Artigo: Cinema é cachoeira, Humberto Mauro é cinema

FABIÁN NÚÑEZ

Assistir à obra de Humberto Mauro (1897-1983) é uma verdadeira viagem ao cinema brasileiro. Rodou os seus primeiros filmes nos anos 1920, durante o chamado período dos “ciclos regionais”, quando houve uma rica produção cinematográfica em várias regiões do país. Ao lado de Pedro Comello, Mauro protagoniza e se destaca no Ciclo de Cataguases, chamando a atenção do crítico carioca Adhemar Gonzaga, que, ao lado de Pedro Lima, defendia o cinema nacional nas páginas da revista Cinearte, onde lançou uma campanha de valorização da nossa cinematografia celebrizada pela consigna “Todo filme brasileiro deve ser visto”.

Devido ao seu talento técnico e à sua sensibilidade artística, Gonzaga convida Mauro para formar parte da empreitada da Cinédia, considerada a primeira produtora em moldes de grande estúdio no Brasil, no início dos anos 1930. Dirige filmes célebres, como o icônico Ganga bruta (1933), justo durante a transição do silencioso para o sonoro, ou seja, tateando nessa nova estética, como todos os cineastas ao redor do mundo naquele momento. Em seguida, trabalha em outro importante estúdio, a Brasil Vita Filmes, liderada por Carmen Santos.

Em 1936, é convidado pelo antropólogo Edgar Roquette-Pinto a assumir o cargo de diretor técnico do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), onde dirigiu quase 360 filmes de curta e média-metragem, em cerca de trinta anos de trabalho no funcionalismo público. Em meados dos anos 1950, é redescoberto pela crítica paulista e, em seguida, entronizado pelo Cinema Novo como uma referência estética a ser seguida. E, assim, Mauro é apelidado de “pai da linguagem cinematográfica brasileira”, devido não apenas ao seu pioneirismo mas à sua singular maneira de filmar, ao utilizar parcos recursos (em seus tempos de Cataguases) e, sobretudo, o seu olhar atento e apaixonado à paisagem
nacional em harmonia com a presença humana.

O documentário Humberto Mauro (2018), de André di Mauro, nos convida a conhecer o apaixonante universo maureano. Realizado com imagens de vários filmes, não apenas da obra de Mauro, e calcado em seus depoimentos gravados, a própria voz do cineasta nos guia neste universo, além de nos converter em testemunhas das transformações ocorridas na sociedade brasileira durante as cinco décadas de sua carreira artística e os oitenta anos de sua existência.

Em determinado momento, a voz do Mauro indaga se algum parente seu estará filmando na Lua em 2020. Bom, o nosso satélite natural continua fascinando cineastas e poetas, não apenas astronautas, enquanto nos vemos assolados por mais uma pandemia na história de nossa espécie. Nestes momentos de debilidade, insegurança e luto, se reencantar com a natureza, apesar de seu lado sombrio, pelos olhos de Mauro pode ser terapêutico. E fora os saudosismos, sua obra nos põe a refletir sobre as imagens do Brasil, tanto de um país que estava se despedindo naquele momento (“O progresso é antifotogênico”) quanto dos anseios de modernidade presentes nos filmes urbanos da Cinédia e nos filmes educativos do INCE.

Não se trata de mera puerilidade ou de um discurso de lamento, mas se encontrar com as imagens de Mauro hoje nos põe a pensar, por exemplo, sobre o nosso atual ambiente rural totalmente industrializado pelo agronegócio e pela música sertaneja hipermidiática.

E, por fim, não poderíamos deixar de mencionar a relevância do documentário Humberto Mauro na Mostra 65 Anos da Cinemateca do MAM. Um filme que, trazendo aos olhos de hoje imagens tão antigas, nos conscientiza da importância dos arquivos audiovisuais em sua função de preservar a nossa memória audiovisual e, assim, tornar possível que tais obras sejam ressignificadas em outros filmes (como os chamados documentários com “imagens de arquivo”).

Além de preservar e ser fonte de novas obras, os arquivos audiovisuais também visam divulgar e promover cultura cinematográfica. Em tempos de ameaça destrutiva ao setor cultural e à memória de nosso país, é fundamental a presente ação da Cinemateca do MAM, sobretudo em dias de pandemia e pandemônio, quando a arte, a cultura e o conhecimento, alimentos da alma, são mais do que básicos para a nossa sobrevivência. Se Humberto Mauro pode ser visto como uma síntese do cinema brasileiro, nada mais apropriado que a sua presença na Mostra 65 Anos da Cinemateca do MAM. Boa sessão.

Fabián Núñez, professor do departamento de cinema e vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e um dos coordenadores do Cineclube Sala Escura, que realiza a Sessão Latina Cinemateca.


Humberto Mauro de André Di Mauro. Brasil, 2018. Documentário, 90′.



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