E se os filmes perdessem as suas memórias?

JULIANA LUDOLF

O curta metragem Valentina, antes de tudo, explora um espaço: o espaço da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, lugar onde se conservam filmes. Um espaço social, coletivo e cultural mas, sobretudo, espaço onde uma série de pessoas mantém relações por motivos artísticos, de pesquisa ou pessoais, caso da cinefilia.

A Cinemateca acolhe um acervo cinematográfico que contém desde recortes de jornais sobre os lançamentos de filmes, catálogos, revistas e cartazes de cinema, até filmes em todos os tipos de suportes, de películas a formatos digitais. Mas um acervo de filmes não é só um espaço de tratamento físico e técnico desses materiais, é também
um espaço de mobilização para que os materiais ganhem uma nova inserção, um novo sentido, que sejam apreciados e possam circular, gerando novas pesquisas e novos filmes. 

Em 2015 tive sorte grande em conhecer o Hernani Heffner, na época Chefe Conservador da Cinemateca do MAM e meu professor de Cinema Brasileiro na PUC. O Hernani é uma espécie de guru do cinema brasileiro, uma figura central para o pensamento da preservação. Conheço vários cineastas e preservacionistas que tiveram a oportunidade de presenciar suas falas, e para muitos ele é uma espécie de mestre.

Nas primeiras aulas que participei dele, ficou clara uma constatação. Algo que, se qualquer um parar pra pensar, é completamente evidente: não temos acesso aos primeiros filmes do cinema brasileiro. Eles se perderam completamente. E parte dos filmes feitos nos últimos 120 anos, só podem ser encontrados em fragmentos, em notas de jornal, em fotos ou textos. Para muitos são bem parcas as evidências de sua existência. E para além dos filmes, quase nada se conhece sobre as primeiras formações das equipes de cinema, ou do cinema de cavação com suas “escolas” e “cursos”, ou ainda de muitos filmes da Cinédia e da Atlântida, perdidos para sempre. Era um tempo de pioneirismos, de jeitinhos, invenções e também do sufocamento que Hollywood e a cultura imperialista norte americana impunha em nossas salas, influenciando até a maneira de fazermos os nossos próprios filmes. Daquele momento em diante percebi que a história do Cinema vai muito além dos cânones.

Neste mesmo ano, além de estudante eu já trabalhava com pós-produção e fui contratada numa produtora chamada Cajamanga, que alugava duas salas no Tempo Glauber. Havia outras duas produtoras e um consultório de psicologia alugando as demais dependências e às vezes aconteciam eventos no auditório do Tempo. Lá ainda estava a biblioteca de livros e diários do Glauber Rocha, com as suas anotações, muitos cartazes, documentos, e uma sala totalmente estruturada para conservação de filmes e ao mesmo tempo completamente vazia. Anos antes todos os filmes que estavam armazenados ali foram transferidos para a Cinemateca Brasileira, pois a família não
tinha mais condições de arcar com os custos de sua preservação.

Um dia, lá no Tempo, resolveram jogar no lixo muitas caixas de fitas VHS que continham todo o acervo dos filmes produzidos lá mesmo. Ali poderiam estar imagens inéditas e todo o conteúdo sobre a memória daquele lugar que, por muito anos, foi um ponto de encontro de diversos cineastas e artistas. Títulos como “Entrevista com João Ubaldo Ribeiro”, “Festivais Culturais de Primavera do Tempo Glauber 1994”, “Sobras de Terra em transe”, foram descartados de uma vez só. Foi a primeira vez que vivenciei a morte de uma coleção de filmes.

Em janeiro de 2016, quando entrei de férias da PUC, me voluntariei aos trabalhos na Cinemateca do MAM. Outros colegas também eram voluntários na área de catalogação, mas eu fui direcionada para o setor de revisão e preservação de filmes. E, apesar de cursar uma faculdade de cinema, foi a primeira vez que aprendi tecnicamente
sobre as características das películas; que eram divididas em partes, em rolos nada simples de manusear, de identificar a sua origem, sobre o trabalho de revisão e como pontuar o filme em relação ao seu estado de conservação para uma possível projeção ou restauração.

No primeiro dia, “afrouxei” as cópias combinadas do filme Rio Zona Norte de Nelson Pereira do Santos, para preservação e armazenamento. Esse é o método necessário pois os filmes voltam apertados da projeção e precisam ser guardados soltos para retardar os efeitos da deterioração. Só que a emulsão dos filmes é feita de material orgânico e desbota, apodrece e hidrolisa se não houverem condições adequadas de armazenamento, temperatura e umidade. O suporte de acetato é o principal atingido pela Síndrome do Vinagre, e quase não temos mais filmes em suporte de nitrato para contar história.

No MAM, encontrei muitos filmes que já estavam abaulados e com descolamento de emulsão, e um deles me chamou muita atenção, por ser um filme dirigido por uma mulher, Norma Bengell. Uma atriz que passou para a
direção estreando seu primeiro longa metragem, Eternamente Pagu, em 1989. Uma cinebiografia relativamente livre sobre a vida de Patrícia Galvão, ícone do feminismo no Brasil, e que já estava completamente hidrolisado. 
O processo de roteiro do Valentina durou meses, e no meio disso participei do congresso e curso de preservação e restauração de filmes da FIAF, em Bolonha, na Itália. Na mesma cidade que Norma Bengell morou nos anos áureos da sua carreira internacional, quando trabalhou em westerns e filmes de terror italianos. O curso no laboratório L´immagine Ritrovata era dividido em setores e haviam mais de sessenta funcionários trabalhando frame a frame na identificação, reparação analógica, restauração digital e remasterização de filmes. Também havia um setor de tratamento químico para as cópias mais deterioradas.

Quando voltei pude escanear um rolo do Eternamente Pagu, que localizamos no CTAV, em 4K, na Afinal Filmes. E a qualidade da imagem capturada pelas novas tecnologias é tão boa, em termos dos atuais padrões de resolução e de exibição, quanto o era no tempo da projeção em película. Mas para o grande público atual, que assiste a um filme brasileiro dos anos 80 e que não acompanhou os avanços da tecnologia digital e por isso não cabe nas novas proporções das telas, acredita-se que esses filmes possuem uma qualidade inferior de imagem.

Dizem que parece “embaçado”. E por isso esses filmes não ocupam espaço condizente com as suas relevâncias históricas nas novas janelas on demand e nos circuitos comerciais. Eternamente Pagu também não participou da era do DVD, e assim como tantos outros filmes brasileiros, tem dificuldade de sobrevivência física e cultural. A
preservação e a restauração de filmes no Brasil são áreas precárias da cadeia cinematográfica e sofrem diariamente com a falta de políticas públicas que ainda não consideram filmes patrimônios históricos. A Cinemateca Brasileira e outras instituições que lidam com memória vivem ameaçadas. Como não lembrar a tragédia no Museu Nacional, o fechamento do Tempo Glauber, ou aquela construção inacabada do MIS em Copacabana? Vivemos num tempo de muito descaso, onde a história está se deteriorando. E, por outro lado, os valores histórico, afetivo, cultural e geracional dos filmes são fundamentais para avançarmos no pensamento. 

Valentina é sobre resistência e busca o reconhecimento da atuação profissional de Norma e Pagu meio à História, que revelam mulheres à frente de seu tempo e que lutavam através da arte e da escrita, num cenário majoritariamente masculino e conservador. O tema do aborto, paralelo a tentativa de não esquecimento dos filmes, é o retrato de um Brasil onde a violência contra a mulher é praticada pelo próprio Estado, nossos corpos e vidas estão constantemente sujeitos ao falso moralismo brasileiro. 

Outro destaque do curta é a presença do ator, produtor e diretor Flávio Migliaccio. Na cena em que Valentina encontra Flávio, ele está segurando o fotograma do filme Os Mendigos, de 1963. Ali, ele estava encenando uma situação que aconteceu em 2015, quando procurava o filme que ele dirigiu na década de 60. É uma cena muito representativa, são duas gerações diferentes procurando rolos de um filme perdido.

Então Valentina dialoga com o seu próprio tempo. Falar sobre a preservação do cinema brasileiro é buscar, de alguma forma, resgatar a memória que é dissipada ao longo do tempo, desta dialética entre o que sobrevive e o que se perde que, eventualmente, construímos o relato histórico. Valentina tem continuidade em outros dois curtas, formando uma trilogia junto de Juliana na Cinemateca (documentário) e Filme Reverso (ensaio).

Juliana Ludolf é produtora, roteirista e montadora do filme “Valentina”, e artista de restauração de filmes.

Foto: Estevão Meneguzzo

Exibição online gratuita de “Valentina” na Cinemateca do MAM: www.vimeo.com/mamrio.



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