RAFAEL MIRANDA
Viva Cariri! (1970)
Padre Cícero (1972)
Do Ceará ao reino dos mortos; de Lobato a Balzac; do agreste ao metafísico: diante de tamanha amplitude, iniciar a análise de maneira tão transversal quanto a filmografia de Sarno talvez seja útil. Desta, é importante esclarecer dois pontos cruciais:
Provavelmente o maior dos grandes temas de Sarno é o migrante, que atravessa toda a sua obra como se esta fosse o Brasil. Mas que isso não se confunda com a imigração: a viagem em si não lhe interessava tanto. Agora, a partir do momento que os homens e mulheres deixam ou chegam em alguma cidade, tentando se integrar, aí sim, lá estava ele, filmando atenciosamente (p.ex. os planos iniciais de Viramundo, que rapidamente mostram as mudanças de paisagem na janela de um trem rumo a São Paulo, funcionam como um curto prólogo ao que realmente interessa). Portanto, o diretor baiano não estava próximo das jornadas de Grande Sertão: Veredas, Vidas Secas nem de Retirantes, mas sim da sociologia.
Mas não se deve esperar da sua obra as rígidas sistematizações de um Durkheim, Weber ou Marx. Sarno organiza os corpos sociais filmados pelas suas atividades, sejam elas majoritariamente culturais (Vitalino/Lampião, Segunda-Feira, A Cantoria, Viva Cariri, Sertânia), laborais (Viramundo) ou espirituais (Espaço Sagrado, Iaô, Padre Cícero).
Portanto, Padre Cícero (1972) investiga alguém que não é nada estranho aos interesses de Sarno: a figura homônima que, além de chefe clerical, era dono de terras e político. O filme inicia com um plano onde se lê ”VOU ROGAR À NOSSA SENHORA POR VOCÊS”, antes de pegar emprestado trechos do filme Padre Cícero, o Patriarca do Juazeiro (1955). Isso dá lugar a um plano geral de Juazeiro naquela época, que é subitamente afunilado com um zoom violento e ritmado ao levante da música erudita, em que agora vemos claramente a igreja que estava distante. É um movimento de câmera ousado para Sarno, mas que funciona como metonímia da sua assinatura: da sociedade foca-se numa parte dela.
A montagem entre tempos dialetiza meios e fins como estados indissolúveis da história em andamento: o impacto que o líder político morto teve no desenvolvimento – ou na falta dele – de diversas áreas da cidade viva. Mas essas imagens antigas são também questionadas, seja pela narração que, apesar do tom sereno, escancara o narcisismo do coronel de batina que inaugura uma estátua própria e pelas imagens da paupérrima condição econômica que se mantém mesmo no maior centro urbano do interior do Ceará. Em menos de dez minutos, a figura do presbítero foi rasgada pela própria população que ele liderou. Rogar pelos pobres não basta.
Viva Cariri! (1970), documentário-pai do curta anterior, começa com filmagens aéreas, ao mesmo tempo que, por terra, chega uma caravana de migrantes em Juazeiro. Agora têm que trabalhar. Dois testemunhos modelares são mostrados: o do empregado e o do patrão. O primeiro é previsível: as condições no latifúndio de mandioca são escravocratas. Já o segundo é um dos ápices da filmografia do diretor, um depoimento tão honesto que lembra o trabalho de Coutinho. Esse fazendeiro tem cabelos grossos, sobrancelhas mais ainda, dedos capazes de movimentos curtos mas precisos, discurso irritadiço cheio de números, óculos e orelhas com arestas firmes. Tudo nele denota uma firmeza que contrasta com os empregados esfomeados. Enquanto sua fala anterior segue em off, essa detestável espécie de Paulo Honório real, numa exibição brutal de poder, tira um revólver do bolso e atira para cima três vezes. Em seguida, manda chamar todos os que trabalham para ele. Em quatro minutos, se mostrou a falta de meios dos explorados e as ferramentas de opressão do dominador: a fala matemática e a pistola automática.
Sarno não julga a devoção das pessoas pelo padre, não tenta classificá-la como ópio do povo ou discursar que é impedimento para a revolução. Seu legado, sintetizado, foi o de montar as fitas, e, sem querer, os corpos, feições e vozes gravados escaparam e migraram muito mais do que planejavam, cruzando o mundo inteiro. Cinema-avião: o particular viajou o mundo.
Rafael Miranda é crítico de cinema e editor da revista eletrônica Imagem e Palavra.
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