Do Brasil ao brasileiro: filmes de Geraldo Sarno

RUBENS FABRICIO ANZOLIN


Dramática Popular (1968)
Vitalino / Lampião (1969)
Os Imaginários (1970)

  1. O cinema de Geraldo Sarno sempre me pareceu uma grande orquestra. Desde os anos 1960, inserido no cenário do Cinema Novo, até os idos de 2020, com a célebre recepção de seu último filme, Sertânia, todas as suas obras conservam um frescor particular — uma espécie de movimento invisível que, ao unir um bloco de imagens a outro, fundamenta uma sinestesia própria, quase única.
  1. Boa parte dos seus filmes feitos no Brasil profundo, dentro do projeto da Caravana Farkas, passam ao largo do que, hoje, poderiam ser considerados meros documentários observativos. Muito além das práticas populares, sociais ou econômicas registradas, o centro estético das obras comandadas por Sarno convoca um sentido aguçado de cinema, uma práxis que não se dá apenas no campo temático, mas que, sobretudo, se reflete em cada elemento cênico ofertado pelo cineasta e seus respectivos colaboradores. Aliás, se falei que sempre enxerguei seus filmes como uma grande orquestra, é justamente por haver, atrás desse astuto maestro, técnicos substanciais para que seu cinema venha à luz. Ana Carolina, Othon Bastos, Affonso Beato, Lauro e Eduardo Escorel, Thomás Farkas. Durante muito tempo, foi essa a trupe de Sarno. Com ela, incontornáveis obras foram forjadas pelas terras abarrotadas deste país.
  1. Pensar na série de curtas-metragens feitos por Geraldo Sarno entre 1968 e 1973 é também pensar num cinema que respeita certas hierarquias, certo modus operandi que desemboca numa sinfonia prática de ação popular. Isto é, filmes como Vitalino Lampião, Os Imaginários, Sabedoria Popular, Casa de Farinha, O Engenho, Viva Cariri, Jornal do Sertão, A Cantoria e Padre Cícero retratam não apenas comunidades do Sertão brasileiro, mas sobretudo colocam seus sujeitos e personagens para dançar a música do cinema. Seu caráter contestador mistura-se com a seleção musical de Ana Carolina, ganha dramaticidade na voz grave de Othon Bastos, desemboca num movimento leve, quase invisível, das lentes de Affonso Beato e Lauro Escorel. O cinema de Sarno nunca reivindica a figura de uma autoria solitária, seus movimentos são coletivos, suas condições de trabalho emprestam brilhantismo em cada uma das pontas, seus atores sociais nunca são apenas e cruamente aqueles sujeitos do trabalho e da vida dura.
  1. Quem assistir ao conjunto de curtas Vitalino/Lampião, Os Imaginários e Dramática Popular vai encontrar um desejo ímpar de colocar arte e artistas do povo em uma mesma medida, em um conflito de forma e meio que se dá na prática dessas vidas subjugadas do Sertão nordestino. Nesses filmes, há um olhar singelo para cada movimento, para cada lapidação das talhas de madeira, dos bonecos de barro e para cada um dos instrumentos do Bumba Meu Boi. Mas, sobretudo, quem assistir aos curtas de Sarno entenderá que está em voga uma voz autocrítica, uma voz que não zela pelo sofrimento ou pelas agruras dos seus sujeitos, e sim pelo pensamento e pela continuidade das ideias fundadas por eles próprios.

  2. Quando pensamos nesse cinema brasileiro do outro, esse conflito repentino que é, e continua sendo, até hoje, o Cinema Novo, pensamos sempre no povo. E o povo de Geraldo Sarno, de Vitalino/Lampião, de Os Imaginários, de Dramática Popular, é esse povo que fala sem censura acerca de seu mundo. Mais que nada, seu cinema é uma música sensorial que se desenha para desembocar justamente nessas vozes, nesses personagens que servem como válvulas de escape para que se possa devolver ao povo o cinema que é do povo. Pensar o povo pelo povo e não pelas mãos duras que lhe cerceia.

  3. É claro que há ainda a questão do movimento, do sobrevoo pelo invisível, dos cortes entre os maviosos balanços de câmera, entre as mãos do trabalho, entre artistas e suas próprias artes, seguradas sempre pelos braços talhadas do trabalhador. O cinema de Geraldo Sarno sempre foi essencialmente brasileiro. Não por ser feito aqui, é óbvio, mas porque pertence mais que nada ao Brasil, aos seus pares, à sua cultura, ao seu pensamento. Assim como, outrora, pertenceram também o cinema de Hirszman, de Sganzerla, de Nelson Pereira. E seguem pertencendo, é claro. Mas bem, isso é para depois. Por ora, fiquemos com Geraldo Sarno e sua trupe, com sua orquestra imensa de sons, faces e vozes de um pensamento popular. De um saber que é irrevogável, essencialmente nosso. Do Brasil. E que ninguém nos tira.

Rubens Fabricio Anzolin

Assistente de curadoria da Mostra de Tiradentes e programador do Zero4 Cineclube. Escreve na Revista Multiplot!, no Cine Festivais e no blog Matéria-Prima.

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