FELIPE BRAGANÇA
Dia desses conversando com o grande Ruy Guerra, ele me dizia da forma como não se sentia quando lhe chamavam “poeta”. Tinha escrito muitos poemas em seus mais de 60 anos de carreira? Tinha. Tinha assinado muitas letras de música? Tinha sim! “Mas daí a ser chamado poeta-poeta-poeta…”. Esta talvez seja a sensação de quase todos e todas de nós quando subimos em um palco para apresentar um filme ou quando pisamos em um set de cinema ou com o corpo aberto a criar imagens: Fazemos filmes? Fazemos. Filmamos? Filmamos. Penduramos no pescoço título de cineastas? Discretamente. Desajeitadamente. Talvez.
Crescemos, eu e minha geração (acabo de chegar aos 40), diferentemente da geração do Ruy, em um Brasil que vivia a ebulição da nossa jovem democracia – naquele momento delirante e melancólico do neoliberalismo dos anos 90. Quando o bonito era um ser-Miami, quando celebrado era o devir-shopping center, quando a graça era consumir o plástico do mundo e desacreditar de tudo.
Cruzávamos as paisagens de um país que parecia buscar a justiça social a partir do consumo, da aquisição de objetos e, porque não dizer, da compra de imagens. Comprar e produzir imagens. Produzir e comprar imagens. A comunidade seria só criada assim: na comercialização de nossas máscaras individuais. De nossos retratos.
Na Baixada Fluminense, de onde vem toda minha família por parte de mãe, e onde em parte cresci, entre corridas nas ruas de terra, bola de gude e tentativas frustradas de subir em árvores imensas – em que meus primos suburbanos subiam com a facilidade que nunca alcancei – via também ali a chegada do asfalto, dos fliperamas, das motocicletas, dos fantasmas de uma idéia de desenvolvimento globalizado e unívoco que era também inevitável. Melhorias na vida (no consumo) da minha família, toda de trabalhadores e trabalhosas braçais ou da base da estrutura do capital – mas que traziam consigo também algumas fantasmagorias: a violência, a sensação de identidades territoriais que se perdiam, o consumismo como forma de afirmação de quem se é, de quem se poderia ser.
Quando comecei a fazer cinema, aos 22 anos, em 2003, o que interessava era tentar entender com a câmera um pouco mais daquele fim de mundo, começo de mundo, que eram as ruas de Queimados (RJ), seus cheiros e luzes, as histórias de meus tios, tias, primos e primas, os sons daquele quintal e suas copas de árvores. Eu entendia a possibilidade de fazer cinema não como uma idéia de busca da realidade, mas da tentativa de encenar sensações desse lugar suspenso que era ser um jovem latino-americano, de família misturada e miscigenada, tendo crescido no centro do Rio, nesse pêndulo entre minhas origens e meus novos amigos e amigas, dos intelectuais da Zona Sul e da Lapa, das ladeiras de Santa Teresa.
Um sentimento de mistura dolorida, de melancólico caldeirão, daquele Rio de Janeiro fantasmagórico e violento dos anos 90 e que desaguavam em um começo de anos 2000 otimista mas ainda herdeiro daquela pulsão de acumulação, de raiva incontida, de plastificação das superfícies da vida. “Dar aura a coisas de plástico”, foi uma das primeiras frases que disse em uma das primeiras conversas que tive com Marina Meliande quando ainda éramos estudantes na UFF. Devolver alma às coisas que pareciam estar sendo condenadas a não serem mais do que objetos funcionais. Fossem objetos-objetos, fossem objetos-pessoas.
Lembro dessa ter sido umas das primeiras conversas profundas que tivemos ao falar do primeiro filme que fizemos em parceria – POR DENTRO DE UMA GOTA DÁGUA (10 minutos, 2003). Filmado com apenas 10 minutos de película 16mm. Com uma velha câmera da universidade que no primeiro dia de set quebrou e ficou sem bateria… O barulho daquela câmera parando no primeiro plano em que íamos filmar na vida, nos causou horror e riso. Medo e companheirismo.
Por fim, o problema foi resolvido e, semanas depois, quando vimos o primeiro plano filmado – justamente no momento em que a bateria foi abaixo – o que tínhamos era uma imagem acelerada do ator Emanuel Cavalcanti a remexer o cinzento terno que usava. Os fotogramas, captados (a 12 quadros por segundo, talvez?) pela câmera que logo pararia de funcionar, davam ao gesto do ator um sentimento suspenso de estranheza, de erro mágico. Um encontro da invenção com a documentação da própria farsa cativante que é a alma da imagem do cinema.
Meses depois, montando na moviola da UFF, esse erro, esse primeiro plano, foi incluído no filme – em toda a sua fragilidade. Começamos assim a fazer cinema: com uma imagem auto-reflexiva e fruto de uma falha na ilusão de realidade.
Dezoito anos depois, muita coisa mudou. Marina e eu já dirigimos mais de 5 longas e 8 curtas brasileiros (alguns novamente em co-direção), a nossa Duas Mariola Filmes foi criada (com Daniel Caetano e outros amigos) e já apresentamos filmes por todos os cantos do planeta em festivais como Cannes, Locarno, Rotterdam, Berlin e Sundance. Dezoito anos depois, vivemos em um país que atravessou aquele frenesi dos anos 2000 (de forma alegre, mas claudicante) para depois cair nesse poço profundo feito de um delírio elitista, cruel e proto-fascista – e que de alguma forma já estava nas entrelinhas daqueles delirantes e neoliberais anos 90 que nunca nos abandonaram totalmente.
Desde então, desde 2003, seguimos filmando. Sigo filmando: na minha Baixada Fluminense, na minha Lapa carioca, na fronteira com o Paraguay ou no Moçambique, e guardando comigo aquele primeiro plano falhado – filmado ao lado da Marina, quando éramos ainda mais jovens do que hoje e já acreditávamos que o cinema seria não uma tábua de salvação (de nada nem de ninguém), mas um caminho para nosso encantamento. Para compartilhar encantamentos. E inventá-los, no erro, na farsa e no desajeito – que é a única verdade nisso tudo…
Cineastas? Cineastas?! Ora, fazemos filmes a todo o tempo. E tentamos encontrar fotogramas/frames, que possamos trazer aos olhos de pessoas queridas e desconhecidas e dizer: “Vejam, alguma coisa aqui esteve na luz e fez alguns sons!” Continuamos a pensar o cinema como farsa maravilhosa, como textura de si mesmo, como truque e como verdade, como fantasma de nossos erros, como imitação de uma vida inimitável, feito de maquinaria, obstáculos e beleza.
Os filmes da Duas Mariola Filmes aqui apresentados nessa pequena retrospectiva, tentam (tentaram) cada um da sua forma, expressar um pouco desse gesto de grande celebração e grande dúvida diante de um mundo feito de superfícies que tantas vezes se querem definitivas e definidoras. Filmes feitos da vontade de filmar o invisível e o erro – o que está em encruzilhada. Em nossas encruzilhadas – que nos trazem tanto a angústia quanto o gozo. E, assim, mascarados, desajeitados e sem salvação – seguimos filmando.
…
(Viva o cinema. Abaixo o fascismo.)
Felipe Bragança, Lisboa, Agosto de 2020
Confira a programação completa da Mostra Duas Mariola.
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