Retrato em Preto e Branco

PAULO ANTONIO PARANAGUÁ

Toda cinemateca é uma aventura coletiva. A do MAM foi o berço esplendido da geração Paysandu e do Estação. No Aterro, ainda se ouve o eco das vozes que passaram por lá: José Sanz, o surrealista esquecido, “nuestro hombre en Rio” (segundo Luis Buñuel), físico de Don Quixote e alma de francês, sintonizado com Henri Langlois, o fundador da Cinemateca Francesa. Cosme Alves Netto, o cubano indomável, usava guayabera e fumava charuto até debaixo d’agua (Atenção perigo, nitrato inflamável). Ronald F. Monteiro, o japonês platônico, não admirava apenas Mizoguchi-Ozu-Kurosawa, mas também o melodramático Mikio Naruse. José Carlos Avellar, o alemão inconsútil, marcava ponto todo ano em Berlim e Cannes; viajante incansável, logo incluiu na sua rota San Sebastián (Donostia para os bascos), Guadalajara (México) e Havana. Gilberto Santeiro, inesquecível Gilsan, sonhava que tinha ido para a Australia. 

José Carlos Avellar fotografava noite e dia e colecionava Leicas (Deutsche Qualität). Imagem e imaginação. Para o alemão, cada filme era uma nova viagem, uma janela para o visível e um mergulho no invisível. Está provado que só é possível filosofar em alemão. A conversa iniciada depois de cada projeção não cabia mais no Caderno B, então os textos proliferaram, viraram livro ou revista impressa e depois prosa sem fim nem fronteiras na Internet. Formado em jornal, o alemão botava as mãos na massa. Era capaz de fazer tudo sozinho, mas não era solitário. Pelo contrário, era sociável e solidário, gostava de trocar figurinhas, compartilhar o jantar e o vinho, sempre disposto para o diálogo, capaz até de fazer uma média para o circo não pegar fogo. 

Acostumado com a severidade do copidesque, Avellar descartava qualquer jargão, preferia desfiar suas ideias e sensações com a informalidade de um bate-papo. O alemão era um pedagogo autodidata, um promotor entusiasta e um programador esclarecido. A transmissão é a mais nobre das vocações. Moderado no tom, ele burilava a expressão. Estava na contramão duma época caracterizada por palavras loucas e ouvidos moucos. Está comprovado, a cinefilia é um humanismo e às vezes uma forma de resistência. 

Paulo Antonio Paranaguá é jornalista, crítico, autor de livros e um dos mais importantes historiadores do cinema latino-americano. 

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