Homenagem a José Carlos Avellar

JOÃO MOREIRA SALLES

A história é conhecida e eu mesmo já tive oportunidade de contá-la, mas sempre vale a pena repetir para os que ainda não a ouviram, em especial para os mais novos. 

É a história de um encontro e de uma decisão. Sem um e sem outra, o cinema brasileiro seria muito mais pobre, pois uma das obras mais luminosas já produzidas entre nós não teria existido. Na época desses acontecimentos, o ano de 1997, eu não conhecia nenhum de seus dois protagonistas, José Carlos Avellar e Eduardo Coutinho. 

Treze anos antes, em 1984, Coutinho, já na quadra dos 50, havia estreado o seu Cabra Marcado para Morrer. Como se sabe, o filme nascera como obra de ficção, fora interrompido pelo golpe militar de 64 e viera finalmente à luz sob a forma de documentário, vinte anos depois das primeiras filmagens. No plano pessoal, os anos que se seguiram à interrupção brutal do trabalho haviam sido especialmente difíceis para Coutinho, uma espécie de limbo criativo durante o qual ele passara a duvidar de si mesmo. Cabra mudaria isso. A recepção do filme foi consagradora, tanto no Brasil como no exterior. 

A sensação de morte em vida que Coutinho havia experimentado por tantos anos se dissipou, mas apenas para voltar, insidiosa, assim que o filme cumpriu seu ciclo de festivais, debates e matérias na imprensa. Os anos corriam – 86, 87, 88 –, saltaram para a década seguinte – 90, 91, 94, 95 – e Coutinho não conseguia realizar um segundo filme. Anos depois, ele me contou: “Eu tinha morrido pela segunda vez. Uma nova vida dependeria de ter coragem para dar a cara a tapa.” Esse gesto, como dizia, ocorreu numa noite de julho de 1997, quando ele foi atrás de Avellar, então diretor da RioFilme. 

Aqui é importante abrir um parêntese. Avellar tinha um carinho especial por cineastas aflitos. Eram a turma dele. No Instituto Moreira Salles, onde foi curador de cinema de 2008 até sua morte, em 2016, semana sim, semana não ele se virava para os colegas e anunciava: “Vou ali no café porque tenho uma sumente agora.” Inventado por ele, o acrônimo significava Superintendência de Assuntos da Mente – Sumente. Tratava-se de uma espécie de órgão soviético administrado por um só funcionário – ele mesmo – cuja função era fornecer atendimento psicológico a cineastas brasileiros angustiados, ansiosos, deprimidos ou em crise criativa. Receber uma Sumente, ter uma Sumente, participar de uma Sumente – valiam todas essas expressões – valia por meses de terapia. 

Pois bem, aquele ano de 1997 em que se passa essa história testemunhou a Sumente de maiores consequências para a história do cinema brasileiro contemporâneo. Coutinho não guardou direito se tomou uma dose antes do encontro. De toda forma, a seco ou não, armou-se de coragem e pegou um táxi até o Centro Cultural Banco do Brasil, onde sabia que Avellar se encontrava. Aproximou-se dele e disse que gostaria de dirigir um longa-metragem em que só se veriam pessoas falando. Foi sincero: estava convencido de que ninguém mais se interessava pelo que tinha a dizer, de modo que decidira fazer um filme a que só ele gostaria de assistir. Não sabia se pessoas paradas falando para uma câmera estática podia ser chamado de cinema, mas era o que estava na sua cabeça e ele não tinha mais ninguém a quem recorrer. Era um último pedido de socorro. Avellar não hesitou: “Faz o filme que eu dou um jeito de arrumar o dinheiro.” 

Como Avellar já não está ao alcance das autoridades, seria interessante conferir o quanto ele se arriscou ao dar o sinal verde sem obrigar Coutinho a se submeter à burocracia dos editais públicos. Que Deus o abençoe por isso. Essa ousadia de um gestor de cultura está na origem do renascimento mais espetacular da história do cinema no Brasil. Santo Forte, filme realizado com os recursos obtidos por ele, estourou no Festival de Gramado de 1999 e impulsionou a segunda vida do nosso maior documentarista. 

Cabra Marcado para Morrer é um filme esplêndido, mas não fez escola. “Um sol frio”, como o caracterizou Coutinho. Tivéssemos só Cabra, teríamos uma obra-prima, mas não uma obra. Devemos a obra a José Carlos Avellar, esse “déspota esclarecido”, como Coutinho passou a tratá-lo. Foi ele o amigo que lhe jogou a boia de que precisava para chegar vivo à outra margem do rio. De lá, já em terra firme, realizaria os nove filmes que vieram depois de Santo Fortepor causa de Santo Forte. Ter possibilitado o que considero a obra mais original do cinema brasileiro contemporâneo, além de uma das mais importantes do gênero documental das últimas décadas, é um dos legados de José Carlos Avellar. Não se pode sonhar com muito mais do que isso. 

Conheci Avellar relativamente tarde e nunca tive com ele a intimidade nascida de amizades que se constroem ao longo de uma vida compartilhada. Nunca lhe disse o quanto o admirava pelo tanto que fez muito antes de eu conhecê-lo. Aproveito então para declarar aqui, publicamente, essa minha profunda admiração. 

João Moreira Salles é documentarista, produtor de cinema brasileiro e fundador da Revista Piauí.

Informações:
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