o brasileiro Augusto dos Anjos. Mesmo vivendo em épocas e países diferentes, eles eram ambos apaixonados por sua cidade natal, que eles conheciam tão bem por causa de longas caminhadas noturnas, eles tinham hemoptises e uma obsessão pela morte. Alguns dados autobiográficos foram adicionados a esse roteiro reescrito em 1992. Amigos da minha infância e da minha juventude inspiraram outros personagens. Os dois personagens principais, aliás, viveram experiências que eu mesmo vivi. Refletir sobre as transformações socioeconômicas e sociais que aconteceram no país durante três décadas pela formação cultural e existencial dos personagens. No roteiro final, Rivaldo Torres torna-se o centro da ação. Personagens como Nissei Metodista, Miss Turbaina Formosa Fazendeira e o fascinante Frankie Laine foram abandonados, com muita dor.

O argumento inicial obteve em 1983 o prêmio da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, o mesmo concurso em que filmes como Beijo 2348/72 de Walter Rogério, Romance da Empregada de Naum Alves de Souza e Vera de Sérgio Toledo foram também premiados. A época não me permitiu filmar Alma Gêmea e, para dizer a verdade, eu o achava datado. Dez anos depois, Eduardo Aguilar, assistente de direção e continuísta de diversos de meus filmes, cinéfilo como eu, me convenceu que o roteiro era atemporal. Na época da criação do concurso Prêmio Incentivo ao Cinema, pela Prefeitura de São Paulo, eu substituí no último momento um projeto chamado A Protestante por Alma Gêmea, que se chamava na época Alma Corsária, Alma Gêmea. O desastre do governo Collor me fez abandonar o cinema e retomar meus estudos de música. (eu fui tecladista profissional entre os 18 e 21 anos) com o músico Wilson Sukorski, o que foi fundamental para criar o roteiro. Ao invés de contar histórias, eu criei atmosferas obsessivamente. A música, de uma importância fundamental agora, intervém diretamente nas mudanças atemporais da ação. O fato de dar pouca importância aos textos literários do livro escrito pelos dois poetas, Sentimento Ocidental, enriqueceu bastante o novo roteiro, pois o que me interessou foi mostrar por que eles escreveram um livro juntos, os pequenos incidentes que os fizeram crescer como intelectuais e como seres humanos, elevando a essência e buscando a beleza inesperada. Isso é bem claro na sequência do concerto de piano na Pastelaria Espiritual, com o diálogo entre a música tocada pelo metalúrgico negro, a evolução da halterofilia, a nostalgia do patrão chinês, a dança mental da ingênua e eterna virgem, o respeito reservado do público heterogêneo (em que cafetães, prostitutas, pederastas, travestis e marginais misturam-se a yuppies burgueses, músicos, intelectuais e jornalistas) e o adeus final entre o poeta bastardo e sua musa prostituída. Essa sequência é um resumo do filme inteiro e de sua estrutura.

É preciso sentir a poesia no ordinário. Eu procuro isso desde Lilian M, meu segundo longa-metragem. É talvez a razão que me fez me aproximar da obra do italiano Valério Zurlini, o realizador que mais me influenciou. Ele sabia apresentar sentimentos como o ciúme, o desprezo, a ausência de amor, a tristeza e a solidão em família. Como Zurlini, eu sou apaixonado pelos personagens, as pessoas comuns, os seres à margem do sistema e da sociedade.

O que eu procuro mostrar nos meus filmes são as pequenas coisas que deixam traços profundos na memória, que mudam nossa visão do mundo; esses gestos cotidianos que podem ferir profundamente o outro, ou enobrecê-lo e cujo efeito não é nunca percebido por aquele que o faz. Meus filmes Anjos do Arrabalde, Amor Palavra Prostituta, O Paraíso Proibido, A Rainha do Flipper (meu episódio de As Safadas) e Alma Corsária são tributos a obra de Zurlini, não por acaso o professor de Luiz Sérgio Person no Centro Experimental do Cinema na Itália. Foi Person, meu professor na Escola Superior de Cinema São Luiz, que produziu meu primeiro curta-metragem, e a pessoa que me incentivou a fazer filmes. Na época, 1965, eu acreditava que existia a profissão de roteirista no Brasil. Era isso que eu queria fazer, pois a minha formação até então era essencialmente literária – eu sou neto, sobrinho e filho de artistas gráficos e editores. Meu avô, Gustave Reichenbach, veio ao Brasil no começo do século instalar o primeiro atelier de litografia no país.

Eu não creio que Alma Corsária seja um filme de citações, mas um filme que presta homenagem aos autores, aos filmes, aos livros, aos mestres, aos homens e às mulheres extraordinárias que eu conheci.

Na obra dos cineastas que me influenciaram, eu encontrei a analogia e a aliteração em Godard, a emoção em Fuller, a relação amor/ódio com São Paulo, o interesse pelos personagens da classe média em Person e em Roberto Santos, a lenda e o mistério, a visão zen da morte e a prostituta como ser social forte em Mizoguchi, a euforia libertária, a fé da utopia em Jean Vigo, a fascinação pela morte, a poesia no trágico em Cocteau, e sobretudo os sentimentos mais prosaicos e intensos do ser humano em Zurlini. Alguns elementos simbólicos das imagens referem-se a outros autores queridos: o campo e a cidade de Humberto Mauro, o mar metafórico de Mário Peixoto e de Julio Bressane, a musicalidade dos travelings e das panorâmicas de Andrea Tonacci, a farsa social melancólica de José Carlos Burle, os trilhos de trem e o colóquio dramático de Jean Renoir, o inexorável e a atenção às mãos de Fritz Lang, e a identificação de Rivaldo Torres com Antoine Doinel, o herói de François Truffaut.

A trilha sonora segue o mesmo caminho, procurando evocar momentos importantes de minha própria experiência de vida. Quando Xavier toca com seu grupo musical no Belvedere de Iguape, o espectador é remetido ao grupo RC7 (que acompanha Roberto Carlos) e ao grupo Jet Black. A má qualidade de som da guitarra elétrica Giannini, uma das primeiras do Brasil, lembra esse período.

Para a sequência em que os jovens andam de bicicleta à beira do mar em Iguape, eu compus uma melodia como aquelas de um ás do teclado, Floyd Kramer, que eu tanto ouvi durante a minha adolescência. Para pontuar a sequência dos dois amigos que discutem seriamente fumando um baseado no apartamento de Glicério, eu procurei um tema que evocasse as sonoridades de Edgard Varèse, que foram a trilha sonora das minhas experiências com LSD. Em suma, não se tratava de copiar a música de referência, mas de capturar a atmosfera, de evocar as minhas próprias sensações despertadas por um fragmento melódico do período.

Igualmente interessante é a importância dada a todas as experiências iniciáticas dos personagens: a primeira namorada, a primeira decepção amorosa, o primeiro trabalho, a perda do pai, a primeira experiência sexual, o primeiro e único livro publicado, as visões da morte, a deformação política improvisada, a viagem a Dois Córregos, representação do amor e suas consequências (minha sequência preferida, aliás): a sintonia muda entre o pai de Anésia e o falso noivo, o diálogo entre o velho louco paraplégico, caolho, e o herói bastardo: a comunhão familiar que perdoa a filha pródiga, a “viagem provisória” que traz tanta paz ao poeta solitário e que lhe faz sonhar com o anjo negro; a amizade profunda entre dois seres fragilizados, a ternura, quase amor; a dança que os aproxima na dignidade em sua solidão; a confraternização geral na Pastelaria Espiritual, a amizade entre o suicida e o patrão chinês, o primeiro apartamento do herói que torna-se um lugar de encontro subversivo político, a relação Impossível com a jovem revolucionária – sua grande musa –, a aprendizagem forçada da solidão irreversível, e finalmente, o último encontro de Rivaldo com seu destino. A morte, representação zen da libertação do poeta. Alguns viram nisso o símbolo da mulher ideal, intangível e Improvável; já eu vejo como um rito de passagem que não é a panacéa de todas as angústias e das dores existenciais, mas uma contingência natural da degeneração do corpo, subestimada por Copérnico. A morte vista pelos orientais como bênção. É importante lembrar que é aí o momento em que Teodoro perde alguma coisa: seu melhor amigo, aquilo que durante a vida perdeu sempre.

O filme é uma ode à amizade, uma homenagem aos amigos ausentes, às pessoas queridas que morreram durante sua realização

O poeta e crítico Orlando Parolini, morto há três anos, uma espécie de guru e mestre intelectual para os meus amigos e para mim, que viveu intensamente cada minuto de sua vida e que antecipava em vinte anos sua época inspirou o personagem do profeta. Parolini, o primeiro beatnick, o primeiro hippie, distribuindo gratuitamente seus poemas mimeografados no Viaduto do Chá. Ele fez o primeiro filme underground do Brasil, Via Sacra, que tinha cenas de homossexualidade explícita e colocava o personagem central, o próprio Parolini, travestido de Cristo, seduzindo um rapaz de 13 anos na rua, e mostrava ainda uma sequência de canibalismo a liberalismo que o herói comia um frango embebido das vísceras de um passante assassinado. Ele ainda fundou um grupo de teatro chamado Ab-Surdo, com o qual ele encenava seus textos experimentais. Orlando foi um amigo generoso. Como Kropotkin, ele defendia o caos e a ação radical, mas ao mesmo tempo ele praticava ações quase cristãs. Ele era apocalíptico e de uma extrema bondade. A contradição personificada: ele tinha o olhar do demônio e as atitudes de um santo apóstolo. Ele participou de vários de meus filmes e em Filme Demência ele personificou um alter ego de si mesmo: o guru de Fausto. O ator que interpreta o papel de Orlando em Alma Corsária é Roberto Miranda, meu alter-ego nos outros filmes (O Império do Desejo), que foi o parceiro de Orlando em alguns outros. Foi o próprio Miranda, que depois da primeira leitura do roteiro, deu-se conta da homenagem ao amigo comum e pediu para interpretar seu papel. Inicialmente, eu achei que isso seria um erro (já que Miranda era um ator adepto do “método”), mas ele insistiu tanto que eu terminei por aceitar. E eu não me arrependi, Miranda incorporou muito bem Parolini durante a filmagem.

Eu afirmei que Alma Corsária é um filme de atmosferas, e não de histórias. Percebe-se que poucas coisas acontecem na vida dos poetas. Daí a importância da mudança de ritmo e de gênero em cada uma de suas novas experiências de vida. A fragmentação da narrativa acompanha meus filmes desde Corrida em Busca do Amor, meu primeiro longa-metragem; em Lilian M., Relatório Confidencial, a mudança de estilo que introduz cada personagem masculino na vida da heroína torna-se um tique. O amigo co-roteirista (Amor Palavra Prostituta, Filme Demência), o amigo Inácio Araújo, diz que em Alma Corsária as mudanças acontecem espontaneamente ao mesmo tempo em que se mantém o equilíbrio de conjunto.

Eu creio que esse estilo “em fragmentos” vem da instabilidade de meu signo, gêmeos. Quando a estrutura da narrativa começa a me incomodar, eu mudo de ritmo, eu invento um novo personagem, e ele conduz a história para outros caminhos. Eu já pensei nisso como uma certa identidade com a “navegação” da multimídia, a possibilidade que temos de chegar a uma mesma informação, a um mesmo lugar, por outras vias, e que escolhemos a partir do estado de espírito próprio de cada um e de sua disponibilidade.

Meu modo de mostrar esse personagem de extrema esquerda ou com ironia ou com admiração e respeito provém de minha própria experiência como militante. Eu fui romântico e pueril, convencido sem estratégia, não ainda formado pela história, como muitos outros da minha geração. Eu participava de manifestações, gritava palavras de ordem, enquanto minha mãe estoniana de nascimento, anticomunista segundo a embaixada soviética, tendo tido sua correspondência pessoal censurada em Tallinn, me esperava angustiada em casa. Antes de me apaixonar por pensadores libertários, eu fui maoísta. Muita tagarelagem sem nenhuma ação. Em meu filme, zomba-se da guerrilha de apartamento. Eu admiro os que fazem de suas próprias vidas o instrumento da evolução social de um país. Eu acredito, como acreditava o professor Paulo Emilio Salles Gomes, que deve existir um desejo de sintonia entre os pensadores libertários e o marxismo avançado. Aqueles que substituíram a teoria revolucionária vazia pela prática cotidiana da liberdade ou para viver seus ideais revolucionários merecem toda minha admiração. Minha decepção com os anos 70 é devida à importância da minha geração diante do AI-5 e do acordo MEC-USAID. Enquanto se discutia o fim do sonho e tomava-se chá de haxixe, o país se preparava para o “milagre econômico”. Triste geração.

Num primeiro momento, eu apelidei Alma Corsária de meu Cinema Paradiso. Hoje eu não diria a mesma coisa. O filme de Tornatore é pessimista e acredita aparentemente na morte do cinema. Ele tem um tom nostálgico que exala fascismo. É bizarro que de uma hora para outra todo mundo se manifesta contra o cinema de autor. Incensa-se o cinema popular como se fosse a única saída para a linguagem cinematográfica. O cinema morreu! Matem o autor! É a inveja de alguns franceses. A geração nouvelle vague envelheceu e sumiu. Os neo-barrocos apareceram; o afásico Beineix e o bulímico Luc Besson conduzem o grupo. Que chatice! Mas onde estão os novos criadores? Resposta: nas cinematografias emergentes: Abbas Kiarostami, Theo Angelopoulos, Souleymane Cissé, Don Askarian, Chen Kaige, Idrissa Ouedraogo, etc. O cinema continua vivo na cabeça daqueles que têm coisas pertinentes a dizer. Chega de tanta tagarelice e de bagatelas estetizantes com pretensão cultural. Quanto mais é regional, mais é universal. Quanto mais simples, mais é profundo. O cinema é a poesia, e isso é tudo.

Carlos Reichenbach, abril 1995

(Tradução Ruy Gardnier)

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