Carrovéu: filmes de Matheus Zenom, Paula Mermelstein e Vinícius Dratovsky

GABRIEL LINHARES FALCÃO

A Cinemateca do MAM, no dia 7 de novembro de 2022, receberá 7 filmes do novo selo de filmes carioca, Carrovéu, criado por Matheus Zenom, Paula Mermelstein e Vinícius Dratovsky. Uma união cooperativa de cineastas com interesses artísticos e anseios comuns, que na prática, resultam em estilos fílmicos heterogêneos. O selo é fundado como forma de identificar as obras, encaminhar os espectadores a filmes próximos e incentivar a produção e cooperação em rede entre os integrantes e amigos. Além da realização, se dedicam em paralelo a crítica e escrita sobre cinema e arte, além de alguns praticarem a pintura e a música. As exibições conjuntas apontam semelhanças e distinções entre os artistas, além de inspirar criações futuras pelo entusiasmo promovido das apresentações coletivas. O grupo já se expande incluindo novos cineastas, como Pedro Almeida, e novos filmes já em fase de montagem.

Serão exibidos três filmes de Matheus Zenom: O rio, Sonho Verde e Fragmentos. Filmado em Covilhã, Portugal, O rio faz uma exploração das especificidades plásticas do local em uma visita que tem o trajeto rescrito pela montagem. Uma forte neblina banha a paisagem rochosa de altitude elevada, deixando visível apenas poucas árvores, grandes pedras e a mata baixa espalhada pelo chão. A sensação térmica é fria e a natureza se mantêm em silêncio. Movimentos de câmera cautelosos e panorâmicos dão forma ao espaço. Paula Mermelstein atravessa constantemente as imagens com uma câmera digital fotografando a paisagem. A ordem dos planos nos apresenta a seguinte reescritura da aventura: a fotógrafa surge nas imagens com um homem adulto calvo; ele desaparece das imagens; um gato preto cumprimenta a fotógrafa que seguirá pelas paisagens sem um objetivo certo desfrutando da paisagem sem horizonte; em uma última panorâmica, a única com intermitências, o rio é revelado em meio a cores avermelhavas inéditas das árvores e musgos. O misterioso rio encerra o filme tanto como possível achado da exploração como possível destino final do percurso. Matheus, personagem não visto, é narrador e testemunha ocular das elipses.

Sonho Verde segue uma estrutura similar. O palco é uma piscina natural de águas esverdeadas cercada por azulejos antigos e uma borda de pedras que aparentemente pertenciam a floresta ao redor. Em uma espreguiçadeira, Paula aproveita o sol, vestindo biquini e acompanhada de um livro. Assim como O Rio, a forma do filme não se concretiza de um roteiro ou decupagem prévia, mas sim da investigação das imagens na etapa de montagem, como um quebra-cabeça a ser composto, mas sem resolver-se. Os fragmentos de imagens pertencem ao mesmo ambiente, mas cada unidade garante sua força independente. A sucessão que Matheus apresenta não é fruto de um embaralhamento da linearidade ou da tentativa de estabelecer um desencadeamento de eventos, mas simplesmente uma combinação possível em que as partes potencializam suas forças individuais. A leve tremulação da câmera em algumas imagens, similar ao inevitável balanço das águas, contrapõe a calma do evento, dando uma tensão maior a estes fragmentos específicos. Apresenta-se assim um jogo de forças: o dia é de relaxamento, mas o sol forte não parece relaxar tanto assim; o plano do rosto de Paula, que prenuncia o mergulho, é desacelerado, como um respiro em que se observa o reflexo luminoso da água em seu rosto; os pés de Paula caminham de baixo da superfície tremulante da água que dá forma ao plano mais indefinido, mas também o mais satisfatório para a protagonista. Partes do corpo, cores do ambiente e um banho de sensações são os poucos relapsos que temos deste sonho verde.

Em Fragmentos, o jogo de forças se consolida como uma forma de cinema vetorial. Concluído durante a quarentena em 2020, o filme utiliza imagens no interior de uma residência e planos do céu. O próprio diretor, Matheus Zenom aparece em frente a câmera e se torna personagem principal que sugestivamente guia uma sucessão psicológica de imagens como representação do processo criativo de escrita. Planos de sua mão próxima ao caderno e de sua face pensativa são recorrentes. A princípio, cada imagem dita uma direção e força: um plano enquadrando um par de sapatos com a movimentação da câmera que sobe, um plano do céu em que as nuvens se movimentam para a direita e um plano de uma mão servindo café em uma xícara com uma mosca que voa em zigue-zague. Em uma sequenciação em montagem paralela, o filme desnorteia o espectador com vetores conflitantes, que nos guiam para diferentes direções, mas também transmitem uma inércia pela figuração de um desejo de expressão criativa, da impossibilidade de libertação pela localidade residencial e da intenção de olhar para fora pelos planos do céu. O desnorteamento é causado por uma organização centrífuga dos planos que lapida as sensações. A montagem se acelera aos poucos, assim como novas imagens e novos vetores são acrescentados, proporcionando um acúmulo cada vez mais próximo de um rompimento transbordante. Um vento sopra levemente as folhas de papel que vemos desde o início do filme, e a seguir, um longo plano rompe a agonia que prevalecia: o vento sopra o cabelo de Paula, que está com a cabeça deitada a sorrir. Os rápidos fragmentos retornam e ela desaparece. Uma xícara é rodada pela mão de Matheus como se este movimento fizesse a Terra girar. A montagem desacelera e os vetores se harmonizam aos poucos, reenergizados pelo respiro: Matheus olha para o papel e não mais para o nada, a mão agora escreve inspirada, a Lua conquista o céu. O personagem principal assume por fim o papel de narrador.

De Paula Mermelstein, serão exibidos 20 Mistérios Verdes e A Viagem de Sir… O primeiro foi realizado a partir de registros em VHS realizados pelos seus pais entre o final dos anos 1980 e início dos anos 2000. A diretora seleciona 20 excertos com algum elemento da ordem do estranho e a partir de motivos particulares de cada trecho sublinha-os e ressignifica-os de maneira sobrenatural. Cada imagem é acompanhada de uma cartela verde prévia, que pode entregar um signo como pista, ou denotar um objeto que surgirá na imagem com proporções inadequadas a descrição, ou fazer seja lá qual brincadeira Paula desejar com as palavras; o jogo se realiza pela evocação do cômico e do sobrenatural a partir dessas imagens caseiras. Por exemplo, uma cartela com o texto “Um cachorro começa a ser seguido por uma sombra que não é sua” é seguida de uma imagem com um pequeno poodle que caminha no mato, em seguida, um cachorro preto duas vezes maior o acompanha por trás, e por fim, um beagle surge e se une aos outros. Os sons que acompanham esses excertos são adicionados pela diretora e intensificam a estranheza nos registros visuais. As músicas, recheadas de sensacionalismo, deixam claras as regras do jogo: há um forte desejo de evocação dos gêneros cinematográficos e, ao mesmo de tempo com as mesmas notas, escancarar o materialismo dos artifícios fílmicos.

A Viagem de Sir… segue por vias próximas, utilizando-se de fotografias e textos presentes nos livros que folheava quando criança, principalmente livros de biologia dos seus pais repletos de imagens e livros anuais do Guinness World Records. Com este material, Paula realiza uma expedição marítima por diferentes tempos e lugares da história da Terra com fósseis, animais e monstros, assim como locais glaciais, gravuras do Egito Antigo e gibis. A diversidade de técnicas e suportes visuais progressivamente se expande, abrangendo diferentes proporções, dimensões e resoluções de imagem, evidenciando a materialidade do método pelas disparidades. O conteúdo das fotografias é explícito e Paula utiliza-os com frontalidade, não se atendo a motivos específicos como em 20 Mistérios Verdes, mas sim recortando seu interesse e distanciando-o da sua razão original, explorando suas particularidades plásticas e suas possíveis evocações imaginárias para o espectador. A narrativa segue como uma antiga expedição se aproveitando de toda loucura envolvida no isolamento marítimo, como devaneios do suposto Sir por estudos, relatos e evidências de terceiros presentes nos livros, quimera daquele que só tem a encarar o horizonte no mar. Os textos recortados nos entregam frases ou palavras soltas que estimulam o imaginário, construindo a atmosfera do horror sobrenatural junto aos curtos sons da natureza que nunca se identificam por completo. A montagem folheia e o olhar se fascina; recebemos a sucessão de imagens como um marinheiro que perdeu a sanidade, mas também como uma curiosa criança ávida a exploração das páginas.

De Vinícius Dratovsky, serão exibidos Ollerese e Marcha pro Morto, filmes com histórias que podem ser contadas em apenas uma frase curta, como lendas urbanas da zona sul carioca na ponta da língua da população: a menina que fugiu de casa sem rumo pela noite deixando apenas uma carta e pela manhã sumiu no horizonte como um pássaro, os dois homens que roubaram um cadáver no cemitério São João Batista e foram mortos na mesma noite pelo espírito que os acompanhou. O diretor expande os contos por seus trajetos; à menina, concede uma perambulação por vezes dançante, ao morto, uma marcha, permitindo assim estudos luminosos em que a câmera recolhe e coleciona luzes pelas solitárias noites urbanas enquanto acompanha o curso de seus personagens. Além do espaço físico, múltiplas camadas psíquicas estão presentes nos registros, convergindo em uma síntese entre a psique dos personagens opacos, da percepção visual impressa nos imprevisíveis enquadramentos descentralizados e das solidões real e ficcional destas paisagens cariocas conhecidas, porém pouco visitadas a essas horas. Mais justo que chamar os filmes de Vinícius de cinema da noite é chamá-los de cinema da madrugada, momento do dia em que essas múltiplas camadas psíquicas entram em coexistência e questionamento existencial; a ficção é motivo para a documentação da madrugada, ambiente que, pelo silêncio, escuridão e vazio, influi na psique tanto pela apreensão barroca do espaço quanto pela total indiferença da cidade ao sujeito.

Ollerese parece habitar os momentos de passagem entre a vigília e o sono, no embaçar da visão, enquanto Marcha pro Morto, se faz na insônia, no alerta total que não permite o descanso, na concretude da visão. A monotonia reina nos trajetos dos contos que são encenados como rituais. Os poucos sons ouvidos nestas caminhadas, são escolhidos a dedo como uma manufatura: carros passam silenciosamente, ouvimos o mar quando surge refletindo a luz, e quando nos damos conta do silêncio nem sabemos dizer há quanto tempo estamos sendo acompanhados por ele; sons entram e saem com a mesma fluidez e discrição dos nossos fluxos de pensamento. Uma composição continua pela monotonia, que se faz presente na imagem por uma montagem figurativa que utiliza signos não para dominar o espectador, mas sim, convidá-lo à aventura.

Em Marcha pro Morto, o sagrado se impõe sem a necessidade de disputar grandezas: na amplitude da imagem escura, o Cristo Redentor perde seu valor monumental, mas continua a observar e ser observado, a escritura em latim despercebida na entrada de um cemitério “Revertere aad locum tuum” merece um plano único que adverte os dois ladrões; símbolos que se misturam com o profano na composição continua. O roubo do cadáver é tratado com seriedade pelos dois homens e encenado com a consciência da ridícula encarnação; um homem veste blusa social e o outro regata, um está de chinelo e o outro de tênis. Pular a grade do cemitério São João Batista para executar o roubo é um desafio a ser resolvido na posta em cena, e se utiliza da matéria e do corte para quebrar expectativas positivamente pelo ridículo. Desfilar pelas ruas do Rio de Janeiro de madrugada com um cadáver falso de curso de medicina nos braços, uma grande pá apoiada nos ombros e um espírito encarnado em terno branco e pintura facial alva é uma realização desafiadora aos limites sacros e despojada o suficiente para aproveitar o gosto pela encarnação do conto em seus recursos mínimos. Em caminhadas noturnas, Vinícius encontra no ambiente físico e na relativização das sombras, as portas abertas para outras dimensões.

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