Centenário Chang Cheh

Os cinco venenos de Shaolin (1974)

Índice de textos

Chang Cheh: visionário da morte, por Sean Gilman
Espadachim de um Braço (1967), por Gabriel Papaléo
A Andorinha Dourada (1968), por Diogo Serafim
A Vingança do Kung Fu (1970), por João Pedro Faro
O Duelo (1971), por Bruno Lisboa
O Boxeador Chinês / O Assassino de Shantung (1972), por Beatriz Saldanha
Margem da Água (1972), por Ruy Gardnier
Caratê Sangrento / Irmãos de Sangue (1973), por Filipe Furtado
Os Cinco Mestres de Shaolin (1974), por Guilherme Martins
Os Cinco Venenos de Shaolin (1974), por André Fernandes
O Super Dragão Chinês (1982), por Giulio Bruno


Chang Cheh: Visionário da Morte
por Sean Gilman

“Poucos no cinema chinês, ou em quaisquer outras formas de arte, ousam ritualizar ou elogiar a morte, ou a vêem como uma realização heroica e expressão suprema da vida como fez Chang Cheh. A morte, quando colocada em um patamar tão elevado, não é mais uma tragédia, mas auto-realização por meio de sacrifício”. Sek Kei

Como mostram os créditos no IMDb, Chang Cheh dirigiu quatro filmes em 1967 e um em 1968. Ele dirigiu seis em 1969, quatro em 1970 e seis em 1971. Oito em 1972, seis em 1973 e outros oito em 1974. Cinco tanto em 1975 quanto em 1976. Quatro em 1977. Cinco em 1978. Quatro em 1979 e seis em 1980. Três em 1981 e quatro em 1982. Entre sua primeira produção com a Shaw Brothers, The Butterfly Chalice, de 1965, e Great Shanghai 1937, de 1986, ele dirigiu pelo menos um filme por ano, com um total de oitenta e seis longas-metragens (de um total de 92). Essa conta inclui os 76 do seu período auge de 1967-1982 (uma média de quase cinco filmes por ano), quando os filmes de Chang Cheh eram sinônimos do cinema de ação de Hong Kong, inaugurando cada estágio da Era de Ouro do gênero, desde filmes de espada wuxia passando por sagas de gângster da era republicana, por filmes Shaolin de kung fu até os emaranhados barrocos de características wuxia com mistério gótico.

Ao longo do caminho, ele ajudou a lançar a carreira de dezenas de estrelas e diretores, e foi o catalisador na transformação de uma indústria construída ao redor de musicais elaboradamente projetados e protagonistas femininas icônicas em outra, obcecada com ideias tradicionais de masculinidade e virilidade, onde bonitos homens sem camisa expressam devoção e lealdade uns pelos outros antes de espancarem outros homens, esses menos bonitos mas igualmente sem camisa. É esse código de irmandade que se provou o legado mais duradouro de Chang, diretamente inspirando o gênero policial de “derramamento de sangue heroico” inaugurado por seu antigo assistente John Woo, e portanto quase todo filme de crime feito nos últimos 30 anos em Hong Kong e além.

Mas enquanto Woo encontra uma fonte de tragédia moral e transcendência espiritual nesse código, que Johnnie To e Ringo Lam descobrem que nada mais é do que uma fachada para as cínicas manobras de forças e instituições além de nossa compreensão, para Chang Cheh os requisitos sangrentos da masculinidade são uma fonte de glória. Notoriamente, seus heróis morrem de pé: sacrificando-se com gratidão por uma causa, seja ela política, fraternal ou ideológica. Mais do que qualquer outra coisa, é a morte que traz sentido às suas vidas, e quanto mais medonha a morte mais puros são seus ideais.

Chang Cheh nasceu em 1923 ou 1924, dependendo de qual calendário você consulta. Seu pai era chefe de gabinete de um general na área de Xangai, e acabou trabalhando sob os auspícios do partido Kuomintang (KMT) de Chiang Kai-shek. Durante a guerra com o Japão, Chang foi mandado para uma escola militar no interior do país, e eventualmente trabalhou no braço de propaganda do partido em Xangai. Ele ajudou um grupo de diretores acusados de colaborar com os japoneses depois da guerra, mas além disso não formou laços com a indústria cinematográfica de Xangai.

Em 1950, quando grande parte do partido KMT fugiu para Taiwan após perder a guerra contra os comunistas, Chang agarrou a oportunidade de dirigir Wind and Storm over Alishan em Taiwan, mais ou menos de brincadeira. Ele se interessou pela política Taiwanesa nos anos seguintes, fazendo amizade com o filho de Chiang e herdeiro aparente Chiang Ching-kuo. Ele foi muito cauteloso com a natureza de esquerda de suas crenças políticas, tentando ser visto como um intermediário entre a esquerda comunista e a ala autoritária do Kuomintang de direita. Mas as manobras de facção do interior de uma ditadura militar acabaram não sendo para ele (resumindo a longa e confusa história que ele relata em suas curtas Memórias), e no final dos anos 50 Chang estava em Hong Kong trabalhando como crítico de cinema e roteirista, primeiro para o estúdio MP&GI e depois para a Shaw Brothers. Ele dirigiu The Butterfly Chalice em 1965, no então elegante gênero musical huangmei, inaugurado pelo diretor Li Hang-hsiang, da Shaws.

Chang não ligava muito para esse gênero, e no ano seguinte conduziu um experimento em wuxia para o estúdio, rodando Tiger Boy em preto e branco e com um orçamento extremamente baixo, fazendo ele mesmo toda a coreografia de ação. Acredita-se hoje que o filme esteja perdido, mas a Shaw rapidamente começou a produzir uma série de wuxias. A adaptação de 1965 por Hsu Tsung-hung é considerada a primeira dessa série e empregou muitas das mesmas figuras chaves dos primeiros filmes de Chang: as estrelas Jimmy Wang Yu, Lo Lieh, Tien Feng, o coreógrafo/dublê Liu Chia-liang (Lau Kar-leung), Tong Kai e Yuen Woo-ping, todos participantes da estreia em cores no wuxia de Chang, O Magnífico Trio do Kung Fu, de 1966. O ano decisivo para Chang foi 1967, com três filmes estrelando Jimmy Wang Yu: The Trail of the Broken Blade, Espadachim de um Braço e O Assassino.

Broken Blade é uma história de sacrifício, com Wang Yu se escondendo depois de matar o primeiro ministro (que havia assassinado seu pai). A mulher que o ama anseia por ele, e o jovem espadachim que se apaixona por ela, ao aprender que o coração dela pertence a outro, decide encontrar Wang Yu. Ele encontra, mas Wang não revela sua identidade, e durante grande parte do filme mata-se tempo à espera do espadachim descobrir o disfarce. Enquanto isso, os dois se percebem espíritos próximos, e eventualmente Wang Yu corre para combater um exército pirata sozinho na esperança de morrer, e de que o espadachim e sua antiga namorada vivam felizes para sempre. Ela textualmente o acusa de procurar por uma desculpa para se sacrificar, um impulso de todos os heróis de Chang que irá se revelar mais sutilmente em seus melhores e mais tardios filmes.

Espadachim de um Braço, desses três filmes, foi o de maior sucesso, apesar de que o próprio Chang declara-se insatisfeito com os floreios mais melodramáticos, e alega que seu estilo visual é muito derivativo do filme de Fei Mu feito em 1940, Confucius, apesar de ser o primeiro filme onde Chang começa a usar a câmera na mão para avivar suas sequências de ação. É um dos filmes mais psicologicamente complexos de Chang, com o herói epônimo sendo mutilado pelas mãos (espada) de uma jovem mulher ciumenta e odiosa inspirando todo o tipo de frenesi freudiano. O roteiro é a primeira colaboração de Chang com o escritor de sci-fi e wuxia Ni Kuang, que roteirizaria ou co-roteirizaria a maior parte dos filmes de Chang ao longo dos próximos 15 anos, além de muitos outros clássicos da Shaw Brothers (ele tem 229 créditos como roteirista listados no IMDb).

O conflito central de Espadachim de um Braço, assim como em A Volta do Espadachim de um Braço, de 1969, mas não incisivamente em O Novo Espadachim de um Braço, de 1971, é entre o desejo de Wang Yu de sair do mundo da luta de espada em favor de uma vida de simples felicidade no campo e as demandas do código de guerreiro que insistem que ele retorne para o jianghu (o mundo para além dos limites da sociedade normal que é o cenário de um wuxia). Esse é o conflito de O Assassino também, com Chang refletindo bastante sobre a vida normal que Wang Yu deve abandonar para satisfazer os requisitos vingativos do seu código de honra. Chang perdeu rapidamente o interesse por esse tema, decidindo então focar nos laços entre lutadores, mas Liu Chia-liang iria recuperar esse conflito em seus filmes de kung fu do final dos anos 70, explorando mais profundamente o conflito espiritual entre os imperativos budistas/taoístas de se retirar de preocupações mundanas e as demandas de honra e justiça social para assumir um papel ativo no combate.

O auge do período inicial de Chang é A Andorinha Dourada, de 1968, concebido como uma sequência do grande sucesso de King Hu de 1966, O Grande Mestre Beberrão, e estrelando a heroína do filme, Cheng Pei-pei. Chang, porém, tinha pouco interesse nela ou em sua personagem e o filme, a história de um triângulo amoroso jianghu entre ela, Lo Lieh e Jimmy Wang Yu, ganha vida somente com o personagem de Wang Yu, um homem obcecado por provar suas próprias proezas marciais. King Hu e Chang Cheh foram as figuras chave no retorno de filmes de artes marciais do final dos anos 60, apesar de serem diametralmente opostos no quesito sensibilidade. Os filmes de Chang são incansavelmente físicos, mesmo nesse estágio inicial, enquanto os de Hu são mais fantasiosos e menos amarrados às demandas de realismo na ação. Enquanto Chang estava contente trabalhando com as restrições do sistema de estúdio da Shaw, feliz de tirar vantagem de todas as oportunidades de trabalho providenciadas, Hu constantemente entrava em conflito com seus produtores, estourando o cronograma e o orçamento. Depois de O Grande Mestre Beberrão ele se tornou independente, e completou só um punhado de filmes na próxima década em Taiwan e na Coreia. O fato de todos esses filmes serem obras-primas diz muito sobre o valor do método de Hu. Chang provavelmente fez um número equivalente de ótimos filmes nesse mesmo período, mas fez muitos esquecíveis também.

Depois de 1969, Jimmy Wang Yu passou a tentar a própria sorte na direção de filmes, e Chang promoveu Ti Lung e David Chiang, que tinham trabalhado como figurantes e dublês nos filmes de Wang Yu, ao estrelato. A dupla trabalhou junto em mais ou menos uma dúzia de filmes ao longo dos próximos anos. Eles formam um time clássico para as telonas: Ti Lung é alto e de aparência nobre, enquanto Chiang é mais baixo e tem um charme astuto. Eles apresentam tanta química nos filmes que a linha entre irmandade e romance fica cada vez mais tênue. Chiang inicialmente atuou numa série de filmes wuxia influenciada por Westerns americanos e italianos (O Espadachim Solitário, The Wandering Swordsman), enquanto Ti estrelou em Dead End, um experimento em história contemporânea de Chang que acabaria sendo uma de suas obras mais impressionantes, porém os próximos filmes modernos The Singing Thief (estrelando Jimmy Lin Chong) e The Singing Killer (estrelando David Chiang) foram menos bem-sucedidos.

Em 1970 a dupla protagonizou dois dos melhores filmes de Chang: Sangue de Heróis e A Vingança do Kung Fu. O primeiro é um grande filme de época, baseado em lendas das guerras civis que engoliram o império nos últimos tempos da dinastia Tang. O segundo iniciou um ciclo de filmes que se passam no início da era republicana do Século XX, precursores tanto das sagas de gangue modernas quanto de filmes de sucesso de Bruce Lee como A Fúria do Dragão. Sangue de Heróis é um filme de guerra de tirar o fôlego, e Chiang e Ti interpretam generais ajudando no resgate do Imperador das mãos de bandidos. Eles acabam sendo traídos por dois de seus irmãos, mas conseguem mortes gloriosas: Ti dando conta de um exército inteiro em uma ponte e Chang numa execução, sua lealdade para com seus irmãos do mal tendo sido sua ruína – ele prefere morrer a perder a fé. Alguns dos melhores filmes de Chang permeiam o wuxia e o épico histórico, como um par de adaptações de segmentos da clássica novela Margem da Água, e Rebelião dos Boxers, de 1976. Esse último, caso não tivesse sido remontado (sob a influência do governo Britânico em Hong Kong, para minimizar os crimes dos imperialistas ocidentais no filme, que poderia ter sido perigoso durante a Revolução Cultural que estava acontecendo no continente) poderia ter sido seu melhor filme.

A Vingança do Kung Fu cumpre a promessa do ponto de exclamação do título (Vengeance!, em inglês, ndt) com Chiang vingando o assassinato do ator de ópera Ti, cometido por gângsters da maneira mais sangrenta possível. A cena da morte de Ti, que entrecorta sua performance no palco e a luta com a gangue, é especialmente impressionante, colocando de maneira literal a conexão entre os filmes de artes marciais de Hong Kong e a tradição da Ópera de Beijing. Ti e Chiang criaram laços ao longo dos próximos anos em O Duelo, Duelo de Punhos, O Resgate, Irmãos de sangue e outros, filmes cujos títulos expressam exatamente o conteúdo, mas provavelmente o filme mais influente desse período foi O Boxeador Chinês (ou O Assassino de Shantung), de 1972, que juntou Chiang com o novato Chan Kuan-tai numa história de gângster da era republicana em Xangai. O filme eventualmente ajudaria a inspirar a muito bem-sucedida série de TV The Bund, que deu a Chow Yun-fat um de seus icônicos papéis de início de carreira e gerou várias sequências, remakes e adaptações para o cinema, incluindo a produção de 1996 de Tsui Hark, Shanghai Grand, estrelando Andy Lau, e o filme de 2015 Once Upon a Time in Shanghai.

Chen Kuan-tai acabaria se tornando uma estrela essencial na fase seguinte da carreira de Chang, uma série de filmes de kung fu baseada nas lendas ao redor da destruição do Templo Shaolin e sua conexão com a resistência do sul da China contra o governo Manchu durante o período da dinastia Qing. Em Dois Heróis do Karatê, de 1974, Chen interpreta Hong Hsi-kuan, refugiado do templo e depois criador do Hung Fist, que é o estilo de kung fu praticado por Liu Chia-liang e, mais notoriamente, Wong Fei-hung. Ele forma uma dupla com Alexander Fu Sheng que interpreta Fong Sai-yuk, outro herói folclórico do Shaolin mais reconhecido por dois filmes de Jet Li do início dos anos 90 dirigidos por Corey Yuen. Fu Sheng, com sua franja juvenil e insolência boba e gentil, antecipa a persona estelar de Jackie Chan por alguns anos. Ele se tornou um dos atores favoritos de Chang Cheh. Chen é o mais masculino e estoico do par, com músculos impressionantes e atitude nobre remanescente de Ti Lung. Chang explorou a mitologia Shaolin sem parar nesse período, em As Artes Marciais de Shaolin, Lutadores de Shaolin, Os Cinco Mestres de Shaolin, Discípulos da Morte, Vingadores de Shaolin, O Grande Mestre da Morte e O Templo de Shaolin, todos lançados entre 1974 e 1976. As Artes Marciais de Shaolin co-estrela Gordon Liu (que logo atuaria na série de filmes Shaolin de Liu Chia-liang) e Yuen Siu-tien numa performance que prenuncia seu trabalho como o irritável professor em Punhos de Serpente e O Mestre Invencível, com Jackie Chan, dirigidos por Yuen Woo-ping.

Os filmes Shaolin podem, de maneira geral, ser lidos como alegorias soltas da relação de Hong Kong tanto com o continente quanto com o ocidente, com qualquer das duas influências externas vistas como ameaça para a manutenção das tradições locais. Os filmes de Chang nunca são explicitamente políticos, apesar do mesmo ter feito a relação da violência de seu trabalho com o clima que prevalecia na época da Revolução Cultural e das revoltas que ela inspirou na colônia. Esses filmes também mostram a forte influência de Liu Chia-liang, tanto na coreografia, com suas exatas recriações de técnicas tradicionais (demonstrações formais que dominariam as sequências de créditos iniciais dos filmes de Chang) quanto na ênfase dada à pedagogia das artes marciais, ao relacionamento mestre-pupilo e aos métodos de aprender e lutar. Essas preocupações continuam nos próprios filmes de Liu (ele teve sua estreia na direção em 1975), com a principal diferença entre os dois autores sendo a grandeza da violência e do sacrifício no trabalho de Chang. Os filmes de Liu são efêmeros, teóricos; os de Chang são sempre unidos por sangue.

A última grande fase da carreira de Chang Cheh é inaugurada em 1978 com Os Cinco Venenos de Shaolin. Esse ciclo deve tanto à vibe dos filmes de horror da Hammer [produtora de filmes britânica, ndt] ou às adaptações de Poe por Roger Corman quanto a tradições da história Chinesa e folclore (inclusive, Chang trabalhou na co-produção Hammer/Shaw de 1974 A Lenda dos 7 Vampiros). O filme também introduz um novo elenco, conhecidos coletivamente como The Venom Mob [a Caterva do Veneno, em tradução livre, ndt], que participam de duelos de kung fu cada vez mais exaustivos. Philip Kwok, que teria mais tarde um papel coadjuvante memorável em Fervura Máxima, de John Woo, era provavelmente o mais consumado dos Venenos, mas nenhum deles tinha o poder de estrela e o charme que fez de Fu Sheng, David Chang e Jimmy Wang Yu tão memoráveis. Porém, isso pode ser um efeito dos próprios filmes, pois ao invés de focarem em uma ou duas estrelas, contam histórias coletivas, com cada membro desaparecendo em um todo. Os Cinco Venenos de Shaolin é uma história de detetive, e o grupo epônimo interpreta os vilões, cada um equipado com uma bizarra técnica de lutar baseada em animais (Kwok interpreta o Lagarto). Em sequência, Combate Mortal [em inglês, Crippled Avengers, mas de vez em quando chamado Return of the Five Deadly Venoms, apesar de não ter relação com o filme, ndt] mostra cada membro do grupo mutilado na primeira metade da história, para eles então aprenderem a usar a deficiência como arma na segunda metade.

A tendência ao grotesco no trabalho de Chang chega ao estado de total fruição nesse período, assim como seu fascínio por armadilhas e dispositivos mortais. Os Vingadores Mascarados, de 1981, poderia muito bem ser um filme de horror, com o culto do mal crucificando os heróis do kung fu, enquanto O Super Dragão Chinês é um filme muito mais interessado em maquinaria do que em qualquer habilidade humana ou realidade emocional. Sua série de adaptações da novela de seu amigo e contemporâneo Jin Yong, The Legend of the Condor Heroes (fonte de Cinzas do Passado, entre outras adaptações), os quatro filmes O Valente Arqueiro de Shaolin, se deve tanto aos elaborados wuxia fantasiosos que o colega diretor da Shaw, Chor Yuen, fazia no fim dos anos 70 (Os Heróis Não Choram e Sabre do Dragão, esse último uma adaptação de outra obra de Jin Yong, o terceiro de sua trilogia Condor) quanto a qualquer tensão única na carreira de Chang, com estrelas como Fu Sheng, Danny Lee e Kara Hui engolidos por enredos estonteantes e efeitos especiais. Até seus filmes de kung fu mais tradicionais desse período, como Os Dez Tigres de Kwang Tung, uma extensão do ciclo Shaolin, são definidos pelo coletivo, com nada menos do que quinze heróis batalhando um igualmente anônimo grupo de Manchus. Sem a personalidade de atuações de estrelas ou o brilho da coreografia de Liu Chia-liang (sem contar os loucos trabalhos acrobáticos sendo feitos nesse período por Sammo Hung e Yuen Woo-ping), as lutas nesses filmes mais tardios acabam sendo somente exaustivas, exercícios violentos em masoquismo que, apesar de tudo, provavelmente capturam a essência do cinema de Chang Cheh tão bem quanto qualquer outra coisa que ele já tenha feito.

É um cinema implacavelmente violento, unido por um antigo código de irmandade que traz momentos de amizade transcendental e lealdade por meio do sacrifício, e exclui qualquer possibilidade de um mundo melhor. As mulheres nos filmes de Chang vão ficando cada vez mais ausentes, e mesmo no início elas servem somente como lembranças de um mundo no qual os heróis não podem se permitir entrar. As imagens mais (heterossexualmente) românticas de suas obras são breves momentos, como um entre David Chiang e Lily Li em Sangue de Heróis, duas pessoas sozinhas em um mundo maldito que, mesmo sabendo que não podem ficar juntos, compartilham um pôr-do-sol enquanto podem. Os filmes não chegam a desprezar mulheres (a não ser no horror castrador de Espadachim de um Braço), a misoginia vem por omissão: simplesmente não há lugar para mulheres no conceito de cinema de ação de Chang, as virtudes de lealdade, honra e sacrifício são domínio dos homens e somente deles. Isso tudo em forte contraste com seus colegas – King Hu normalmente têm mulheres como protagonistas, tendo como base uma longa tradição de guerreiras mulheres na literatura wuxia, como a Andorinha Dourada de Cheng Pei-pei em O Grande Mestre Beberrão, ou as espadachins de Hsu Feng em A Tocha de Zen, The Valiant Ones e Chuva de Luz na Montanha Vazia, ou as heroínas em coletivo de O Destino de Lee Khan. Liu Chia-liang também encontrou ótimos papéis para Kara Hui em Minha Tia Jovem e The Lady is the Boss, filmes que sabidamente alfinetam sua própria auto-importância masculina. Como os mundos que seus heróis construíram para si mesmos, com os elaborados códigos de honra e lealdade, o cinema de Chang Cheh cada vez mais se voltou contra si mesmo, fechando cada possibilidade de escape, os filmes ficando cada vez mais nefastos, violentos e vazios. É um mundo implacavelmente sombrio, onde mesmo os momentos mais sublimes são visões de morte.

Tradução: Lucas Bueno

N. do T.: Alguns dos filmes citados no texto (principalmente os primeiros da carreira de Chang Cheh e do período 1969-1970) não possuem títulos oficiais em português. Nesses casos, deixei o título em inglês, como aparece no artigo original de Sean Gilman.
(Publicado originalmente no site https://frame.land/chang-cheh-visionary-of-death. Sean Gilman escreve regularmente no site www.thechinesecinema.com)


O espadachim de um Braço
por Gabriel Papaléo

Como separar o senso de dever das artes marciais de uma subserviência mais social que de legado? Como encontrar na transmissão justa do conhecimento uma forma de compensar a honra falha entre os homens? Chang Cheh não encontra respostas em O Espadachim de um Braço, e por não buscá-las cria um épico desolador sobre as consequências do dever e da ação.

O início atmosférico, com seu jogo misterioso de luzes, antecipando a violência através das sombras, dá um tom trágico para ações injustas que ainda não vimos. Já nesse prólogo Chang apresenta o jogo de enquadramento que desenvolverá durante todo o filme: é organizado majoritariamente no contraste do uso ostensivo das lentes abertas para os planos abertos e conjuntos, dedicados às cerimônias e às introduções de espaço, e das teleobjetivas às lutas, aos golpes e às reações em close dos personagens. Esse contraste fica muito explícito na janela scope do filme, porque ressalta justamente a brutalidade dos gestos que interessa a Chang registrar; não há um interesse principal na coreografia da batalha, mas sim no impacto psicológico dela.

Essa disposição afasta consideravelmente o diretor de King Hu e Liu Chia-liang, dois outros mestres do wuxia. Hu privilegia os movimentos de câmera mais pacientes, planos abertos em antecipação aos golpes, interessado pela contemplação daquela tensão e pela elegia que vai se construindo nos seus filmes até a consumação mística do poder desses gesto; já Liu move sua câmera em decorrência direta da coreografia, com limpeza visual e rigor de encenação (muitos planos conjuntos, e poucos cortes comparativamente), porque a ele interessa a filosofia das artes marciais, o treinamento, a exaustão do corpo, o movimento pleno e assistido em sua completude.

Já a Chang interessam as vísceras, emocionais e físicas, o sangue vermelho que desestabiliza a ordem dos ditos civilizados, e usa todo seu aparato dramático para potencializar seus personagens em ações de pura consequência moral.


Para lidar com as consequências do prólogo, Chang organiza o primeiro ato para mapear toda a questão social que afasta Fang Gang de seus outros discípulos. O aprendiz se sente distante e solitário diante de seus companheiros de aprendizado, e muito antes de ser acossado já sabia que o abismo entre ele e seus algozes era o poder, o dinheiro e o sangue como transmissão do legado. O filho do espadachim que morre pelo seu mestre cresce para ser diminuído pela herdeira do mesmo mestre e pelo filho do poderoso que “pagou para estar ali”, e não há conciliação possível que não passe por um senso distorcido de dever e de servilismo. Não por acaso Fang Gang encontra paz com a camponesa Xiaoman, outra expatriada sem sobrenome, também vítima indireta das castas que regem aqui as artes marciais e suas cerimônias. O Espadachim de um Braço é um filme espinhoso ao tratar desse conflito entre cidade e campo, e ao estabelecer o tratamento da terra e a vida na fazenda como contraponto pacífico da violência dos homens. Chang mapeia com sutileza rara (no sentido de que não a utiliza com frequência em seus filmes) essa ramificação perversa da influência dos poderosos semi-feudais diante de seus supostos súditos.

A geografia da fuga de Fang Gang a partir de quando é encurralado também passa por essa antecipação visual sutil da tragédia: a neve que cai como se velando aquele ato de brutalidade, para então prosseguir na caminhada solitária até a ponte por cima do rio onde cai desacordado, como levado num cortejo fúnebre. É numa mesma ponte que Fang Gang enfrenta o segundo em comando do vilão, e para Chang interessam essas simetrias porque o legado histórico do qual os personagens enfrentam também está gravado pelos espaços.

A atenção aos personagens secundários, em particular os outros lutadores da academia do mestre de Fang Gang, sedimenta aos poucos a escalada de violência do Demônio do Braço Longo – filmado sempre de costas, para que se guarde o rosto até o final, quando o protagonista descobre que foi o mesmo algoz de seu pai. A rivalidade de décadas escorre pelas cenas mais triviais do filme, na interação entre personagens na cidade, nos templos, na luta primordial de saber qual dos dois mestres marciais irá comandar a narrativa simbólica (e absoluta) da vitória. Nesse sentido, a espada dupla que neutraliza as armas do clã surge como singela representação da chegada de uma modernidade diante daqueles costumes e cerimônias. Ao final, a própria espada dourada do clã é quebrada, e aparece como símbolo do fim dessa violência e como reverência à espada curta do Espadachim, que fora mais eficaz contra o inimigo, com seu elemento surpresa de treinamentos outros e da influência do acaso que a partiu; um fator externo fora da cegueira do confronto de mitos. Atribuir essa dimensão simbólica aos objetos e aos espaços é crucial para dar lastro físico aos seus ícones, o peso que os rituais têm nos jogos de honra e poder.

Chang está mais interessado nas trocas entre seus personagens diante de uma encenação com pano de fundo trágico e vocação para o épico, em como vão lidar com suas ações e sobreviver diante da teimosia da honra da qual todos foram forjados. Sua escala épica não vem de subtextos históricos ou elegância formal, e sim do detalhamento e da brutalidade em que seus personagens lidam com dramas maiores que si mesmos. No clímax, não vemos o impacto do golpe desferido por Fang Gang, mas sim seu semblante ao conseguir atacar seu inimigo, porque, mesmo o diretor sendo mestre em registrar o movimento, seu interesse principal é no impacto que ele tem no rosto de seu herói. E, como corriqueiro nas produções da Shaw, os cenários cuidadosos que não escondem os limites do estúdio contêm a distância precisa entre imersão e reflexão dialética, um filme que sabe ser o retrato de um passado e também uma visão presente sobre aquele passado.

No respiro do final fora de estúdio, sinaliza um caminho quase alienígena para esse passado, para o campo que Xiaoman queria prometer ao Espadachim; é a decisão consciente de encarar as artes marciais como ferramenta de manutenção das castas, cuja serventia só pode ser abraçada quando o legado se tornar algo a ser transmitido por identificação e aprendizado, e não por poder ou laços de sangue. Entre as ações dos homens e mulheres fraturados do diretor, não será hoje essa mudança utópica de paradigma.

Gabriel Papaléo faz filmes e é editor da revista eletrônica Multiplot!. Dirigiu os curtas Aqui de Volta (2018) e Sombras do Amanhã (2021), entre outros. Montou e produziu os longas Escuro Horizonte (2019) e Cena do Crime (2021), e o curta Muriel (2021). Trabalhou na Cinemateca do MAM entre 2016 e 2017 e foi curador dos curtas no Festival ECRÃ até 2022.


Um ninho para cada pássaro (A andorinha dourada)
por Diogo Serafim

Quando se discute o filme A Andorinha Dourada (1968), sequência realizada por Chang Cheh de O Grande Mestre Beberrão (1966) de King Hu, frequentemente o pensamos como obra antipodal do clássico de dois anos antes, especialmente pela maneira como cada diretor trata a figura célebre da atriz Chang Pei-pei e como articulam suas ideias de masculinidade e feminilidade. Por mais que seja em princípio uma observação apropriada, me parece mais produtivo analisar o filme de Chang pelas dualidades que este articula isoladamente na sua versão: os dois homens, Xiao Pang (Roca Prateada, sempre de branco) e Han Tao (Chicote Dourado, sempre vestido de tons escuros, frequentemente de preto), representando duas noções opostas da ideia de justiça (o Yin Yang clivado em dois), com Xie Ru Yan (Andorinha Dourada) oferecendo uma balança entre essas duas vertentes; a cidade e a natureza contrastando noções de violência e sacralidade; o martírio e a temperança como as duas vias paradoxais frente à existência; e principalmente o amor como elemento de perturbação fundamental do mundo, subordinando todos os outros sentimentos a essa rasgadura primordial, dos mais vis aos mais honrosos.

O filme inicia com um prólogo em que Xie Ru Yan é atingida por um dardo envenenado e Han Tao a salva da morte num ato heroico, o que permite que os perpetradores do crime continuem vivos apesar da transgressão cometida. Essa sequência inteira é filmada com uma particularidade: as imagens são desagregadas em vários segmentos, boa parte da tela oculta por tarjas pretas, como se alguém estivesse espiando essas ações pelas frestas de uma porta que esconde um ambiente mais vasto e complexo, como se a misericórdia de Han Tao representasse apenas uma parte da verdade.

Em pouco tempo nos é apresentada a visão de mundo de Xiao Pang, o verdadeiro herói do filme, que preenche essas lacunas do prólogo. Órfão cujos pais foram assassinados na infância, ele é irremediavelmente impiedoso, provido de uma individualidade exacerbada anti-confucionista que esvazia de valor tanto a moral quanto a vida humana em um mundo em que apenas o amor pode oferecer uma reclamação metafísica válida para a fraqueza do indivíduo (para Chang, eu argumentaria que essa fraqueza é uma metáfora para o suposto emasculamento de sua geração, decorrente da diáspora chinesa, mas não há razão para nos prolongarmos nesses trâmites de política polêmica e questionável).

Essa visão de mundo se opõe diametralmente à maneira como Han Tao vê a humanidade, este sendo um herói clássico de valores morais proeminentes, para quem matar é raramente uma solução. O filme parece considerar Han Tao como um herói alienado da civilização, que segue valores ilusórios da ética, isolado na natureza sob a ilusão do sagrado e cego para os horrores da cidade, onde a injustiça e a ganância reinam ilesas.

Esse díptico entre a natureza, domínio do sagrado, e a cidade, domínio da injustiça, também é um dos temas centrais do filme. É como se o coletivo permitisse o nascimento da tirania do homem, o impedindo de restaurar a sua individualidade e o seu verdadeiro destino que é de vagar, sem um lar, tendo apenas sua espada e seu coração como orientação, como indica a música-tema do filme, escrita pelo próprio Chang.

Na segunda metade do filme, Chang Cheh corta da ação para o sol múltiplas vezes (assim como para montanhas, árvores…), realçando essa disjunção entre a natureza e o homem provocada pelo elemento perturbador do amor: lembremos que durante o primeiro ato do filme, antes que a intriga seja engendrada, os personagens são frequentemente enquadrados em harmonia com essa natureza: Hu Zhen com o riacho, Han Tao com a floresta, Xie Ru Yan com a queda d’água (sendo submetida a um ostensivo zoom que a isola desse oásis idílico no momento em que percebe que o homem que ama é o tema da conversa, o filme abstraindo então bruscamente a paisagem e isolando o seu rosto). O amor desestabiliza essa união alienada do homem com a natureza, e essa clivagem metafísica só pode ser reparada pelo martírio.

Chang Cheh já havia apresentado tendências de um cinema mais violento e torturado em Espadachim de um Braço e O Assassino, dois filmes realizados no ano anterior, mas é em A Andorinha Dourada que esse estilo atinge o seu apogeu. O filme é impiedoso como o seu herói, constantemente alcançando novos paroxismos para a violência apresentada na tela. A fúria da direção de Chang exprime um sentimento de desgosto e revolta contra a vilania apresentada na tela que poucas vezes foi articulado com tanta força e energia. Surpreende a maneira como essa violência desmesurada contrasta com a concisão formal do filme: mesmo nas sequências em que Chang opta por uma decupagem mais instável (câmera na mão, mudanças de lentes bruscas, os cortes se tornando mais radicais), a ação mantém uma fluidez admirável.

Em uma das sequências mais chocantes do filme, uma criança mutila as próprias entranhas para provar sua inocência, após ser falsamente acusada de ter roubado o ganso de um líder de gangue. Essa cena corta diretamente para uma imagem de Xiao Pang na cama com Mei Niang, sua concubina, durante um ato amoroso. Esse paralelo parece estabelecer a ontologia da humanidade como violência, e a ideia de sacrifício e heroísmo como sendo a via fundamental para resistir a esse erro fundamental que teria sido a civilização, o coletivo.

Amar é se tornar vulnerável, e não é fortuito o fato da morte de Xiao Pang decorrer exatamente da chegada de Xie Ru Yan em cena, e ele realizar seu perigoso movimento de artes marciais “Coup de Grâce” para salvá-la. É por esse amor que Xiao Pang mata e destrói, esse amor justificando a luta contra o mundo, para que através da sua revolta e sua fúria a sua amada possa vir até ele – como ele dizia sempre, é ela quem deve forçosamente vir até ele, e não deixa de ser irônico que a única maneira de reparar sua existência seja pela ação do Outro, e que a única ação que não decorra do Eu necessária para restaurar a harmonia de um mundo cuja ontologia é a violência seja proveniente do amor – com exceção, é claro, da certeza e inevitabilidade da morte, a verdadeira solução para todos esses dilemas fundamentais da existência.

Diogo Serafim é redator das revistas online de cinema Tribuna do Cinema e Multiplot!, e escreve com frequência para o site Letterboxd. Atualmente trabalha como Assistente de Produção para Cottonwood Media e Be-Films. Cinéfilo brasileiro (expatriado na França) formado em Engenharia Mecânica. 


A Vingança do Kung Fu (1970)
por João Pedro Faro

A Vingança do Kung Fu é um filme simples. Quando Ti Lung é assassinado por uma gangue de bandidos, seu irmão David Chiang surge como uma máquina de extermínio movida pela revanche. A dupla de estrelas da Shaw Brothers interpreta atores de ópera, sendo o ponto de partida do filme um espetáculo teatral sangrento que estabelece a realidade como extensão do palco de madeira. Ou seja, tudo que acontece após a cena de abertura só pode ser experimentado pelo que é: uma breve e furiosa jornada de coreografias interligadas pela performance nuclear de Chiang, catalisador físico de toda a vibração fatal.

Chang Cheh dispõe do habitual retângulo Shawscope para encenar o caos coreográfico que encaixa a barbárie nos quatro cantos da tela. A ambientação do filme nos anos 20 certamente é responsável por embalar as batalhas em uma agressividade mais terrena, um clima modernista entregue à fúria que habita antes um filme noir do que um filme de ninjas. Em uma espécie de elegia da arma branca, o retângulo é disputado por grandes lutas de faca que obrigam os mártires da fita a se aproximarem, sendo atravessados, fatiados ou atingidos por adagas, sempre que desatentos. Nesse universo Shaw Brothers do crime moderno, a pólvora ainda não é capaz de vencer. Nos breves momentos em que algum vilão está por tentar a sorte com uma arma de fogo, não demora muito para que seja destituído por uma facada que, nas negociações de espaço constantes do cineasta, parecem servir um propósito bem mais cinematográfico do que as balas.

O controle da selvageria é comandado por Chang no campo da tela, claro, mas também na disposição do tempo. Talvez o exemplo mais esclarecido dessa operação esteja na cena do assassinato de Ti Lung: cercado por capangas em uma emboscada impossível, o jovem ator ainda resiste em pé, mesmo com um machado fincado na barriga. A batalha é entrecortada por sua performance operática, reprisada em câmera lenta, convergindo em dissonância com a velocidade de seus movimentos na luta que transcorre. Quando finalmente é derrotado, já cego dos dois olhos, seu corpo vai ao chão na velocidade reduzida, convergindo em consonância com o tempo das imagens no palco, que encerram a cena com um fecho de cortinas. Está aí o fluxo de funcionamento do filme, em que a abrupta variação de velocidade e movimento constitui uma fúria que é imparável, mas não necessariamente linear.

Dentro da máquina de composições pertencentes à Vingança do Kung Fu, é impossível ignorar a construção sonora. Composto por fragmentos secos, o som do filme emprega as variações costumeiras do gênero, com suas onomatopeias presentes em cada golpe de luta e qualquer destruição do cenário. Aos cineastas das artes marciais é oferecida uma oportunidade rara ao cinema, que é a capacidade de filmar o ar. Aqui, a todo momento em que uma faca é arremessada em direção a um alvo humano, seu percurso é acompanhado por modulações audíveis do ar, similares ao vento físico promovido por chutes ou socos. Acontece que o trajeto da violência é mais sonorizado que o impacto com os alvos, tornando a trilha do filme esse envolvimento com os trechos recortados de brevíssimas ventanias particulares. Essa sonorização trata os corpos em cena como estruturas ocas, sendo o golpe aplicado contra eles uma fração do mosaico sonoro que soa acusticamente semelhante a caixas de madeira vazias, tendo o sangue e as tripas que liberam como a única contradição à regra do que escutamos. Nada disso é exclusividade de A Vingança do Kung Fu, mas não parece possível percorrer o filme sem considerar a força das recorrências de seu contexto. 

David Chiang, a mais especial das recorrências, é o modelo prático da realização violenta. Seu motor de sobrevivência é matar, empilhando corpos para vingar o assassinato do irmão, mas a força de sua performance não é acumulativa. Possui mais intensidade que harmonia, sendo seu desejo por aniquilação um movimento sem variantes, fortemente inabalável e controlado, drenado de sentimentos e carregado de sensações. O rosto do ator permanece estável na profundidade de seu olho, mesmo nos momentos de barbárie. Seus métodos para eliminar inimigos são obras de um claro esteta, atingindo seu melhor momento ao enterrar um cachimbo inteiro na garganta de um oponente.

Para o confronto final, não poderia se apresentar com qualquer figurino que não fosse seu conjunto totalmente branco, pronto para ser tingido pela tinta vermelha que lhe é convidativa. É possível tentar achar as palavras para descrever a última batalha, que custa os vinte minutos de encerramento do filme, mas não é muito viável abarcar em texto a experiência de assisti-la. Acontece que David Chiang, ator em cena, completa a sua vingança em total estado de entrega à morte, incapaz de desistir das implicações de sua profissão. Entre dezenas de figurantes comandados pela disputa do retângulo, Chiang vai se sobressaindo do centro para as beiradas, abrindo caminho pela paisagem caótica para conquistar a revanche pela força da insistência de sua coreografia. É atingido por um tiro, esfaqueado e espancado, mas nada disso parece ir contra seu método de performance, pelo contrário, são as inevitabilidades que as extensões de seus gestos programáticos encontram naquele espaço de brutalidade conjuntiva, de expressão coletiva da fúria. Exausto e fatalmente ferido, realizado pelo massacre, ele faz a passagem do cenário em que se deu a batalha para o jardim exterior, em breve despedida ao público. Avançam os letreiros enquanto o corpo está estirado na grama, o ator descansa ao fim do espetáculo, em paz com a literalidade da morte. Não há o que fazer, as coisas são o que são.

João Pedro Faro faz filmes na produtora mbvideo (Sombra, Extremo Ocidente) e publica textos no blog vozeovazio (vozeovazio.blogspot.com)


Vermelho como seu coração (O Duelo)
por Bruno Lisboa

É possível trilhar dois caminhos ao se falar do cinema de Chang Cheh. Uma parcela da crítica vai encarar a prolífica carreira do diretor com desânimo, reduzindo-o a um industrial interessado no valor estético das artes marciais, cujas tramas simples servem apenas para enfatizar a movimentação de seus atores em cena. Outro grupo irá privilegiar o lado sensível de Chang, na dor que aflige heróis e vilões entre combates, e como cada morte é vista como uma perda significativa desprovida de glória ou satisfação, anulando qualquer entusiasmo causado pelas longas sequências de luta. Ambas visões estão corretas, porém dependem integralmente uma da outra. Não haveria valor nos brutais golpes entre Ti Lung e David Chiang caso não houvesse um código moral seguido à risca por cada um deles, motivados pela honra e compromisso entre os dois. Os personagens de Chang Cheh possuem um impulso pela honra e seguem cegamente suas convicções, mesmo que elas o guiem até a morte. São heróis abatidos pela vida, que raramente são recompensados pelas missões vingativas que os influenciam, mas que são incapazes de parar de seguir seu destino.

O Duelo se localiza em um momento de transição para Chang Cheh. Ele já havia realizado alguns de seus wuxia mais celebrados ao longo dos anos 60 e se consolidado como talvez o mais importante cineasta da Shaw Brothers depois de King Hu, até o fim da produtora em 1986. Durante os anos 70, o gênero kung fu passou a ultrapassar a popularidade dos wuxia até se tornar carro-chefe dos estúdios, tendo como ápice o ciclo dos Shaolin executado por Chang a partir de 1974. Em 1971, O Duelo se apresenta como um corpo estranho até então na carreira de seu diretor, marcada pelos igualmente masoquistas espadachins de suas obras na década anterior. Entre 1969 e 1971, Chang Cheh dirigiu 12 filmes, sendo 9 deles estrelados por David Chiang e Ti Lung. Parece corriqueiro que dois astros tenham se encontrado tantas vezes ao longo da prolífica carreira de Chang. Ambos são figuras mitológicas no cinema de Hong Kong, que por si só é uma indústria onde todos estão habituados a produzir em enorme quantidade. No entanto, basta assistir a um filme como O Duelo que se percebe o acaso milagroso que são os dois contracenando. Em O Duelo, Ren Jie (Ti Lung) é filho adotivo de Shen Tian-hung (Yeung Chi-hing), chefe da tríade, que é morto após uma batalha com uma gangue rival. Jian “Rambler” Nan (David Chiang) é um misterioso aliado de Shen, que o assassina com intenções pouco claras, causando uma crise diplomática na cena criminosa local. Desde o título do filme, a vingança de Ti Lung é antecipada, e é esperado um confronto entre Ti e Chiang. Apesar da vingança estar sempre à disposição, o respeito entre ambos prevalece e o embate é postergado ao máximo, resultando numa aliança dos dois para desbancar os novos líderes da tríade que traíram o pai de Ti Lung. Ti Lung interpreta um guerreiro emotivo, apresentado ao público tatuando uma borboleta em seu peito em homenagem à namorada. É impulsivo, defende a todo custo a honra de seus próximos, e aprende ao longo do filme a lidar com suas cicatrizes, resultado de sua pulsão por morte. Já David Chiang é um charmoso rebelde, sem causas muito claras, sempre à espreita durante os combates, mas a todo tempo disposto a defender Ti Lung em seus momentos de fragilidade. Ambos complementam-se bem, duas personalidades distintas que integram uma rivalidade/amizade capaz de comover mesmo em seus momentos de silêncio ou combate. Apesar de Chang elaborar as sequências de kung fu como escada para o drama pessoal, não se pode esquecer a reação em que os momentos de ação provoca na fragilização dos personagens. A violência é o aparente destaque do filme, longuíssimas sequências de artes marciais, com os movimentos de câmera, zooms e cortes que integram a absurda coreografia dos atores, que mesmo no mais sangrento dos combates é comparável apenas a Fred Astaire ou Gene Kelly em seus auges. Em O Duelo, a luta sempre representa um sacrifício, uma perda inestimável que jamais faz seus protagonistas repensarem o trajeto que estão tomando. Seja a perda do pai, da namorada ou a rivalidade entre Ti e Chiang, ambos estão destinados a seguirem a brutal trilha que começaram, e que resultará no duelo final entre os dois. A única certeza é que a justiça jamais será feita, apesar de Ti Lung fazer o possível e o impossível para impedir isso. Ele prefere confiar em um traidor que jurou sua morte a desistir de sua missão. A lealdade sempre está em cheque, e o único aspecto que mantém a dignidade do protagonista intacta é sua convicção perante seus ideais. Ao final do filme, Ti e Chiang se veem mais uma vez impedidos de ter seu duelo final após mais uma emboscada, e os dois estão destinados a lutar juntos até o fim, protegendo um ao outro até a inescapável morte.

Bruno Lisboa é montador e produtor de cinema na mbvideo. Produziu os longas Sombra (2021) e Extremo Ocidente (2022), e dirigiu Infinito Ábaco (2022).


O Assassino de Shantung
por Beatriz Saldanha 

O Assassino de Shantung, lançado em 1972, foi um dos maiores sucessos da produtora Shaw Brothers, inspirando uma série de realizadores que vieram a seguir e iluminando o caminho do cinema policial que predominaria em Hong Kong nas décadas seguintes. Dirigido pelo prolífico e pioneiro Chang Cheh em parceria com Pao Hsueh-li, com quem alternava a presença nos sets de filmagem, o filme traz Chen Kuan-tai no papel principal. Com uma carreira ainda incipiente, o jovem tinha sido campeão mundial de kung fu em 1969, e a partir daí teve uma parceria frutífera ao lado de Chang Cheh. Uma verdadeira sensação nos cinemas de Hong Kong, o filme estabelece um diálogo com O Poderoso Chefão, cuja estreia se deu naquele mesmo ano, e antecipa em mais de dez anos alguns elementos que seriam explorados em Scarface (1983).

Em uma narrativa que se afasta do modelo tradicional dos filmes de lutas marciais e se aproxima do cinema de gângster, O Assassino de Shantung conta a história de Ma Yongzhen (Chen Kuan-tai), um rapaz do campo que chega à Xangai dos anos 1930 à procura de oportunidades para prosperar na vida. A cidade, no entanto, é profundamente hostil, e o jovem depende de alguns bicos para conseguir se alimentar e passar suas noites em pousadas lotadas. Sem quaisquer outros recursos, Ma Yongzhen tem a seu favor uma impressionante habilidade para a luta, o que chama a atenção de Tan Si (David Chiang), um chefe do crime. Essa é a porta de entrada de Ma no submundo de Xangai, uma cidade dominada pela ganância e o gangsterismo. Aos poucos, ele passa a utilizar o poder dos punhos para ganhar confiança, respeito e conquistar posses, mas preserva em si algo da sua humanidade intrínseca, o que faz dele um exemplo perfeito de anti-herói trágico.

Ainda que no decorrer do filme tenhamos visto por diversas vezes Ma Yongzhen derrotar sozinho grupos imensos de homens, não há nada em O Assassino de Shantung que prepare o espectador para o banho de sangue do confronto final. A tela em proporção 2.35:1 do Shawscope é o formato ideal para capturar a beleza, a leveza e a morbidez dos movimentos de luta coreografados por Liu Chia-liang e executados com astúcia e precisão por Chen Kuan-tai. A câmera flutua com elegância em meio à luta que parece não ter fim e na qual o nosso anti-herói já começa em desvantagem por ter sido atingido muito cedo por uma espécie de machadinha, que permanece presa em seu corpo até que ele decide usá-la contra um de seus adversários. Ele vai até o limite do seu corpo, uma máquina de matar, mas aos poucos vê seu físico falhar. Uma das características do cinema de Chang Cheh era os enredos simples e uma certa carência nos diálogos, mas aqui nenhum desses elementos parecem fazer falta; não com a eloquência desses movimentos.

Jin Lingzi (Ching Li), única personagem feminina com algum destaque em O Assassino de Shantung, observa com indignação a escalada de violência e o domínio das gangues na cidade. A filmografia de Chang Cheh é essencialmente masculina, com as parcas personagens femininas servindo de contraponto para a violência que predomina na tela. Observadora atenta, Jin Lingzi trabalha como atração musical com o tio em uma casa de chá, mas se recusa a performar ao perceber que Ma Yongzhen parece ter se corrompido em um gângster qualquer, como seus antecessores, extorquindo a população com taxas abusivas de proteção. Ela preenche a tela com doçura nos poucos momentos de calmaria, deixando evidente que o mundo em que ela vive não se entrecruza com o ambiente dos homens, e por isso protagoniza a última cena, quando sobem os créditos, mostrando com um niilismo contundente que não há qualquer expectativa de que a onda de violência em Xangai chegará ao fim.

Beatriz Saldanha é doutoranda em Comunicação Audiovisual, professora de cursos livres e crítica afiliada à Abraccine. 


Margem da Água
por Ruy Gardnier

Margem da Água é um romance histórico chinês do século XIV, que narra os feitos de um grupo de 108 fora-da-lei reunidos no pântano de Liangshan (o livro também se chama Os Fora-da-Lei do Pântano). São inúmeras peripécias e descrições de combates e lutas contra governantes corruptos, o que sugere a comparação a uma espécie de Odisseia com espírito de Robin Hood. As diferentes versões vão de 70 a 120 capítulos, uma saga impossível de se adaptar para uma sessão de duas horas de cinema. Aí vai Chang Cheh e decide filmar Margem da Água. Não tendo como filmar tudo, seleciona uma pequena fração, nove capítulos, do 60 ao 68 (da versão de 100), que relata a saga dos 108 contra a fortaleza da família Zeng.

Porém, mesmo com o recorte narrativo mais preciso, outras dificuldades aparecem. O que fazer com a pluralidade de personagens? Como transmitir a sensação de uma ação única condutora da intriga? Como fazer para que o espectador não se perca no meio de tanta coisa acontecendo, e tanta gente? Aí Chang Cheh abandona qualquer protocolo cinematográfico e apresenta todos os personagens/atores relevantes com um freeze frame com o nome do personagem e do astro que o representa, em inglês e em mandarim. Isso acontece concentradamente numa cena de taberma e brindes de bebida, mas persiste até o minuto 24 de projeção, quando finalmente é apresentado o protagonista do filme, Yen Qing (ou Ching), o exímio lutador e arqueiro vivido por David Chiang, tocando flauta e encantando cortesãs.

A trama segue basicamente o recrudescimento de tensão entre os 108 do Pântano e o Mestre Zeng a partir da morte de Chao Gai. Reconhecendo a perícia nas artes marciais do principal general de Zeng, os fora-da-lei buscam convencer os ases Lu Junyi e Yen Qing a lutarem contra Zeng. Em modo tipicamente Chang Cheh, a tentativa pelo engodo não funciona, mas um quiprocó do destino faz com que os dois peritos das artes da luta fiquem presos com membros de Liangshan, e daí surge uma fraternidade que os compele a lutarem juntos.

Em se tratando de Chang Cheh, no entanto, o que há a ser contado de fato são as manifestações de movimento da câmera, tanto os movimentos do aparelho de filmar quanto os zooms-chicote minuciosamente coreografados que saem de um plano geral de multidão e vão para o plano médio ou o close no rosto de alguém. O movimento pleno, o ritmo heraclitiano de perene transformação, já é um traço característico de como Chang concebe a criação cinematográfica, mas em Margem da Água, ela se associa à questão central da trama, que é tratar individualmente dos personagens – e de uma multidão deles – sem perder de vista que o que interessa no fim das contas é o percurso do coletivo (um exército de 108 exímios combatentes). Nas lutas individuais, o zoom é responsável pela passagem do plano médio ao close (e vice versa), mas é nas cenas de guerra que temos uma maior intensidade de criação visual, com planos que encadeiam panorâmicas com diversos pontos de zoom in e out para flagrar detalhes específicos de um combate.

O mais incrível é que as filmagens do combate são cheias de movimentos de câmera e de zoom, mas em momento algum existe essa impressão de retórica espalhafatosa e grandiosidade de espetáculo de um Cecil B. DeMille (ou diluidores publicitários como Ridley Scott). Espetáculo há, naturalmente, mas é pelo número de figurantes, pela força gráfica dos enquadramentos e modificações de movimento no plano, e acima de tudo pela sobriedade na captação do que há para ser filmado. O zoom nas mãos de Chang não é um instrumento de ênfase grosseira e vulgar, e sim uma ferramenta que serve para manter o plano contínuo e alterar as escalas de perto, médio e longe (de um modo muito parecido com o uso que faz Hong Sang-Soo desde Conto de Cinema, aliás) desenhando com o espaço. Margem da Água pode ter suas excentricidades deliciosas e algumas peculiaridades narrativas, mas o que torna o filme essencial na filmografia de Chang Cheh é o tratamento dos espaços vastos e a agilidade para fazer caber tantas peripécias e ao mesmo tempo ater-se com alguma fidelidade ao espírito de uma epopeia nacional.

Ruy Gardnier é coordenador de programação da Cinemateca do MAM, chefe de catalogação no Acervo Circo Voador, professor de cinema e crítico para o jornal O Globo. Foi fundador e editor das revistas eletrônicas Contracampo e Camarilha dos Quatro.


Três corpos dilacerados (Irmãos de Sangue)
por Filipe Furtado

Na altura em que realizou Irmãos de Sangue, Chang Cheh estava mais do que consolidado como o principal diretor da Shaw Brothers e começava a expandir ainda mais a ambição dos seus filmes. O sucesso da dupla David Chiang/Ti Lung – 2/3 do triângulo de protagonistas aqui –, reforça que a popularidade inicial dos seus trabalhos dos anos 60 se devia muito mais ao modo físico com que explorava os temas de irmandade e heroísmo dos seus filmes de espadachim do que simplesmente a presença do astro Jimmy Wang Yu, por mais que ele fosse um excelente canal para dar vazão ao universo hipermasculino que o diretor construía.

Chang era um diretor prático, que filmava de forma incessante neste período. Foram seis filmes dirigidos ou codirigidos em 1973, e entre eles Irmãos de Sangue é certamente o mais ambicioso. Dentro desta lógica muito industrial, um dos seus talentos mais úteis era saber calibrar os filmes em torno dos seus atores centrais e, à medida que a década de 70 avançou, partiu do duo David Chiang/Ti Lung para filmes de grupos mais amplos (um contraste grande com os filmes com Wang Yu, cujo narcisismo garantia que o foco permanecesse nele mesmo quando a estrela em tese fosse outra, como A Andorinha Dourada, de 1968). Por exemplo, quando pouco depois de Irmãos de Sangue, Chang começou a trabalhar com Alexander Fu Sheng – que podia ser descrito como uma figura pré-Jackie Chan –, Chang pôs uma ênfase maior em como o ator tendia a olhar inabalado a violência em sua volta e aumentou os elementos de coreografia burlesca em meio à ação.

A dupla David Chiang/Ti Lung permitiu que Chang começasse a expandir a paleta emocional de seus homens de ação. O primeiro por vezes projetava uma figura de aventura romântica, enquanto o segundo era com frequência consumido pelo masoquismo. Ambos eram tomados pela ideia recorrente de irmandade, de homens que se uniam e aprendiam a se amar, irmãos de sangue como o título deste aqui propõe, mas o faziam por portas diversas. A dupla aqui é complementada por Chen Kuan-tai, que frequentemente sugeria uma figura um pouco mais distante e cínica. 

Com os múltiplos protagonistas, Chang aprendeu que podia fragmentar mais essas figuras masculinas que com frequência dominavam os seus filmes. Irmãos de Sangue é um filme todo sobre essa ideia, um épico masoquista sobre o conceito de irmandade cuidadosamente elaborado para que ele seja consumido por dentro. É um filme bastante essencial com sentimentos depurados: no primeiro ato, os três homens se conhecem e constroem fortes laços afetivos, seus dotes físicos os levam ao poder e na altura do final do terceiro ato eles terão se consumido e se devorado. Haverá ambição e desejo pela mulher do outro como estopim, mas a abordagem de Chang mantém o foco naqueles três homens e como eles olham um para o outro, os motivos externos, as justificativas que permitem que eles se movam do amor até a punição. O filme tem uma lógica violenta e impiedosa. É uma tragédia que se beneficia da falta de subterfúgios da direção de Chang Cheh, os sentimentos, seja de amor ou raiva, nunca são subterfúgios, é um melodrama masculino muito direto, que não busca nenhum distanciamento, e com isso se revela mais forte.

Irmãos de Sangue chega num ponto capital da obra de Chang, e de certa forma equilibra muitas das tendências dominantes dos seus longas até ali, enquanto também aponta para seu futuro. Sua concisão de sentimentos completa pela ambição dramática o tornam um dos seus filmes mais representativos. É um longa de quando seus filmes de ação faziam a passagem definitiva dos filmes de espadachim dos anos 60 para os de artes marciais que dominariam o resto da década.

Como em muitos filmes de Chang do período, abandona-se as armas pelos punhos muitas vezes no meio da ação. É bom dizer que entre os três mais famosos mestres do filme de ação de Hong Kong da época, Chang é o que mantém uma relação mais utilitária com o gênero. Se King Hu observa os feitos dos seus espadachins com grande interesse das possibilidades visuais oferecidas e Liu Chia-liang é um mestre das artes marciais para os quais elas interessam como filosofia de vida, para Chang será sempre uma questão de como usá-las para expandir as possibilidades dramáticas de cada cenário. É impossível imaginar a obra de Liu ou Hu num terreno dramático diferente, enquanto Chang filmou wuxias e filmes de kung fu como poderia ter desenvolvido carreira em qualquer outro campo dramático no qual a irmandade e o misto de narcisismo/masoquismo masculino pudessem se desenvolver

A ação é sobretudo espaço de drama, menos de forma musical como no dos seus colegas que cada um ao seu modo valorizam a ideia de coreografia, mas no foco definitivo sobre as consequências físicas dela, Irmãos de Sangue é um filme sobre corpos suados, exauridos que são levados ao limite por sentimentos conflitantes e exaustivos, a ação deles é expressiva, mas o que mais registra são seus resultados dilaceradores. Aos seus corpos nada sobrará, muito mais que o espaço, eles são o grande corpo de batalha sobre o qual Chang vai construindo seu cinema.

Filipe Furtado é crítico de cinema, um dos cordenadores da Revista Abismu e ex-editor de Cinética e Paisà. Colaborou para espaços como Contracampo, Cine Imperfeito, Cinequanon, The Film Journal, Filme Cultura, Folha de S. Paulo, La Furia Umana, Lumiere, Rouge, Teorema e Zingu. É membro da Abraccine e mantém o blog Anotações de um Cinéfilo.


Os Cinco Mestres de Shaolin
por Guilherme Martins

Em Os Cinco Mestres de Shaolin, a Shaw Brothers reuniu praticamente um all-star dos seus mais competentes profissionais de cinema. Chang Cheh na direção, Ni Kuang no roteiro, coreografias das lutas por Liu Chia-liang e Lau Kar-wing, além de muitas estrelas de cinema do estúdio. Abandonam um pouco aquela velha estrutura dos estúdios, em que as cenas de ação eram majoritariamente focadas em seus espaços internos, que iam sendo meticulosamente utilizados – e destruídos – nas longas batalhas encenadas por Chang Cheh. O filme recupera alguns dos temas relevantes de sua obra, como a irmandade, embora esse fatalismo, épico, exista aqui numa chave um pouco diferente que o habitual, não necessariamente menos mão pesada, mas de uma maneira mais direta e menos dramática.

O filme foca sua ação a partir da destruição do templo Shaolin, o que transforma os personagens centrais e a sua luta numa saga divina, no papel de verdadeiros apóstolos que desafiam a política e o império. Essa relação entre luta, política e religião é uma tradição, sempre uma relação bastante curiosa aos nossos olhos ocidentais. Os Cinco Mestres de Shaolin talvez seja o trabalho de Chang Cheh mais direto sobre estes guerreiros serem homens tocados por deuses. Eles precisam descobrir quem é o traidor que teria entregue o templo nas mãos do império. Nada disso é uma grande novidade temática, nem na obra de Chang Cheh, nem no cinema de Hong Kong em geral, seja realizado pela Shaw Brothers ou por estúdios menos ricos. Porém há algo verdadeiramente único na maneira como este filme abandona um pouco alguns dos aspectos mais dramáticos e românticos desses filmes e abraça um quase minimalismo. São homens com uma missão, batalhando e flutuando com a leveza poética que Chang Cheh conduz com tanta maestria.

A escolha de trazer a ação para a vegetação local é coerente e permite aos Liu e Chang Cheh imaginarem as batalhas de novas e infinitas maneiras. A riqueza geográfica daqueles espaços acrescenta elementos novos ao cinema do cineasta, em que o espaço cênico sempre foi chave para que a poética dos corpos fosse atingida. O cineasta dispõe no filme suas grandes estrelas em enormes cenas de luta naquela vegetação, radicalizando conceitos dramáticos costumeiros, e também indo mais profundamente na direção de uma violência brutal. Nesse aspecto, talvez seja o filme de Chang Cheh mais adequado ao cinéfilo do chamado cinema-extremo, já que há um foco ainda mais absoluto nas coreografias e na beleza extrema dos corpos em movimento com este elemento da brutalidade mais impactante. O destino final reservado ao traidor, interpretado por Johnny Wang Lung-wei, é particularmente um ápice em termos dessa brutalidade. São vinte minutos de uma batalha de encerramento de poesia simples e direta, um encerramento à altura do que prometeu Chang Cheh e sua equipe.

Guilherme Martins é crítico de cinema e produtor do podcast Detour. Foi redator da Contracampo e da Paisà e colaborou para diversos veículos de imprensa, como Filme Cultura e a Revista Interlúdio. Colaborou para os livros-catálogos das mostras Cidade em Chamas: O Cinema de Hong Kong, Samuel Fuller: Se Você Morrer, Eu Te Mato! e John Carpenter: O Medo É Só o Começo.


Os Cinco Venenos de Shaolin
por André Fernandes

Falar sobre cinema de artes marciais sem falar de Chang Cheh é uma tarefa bastante difícil, para não dizer impossível. Conhecido como padrinho do cinema de Hong Kong e detentor de um estilo bastante particular, Chang foi uma figura central no desenvolvimento e na popularização do cinema de ação de Hong Kong, especialmente entre o início dos anos 70 e a metade dos anos 80. Ao longo de sua carreira, o diretor realizou mais de 90 filmes, a maior parte deles em parceria com a Shaw Brothers, uma das produtoras mais importantes da história do cinema chinês e responsável por diversos clássicos das artes marciais.

Entre os quatro filmes realizados por Chang apenas em 1978 é necessário destacar o longa Os Cinco Venenos de Shaolin. Partindo de uma premissa bastante simples, o filme nos apresenta primeiramente ao “Clã do Veneno”, grupo formado por cinco artistas marciais com habilidades únicas e estilos de luta inspirados pelas cinco criaturas venenosas do folclore chinês: Centopéia, Cobra, Escorpião, Lagarto e Sapo. Em seguida, o Mestre da “Casa dos Cinco Venenos” (Dick Wei) encarrega ao seu sexto e último discípulo, Yang De (Chiang Sheng) a missão de encontrar os seus veteranos e verificar se eles estão usando suas habilidades para o mal. Sem nenhuma informação sobre a identidade dos homens que procura e a certeza de que não conseguiria vencê-los sozinho, Yang parte para uma pequena cidade em busca de pistas, e assim a aventura começa.

A atmosfera de tensão em Os Cinco Venenos de Shaolin é construída por Chang gradualmente e de forma quase imperceptível. É interessante observar como o filme inicialmente lida com algumas situações cômicas por meio do personagem interpretado por Chiang Sheng e como vai se tornando cada vez mais denso e sinistro, especialmente na segunda metade de projeção, quando o longa começa a tratar de corrupção no sistema judiciário e introduz à trama métodos agressivos de tortura e assassinatos. Nesse sentido, vale destacar a cena do waterboarding (técnica de interrogatório que simula a sensação de afogamento), não apenas pela sua construção primorosa através de planos bem fechados e da trilha sonora cujo volume aumenta simultaneamente à tensão do que está sendo mostrado, mas também pelo peso de sua violência explícita e simbólica.

Apesar de passar mais tempo focado na investigação dos seus mistérios do que nas cenas de ação em si, é seguro dizer que este filme permanece, em sua essência, como um verdadeiro wuxia (gênero literário e cinematográfico chinês que mistura fantasia e artes marciais), oferecendo ao espectador cenas de luta com coreografias elaboradas e efeitos sonoros bastante peculiares. A questão é que o filme de Chang encontra sua razão de ser dentro da lógica do oculto, seja pelas identidades não reveladas, pelos atos de violência praticados sem testemunhas ou mesmo pela busca do tesouro escondido. Sendo assim, ao equilibrar ação e investigação, o diretor encontra um bom caminho para entreter até mesmo os espectadores menos entusiastas do gênero.

Os Cinco Venenos de Shaolin não esteve entre as maiores bilheterias do ano de seu lançamento em Hong Kong, mas seu impacto na cultura pop ao redor do mundo está amplamente consolidado com diversas referências no cinema, na música e até mesmo em alguns jogos de videogame. É verdade que o filme não está entre os melhores trabalhos de Chang Cheh (muito mais por mérito da filmografia do diretor do que por demérito do longa), mas ainda assim é um trabalho essencial para compreender parte fundamental do estilo do cineasta.

André Fernandes é publicitário e crítico de cinema nascido e criado em Natal (RN). Escreve para o Busão Curitiba e colabora para a Cinemateca do MAM.


O Super Dragão Chinês
por Giulio Bruno

Os primeiros filmes de Chang Cheh, estrelados por Jimmy Wang Yu (O Assassino, Espadachim de um Braço, O Magnífico Trio do Kung Fu), traziam consigo certos temas e elementos herdados das huang mei opera, gênero dominante nas bilheterias de Hong Kong ao longo dos anos 50 e da primeira metade dos anos 60. Dentro do contexto de transição para os wuxia e, posteriormente, para os filmes de kung fu, o realizador desenvolveu seu estilo atribuindo-se o lamento operático, antes materializado no canto e no melodrama, ao corpo de seus protagonistas.

Prógono do heroic bloodshed, Chang sempre teve grande apreço pelo potencial operático da deformação de seus heróis. Tormentos e tribulações acumulados são levados às consequências finais em momentos como a conclusão de O Assassino de Shantung, onde Chen Kuan-tai enfrenta dezenas de oponentes com um machado cravado em seu abdômen.

Inicialmente, o Chang encontrado em O Super Dragão Chinês, lançado quinze anos depois de sua primeira grande mutilação em Espadachim de um Braço, parece o mesmo de outros filmes tardios como Os Cinco Venenos de Shaolin e Combate Mortal: encenação direta e modulada por formações de grupo – como de costume desde o início da colaboração do diretor com a Venom Mob –, planos abertos, e um zoom preocupado quase exclusivamente em capturar o ranger de lâminas e a perfuração da carne.

Pupilos de dois clãs de artes marciais duelam por seus mentores, Chief Kang (Chan Shen, vilão antológico da Shaw Brothers) e Yuan Zeng (Kwan Fung), num embate que definirá o “mestre das artes marciais”. Após uma série de derrotas, Chief Hong revela que um de seus combatentes é um samurai. Este acaba seguindo o destino de seus antecessores e é derrotado, mas amaldiçoa Yuan Zeng com uma promessa de vingança antes de cometer seppuku.

O embate entre as tradições de artes marciais japonesa e chinesa potencializa o sadismo de Chang, que filma sequências de luta progressivamente frenéticas. Na mais desequilibrada das prolongadas sequências, a vingança dos ninjas dos cinco elementos, liderada por Kembuchi Mudou (Michael Chan), põe fim a quase toda a escola de Yuan Zeng.

A sobriedade formal do período tardio do realizador entra em colisão com a excentricidade dos uniformes e armas-geringonças japoneses, evidenciando, associadamente ao massacre, uma inicial invencibilidade. Dois dos remanescentes para o acerto de contas são Shi Shang (Lo Meng, o “Shaolin Hercules” egresso da Venom Mob), e Shao Tien-hao (Cheng Tien-Chi, naquela que seria a última tentativa da Shaw em catapultar um jovem ator ao estrelato nos filmes do realizador).

Ao dividir a filmografia de Chang a partir de seus protagonistas, é fácil encontrar “filmes de transição”: é o caso de Templo de Shaolin, onde Alexander Fu Sheng contracena com David Chiang e Ti Lung, e O Novo Espadachim de um Braço, onde Chiang segue o tortuoso caminho percorrido por Jimmy Wang Yu. O caso de Super Dragão como filme de transição é curioso: apesar da presença e do kung fu de Meng carregarem consigo atributos inquestionavelmente pertencentes aos filmes da Venom Mob, a performance de Tien-Chi parece mirar numa fusão do cinismo de Chiang com a fúria de Fu Sheng.

O auto-revisionismo de fim de carreira de Chang Cheh em seu último grande filme é consequência da força mais influente em seu estilo ao longo de seus ocupados anos na Shaw: a indústria cinematográfica de Hong Kong e sua sede por star power. O Super Dragão Chinês começa como um dos filmes de grupo do realizador e, através de sua habitual sanguinolência, é afunilado ao sacrifício individual numa conclusão que, tomando as palavras de um protagonista moribundo, só pode ser tratada como fruto de possessão.

Giulio Bruno é jornalista e tradutor.



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