SANDRA KOGUT
Na minha adolescência era difícil ter acesso à filmes, apesar de naquela época eles parecerem ter um peso bem maior na vida das pessoas do que tem hoje. Foi nesta fase da vida que descobri os textos do Avellar, então crítico de cinema do Jornal do Brasil. Avellar tinha um estilo muito próprio, único. Era fascinante ver a maneira pela qual ele escolhia adentrar num filme. Na maioria das vezes pegava uma cena, um detalhe, e a partir dali desfiava um mundo inteiro. Começava por uma entrada inesperada, uma portinha lateral, e terminava com algo muito maior – maior muitas vezes que o próprio filme. E assim ele se aproximava da essência do cinema – o que é um filme senão a construção de um mundo, de uma visão?
Graças ao Avellar fui aprendendo a abrir devagarzinho a porta do cinema, do mesmo jeito que ele entrava nos filmes: com cuidado, atenção e muita curiosidade.
Os anos se passaram e a vida me trouxe a felicidade de conhecer o Avellar de perto. Quanta sorte e alegria poder estar no mundo na mesma época que ele, conviver com ele, e tudo isso graças ao cinema.
Avellar foi uma figura central no cinema brasileiro (não só brasileiro, ele também sabia de tudo que acontecia na América Latina). Ele foi uma pedra fundamental, um porto seguro de sabedoria, de sensibilidade, de intuição.
Qualquer oportunidade era uma ocasião boa para se encontrar, trocar ideias sobre filmes, e escutar seus preciosos conselhos. A cada novo projeto de filme fui conversar com ele – fui principalmente ouvi-lo, como sei que muitos fizeram. Ele falava pouco, mas o que dizia ficava com a gente por muito tempo. Quando leu o roteiro do meu filme MUTUM me escreveu um e-mail fundador, que reli muitas vezes ao longo do processo, percebendo a cada leitura novas facetas do que ele estava me dizendo.
Avellar ajudou muita gente. Promovia encontros, trabalhava para alargar os horizontes. Tinha uma consciência aguda da paisagem do nosso cinema, da necessidade de proteger e promover os filmes, e isso muito além do seu gosto pessoal. Ele nunca perdia de vista o plano mais amplo, tinha esta inteligência – uma grandeza e uma generosidade que estão fazendo muita falta nesses tempos estranhos. Ele pensava além, pensava grande, pensava no todo, pensava no cinema.
Na última vez que estive com ele me assustei ao vê-lo enfraquecido, mas ele estava na verdade em plena forma. Demos risada, falamos de vários filmes. Foi uma tarde alegre. Logo depois fui tomada por um sentimento de urgência. Comecei a pensar nos muitos livros que ele ainda precisava escrever, nas muitas coisas que a gente ainda queria ouvi-lo dizer. Sugeri a ele fazer um livro de filmes latino-americanos contemporâneos, quem sabe fruto de uma conversa, como uma entrevista informal. Avellar topou na hora. Combinamos de começar a fazer nossas listas. Mas não deu tempo. A morte é sempre cedo demais, por mais que os avisos apareçam.
As vezes penso com um certo alívio que ele escapou de ver a destruição terrível que estamos vivendo hoje no Brasil, mas logo me vejo lamentando a falta que ele faz. E como não pensar na falta que ele fará? Quando um dia, finalmente, pudermos começar a reconstruir tudo de novo, vai ser lembrando de sua sabedoria e de sua generosidade que chegaremos lá.
Sandra Kogut é cineasta, documentarista e professora.
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