Casa de Farinha e Engenho

GEO ABREU

“Nem que me custe a morte eu só conto a verdade.”

A frase que abre este texto é o ponto final da entrevista com um lavrador em Casa de Farinha, um dos oito curtas dirigidos por Geraldo Sarno dentro do projeto que ficou conhecido como Caravana Farkas. Indignado com a penúria em que vive, o lavrador fala abertamente à equipe de cinema sobre os percalços de produzir e vender farinha no interior do Ceará em finais da década de 1960. Ao que tudo indica, entre a documentação de práticas e relações com o mundo que parecem com os dias contados e a observação participante dos acontecimentos, o que Sarno imprime nesse curta parece também querer apenas dizer a verdade, custe o que custar.

Num estado ditatorial, como era o brasileiro no período em que o fotógrafo e pesquisador Thomaz Farkas organizou esse projeto de documentação da vida e tradições populares do nordeste brasileiro, o cinema verdade encontrava um jeito brasileiro de ser.

Apesar da aparência de documentário antropológico, Casa de Farinha guarda algo de cinema popular, a partir de um olhar curioso que não teme se aproximar dos objetos e pessoas filmadas. Pendulando entre isso – que chamaremos de ritmo popular da imagem – e o tom professoral da voz over, a direção de Geraldo Sarno parece informar um tipo de documentário à brasileira que seria replicado até mesmo na ficção, talvez de maneira equivocada ou tendenciosa. Não se trata de olhar o nordestino, o lavrador, até o ponto em que a imagem possa, de tão esmerada, esvaziar-se de seu conteúdo político: a beleza das cantorias e imagens de feira e trabalho não se afastam das dificuldades materiais nas quais aquele universo se sustenta e mantém. Tampouco esse universo sertanejo existe como repositório de uma romantização da pobreza, tendência amplamente encontrada em discursos artísticos exógenos – produzidos por artistas provenientes de classe sociais privilegiadas.

É para evitar esse terrível equívoco que tanto Casa de Farinha quanto Engenho parecem se ater à realidade de tal forma que não sobra espaço para transpor algumas barreiras e observar, por exemplo, a vida dos objetos na casa de farinha/engenho ou a importância dos animais que ajudam na lida.

No primeiro curta, vemos a mandioca sendo retirada do roçado e transportada no burrinho até o lugar onde se transformará. Toda essa transformação é documentada com atenção. Só as mulheres descascam a mandioca (enquanto cantam). Tanto a prensa quanto a moenda guardam um aspecto muito rudimentar. A sequência da música sincopada se une ao ritmo da rodagem da moenda, sugerindo um dinamismo que somente o cinema poderia imprimir àquela coleção de movimentos, objetos e técnicas ancestrais.

Só ao final do filme, quando nos familiarizamos com os ritmos e personagens – quero frisar que os equipamentos usados na feitura da farinha e da rapadura vigoram timidamente como personagens –, é desnaturalizado o caráter familiar e ancestral da feitura de farinha. Transformado, numa virada brusca do roteiro, em processo de trabalho e exploração do dono da casa em relação a seus agregados, que utilizam as instalações para processar a mandioca em troca de parte da produção, retirando aquela atividade de um tempo quase mítico, atirando-a ao tempo do capital e da comodificação de modos de vida.

Em Engenho vemos a mesma operação de inventariar práticas populares e ancestrais de viver e produzir o mundo em contraposição ao tempo de produção capitalista. Logo de início, uma cena praticamente se repete: os lavradores, agora em grupo, os animais de carga e o transporte da cana recém-cortada. No caso do engenho, esse tipo clássico da organização social sob o qual repousa boa parte da história da sociedade brasileira, o documentário capta um ritmo entre arcaico e adaptado ao sistema capitalista de produção.

É interessante como as imagens possuem um ritmo despersonalizado, de observação científica – em Engenho até mais do que em Casa de Farinha –, longe de um entendimento xamânico do mundo. Mas a busca parece ser essa mesmo, como em muitas outras caravanas de cientistas sociais que se dispuseram a catalogar o Brasil a partir de encontros com a cultura popular: Spix e Martius, Mário de Andrade, Caravana Farkas. Apesar desta constatação, não se pode deixar de reconhecer o grande legado sistematizado aqui – vide Dramática Popular, outro curta dirigido por Sarno – como em todas as expedições citadas. Um Brasil que segue estranho de si mesmo, quando muito vampirizado em alegorias grosseiras e descartáveis que pouco se empenham em deixar que aquele universo fale por si.

Geo Abreu é professora, crítica e editora da Revista Multiplot.

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