MARCELO MIRANDA
Coronel Delmiro Gouveia começa e termina no olhar de um trabalhador rural diretamente à câmera. No primeiro plano, o registro documental imediatamente nos remete a trabalhos anteriores de Geraldo Sarno, em especial o sempre citado Viramundo (1965). Ali estão a atenção ao outro, ao tempo do plano, o valor do silêncio entre palavras, a força do rosto carcomido de sol, a fala sobre trabalho. No desfecho, o olhar passa a ser ficcional – no caso, do ator José Dumont, interpretando o ex-funcionário de uma fábrica do personagem-título que encara a câmera e, em voz off, exalta a força de si e dos companheiros na busca por melhores condições de vida e de trabalho. As duas pontas do filme se diferenciam na construção (uma é doc; a outra é fic), mas o efeito é o das duas instâncias se complementarem numa mesma carga simbólica: a de que a passagem de figuras como Delmiro Gouveia mexe com as estruturas físicas, econômicas e afetivas de todo um povo.
Apesar de se apresentar como filme biográfico, e o título objetivo e seco amplia essa percepção, Coronel Delmiro Gouveia é muito mais um filme sobre a revolução industrial brasileira e os efeitos (nocivos, muitas vezes) da chegada do progresso. A primeira imagem ficcional do filme é a de um grupo de pessoas claramente dotadas de posses. Aglomeradas no que parece uma festa, são filmadas em plongée, todas sob expectativa, olhar de espera, silenciosas. Corta para um relógio, que badala doze vezes. De volta ao plano anterior, Delmiro Gouveia (Rubens de Falco) ergue a taça e diz: “Ao século 20!”, no que seu sócio replica “A Delmiro Gouveia!”, e este enfim completa “Ao Brasil”. A trinca de celebrações praticamente desenha o filme e anuncia seus gatilhos: trata-se de uma crônica sobre como Delmiro atuou na virada de milênio para tentar aproximar o Brasil de países desenvolvidos.
Até pela característica cronológica de se ambientar na virada do século, Coronel Delmiro Gouveia usa, na primeira metade, toda uma iconografia referencial ao faroeste histórico, aquele mais apegado ao registro das grandes expansões, das conquistas técnicas e da estruturação social e econômica de toda uma região ou país. Delmiro é um desbravador que faz uso do dinheiro para expandir as atividades e riquezas, enfrentando resistências que o colocam em conflito direto (e armado) com adversários. Tendo a seu favor a simpatia da população do Recife – devido especialmente à criação do famoso Mercado do Derby, fundado em 1899 e primeiro shopping center do país –, Delmiro pode contar inclusive com um cerco à cadeia onde fica preso por menos de um dia e às tensões entre trabalhadores e agentes policiais para que ele seja solto. Na descrição do avanço de Delmiro na economia local, Geraldo Sarno faz um autêntico bangue-bangue, filmando de forma concisa e direta, com o tipo de rigor cênico que marca o restante do filme.
A partir do estabelecimento de Delmiro como “coronel” (título comprado, mas na prática recebido popularmente após ele enfrentar autoridades e manter seus negócios da maneira como queria), o filme se desenvolve num xadrez político e econômico que mistura a descrição do cenário comercial do Recife às pessoalidades de Delmiro ao lidar com os negócios. Diferente do que se poderia esperar de uma biografia ou hagiografia mais padrão para um personagem da elite famoso por levar progresso a supostos territórios desfavorecidos (pensemos num contraponto em tudo diferente da abordagem de Sarno: Mauá – O Imperador e o Rei, Sérgio Rezende, 1999), Coronel Delmiro Gouveia se interessa mais em encontrar os “vazios” de todo esse processo do que em justificá-lo. As várias vozes narrativas que se acumulam, as longas caminhadas, os devaneios, os silêncios, as interpretações austeras, os planos rigorosos, tudo isso conflui a um filme que se apropria de um personagem de peso histórico para falar sobre como uma sociedade de exploração se forma a partir de utopias grandiosas de boa intenção.
É onde o filme chega em Zé Pó, o trabalhador vivido por José Dumont que, na primeira aparição, humildemente desafia Delmiro e, por consequência, instiga o “coronel” a tomar atitudes drásticas contra políticos que querem prejudicá-lo (“a gente faz uma casinha pequena pra gente; depois, se o senhor quiser, derruba”). Aos poucos, no terço final, Geraldo Sarno (que escreveu o roteiro com Orlando Senna) desloca a atenção do filme para Zé Pó, ou seja, convida o proletariado a fazer parte das reflexões em torno do dito progresso. O filme compreende que aquele trabalhador formado nas fábricas de Delmiro pode ser o estopim para uma mudança nos modos de relação humana, ainda que ele tenha pela frente a máquina da elite para enfrentar e tentar sobreviver a ela. No olhar de Zé Pó, vem as palavras finais: “O dia que o povo fizer as fábricas para ele mesmo, aí não tem força no mundo que pode quebrar nem derrubar, porque não tem força maior que o povo trabalhador, que trabalha como as máquinas e pensa que nem gente”.
Marcelo Miranda é crítico, programador e curador de cinema.
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