Esposas ingênuas (1922)

PEDRO SERPA

Nos dias de hoje, é comum associarmos filmes com alto custo de produção a produtos comerciais voltados, em primeiro lugar, ao retorno financeiro. Nem sempre foi assim. Quando lançado em 1922, Foolish Wives de Erich von Stroheim era, até então, a produção mais cara da história (o primeiro longa-metragem de orçamento milionário), e vendo-o nos deparamos com um filme moderno, desafiador e perverso. 

O Conde Sergius Karamzin (von Stroheim), emigrado da Rússia, e suas duas primas, as Princesas Olga e Vera Petchnikoff, alugam uma vila em Monte Carlo. Karamzin e suas primas planejam um golpe contra a esposa insensata de um diplomata estadunidense, Helen Hughes, ainda que seu marido esteja por perto. Ele tenta encantá-la, planejando, eventualmente, roubá-la de seu dinheiro. Ela fica facilmente impressionada com seu glamour falso e aristocrático, para desgosto de seu aborrecido, mas sincero, marido. Karamzin também está de olho em duas outras mulheres, Maruschka, uma empregada da vila, e Marietta, a filha deficiente mental de um de seus associados criminosos, vendo ambas como presas sexuais fáceis.

No papel de personagem principal, Stroheim desempenha com naturalidade a figura do anti-herói – desprezível na mesma medida que empático – que viria a se popularizar posteriormente com figuras como Charles Foster Kane e Henri Verdoux. Karamzin é ardiloso e cruel, mas ele é parte de um mundo em que não é possível viver de outro modo. Ainda que o desfecho possa tentar levar o filme para outro caminho, a sociedade apresentada em Foolish Wives acolhe figuras como o Conde com a devida consideração. 

É a Europa pós Primeira Guerra Mundial que encontramos na Monte Carlo de Stroheim, momento da exaltação com o fim do conflito e também do reconhecimento do declínio de um sistema que não pode mais prevalecer. A aristocracia – representada pelo Conde e suas primas – é frágil e sobrevive da sua imagem (e de falcatruas). O momento é dos estadunidenses – representados pelo casal Hughes –, grandes vencedores da guerra.  O que se desenrola em Foolish Wives é, então, o conflito entre uma classe em queda livre e outra em pura ascensão (não podemos esquecer, também, do papel da classe trabalhadora, ilustrada em Maruschka), materializado na tentativa de golpe dos aristocratas. A fraude, para Karamzin, contra a “esposa ingênua” ocorre tanto pelo proveito econômico quanto pelo exercício da conquista em si. Há, para ele, a necessidade de reafirmar a superioridade do modelo europeu aristocrata sobre o norte-americano capitalista.

O filme antecipa em mais de uma década algumas tendências do cinema moderno que viriam a aflorar no fim da década de 1930. O personagem principal, como já dito, não é um herói; há uma complexa teia de personagens cujas relações não ocorrem de modo maniqueísta; a profundidade de campo é explorada, ainda que de forma embrionária, em razão das limitações técnicas; os movimentos de câmera são inteligentes e operados com precisão. A combinação desses elementos dá origem a uma mise en scène de extrema elegância e justeza, que colabora na criação do sentimento de luxúria e decadência.  Assistir ao filme é reconhecer que von Stroheim foi professor dos grandes diretores subsequentes. 

Em seus intertítulos, Foolish Wives não se contenta com uma descrição básica para o mero entendimento do enredo. Pelo contrário, boa parte deles contém uma prosa poética que auxilia na construção de um sentimento perante a encenação, de modo que o encantamento do espectador se dá em todos os aspectos do filme. Erich von Stroheim torna o cavalete parte da pintura com maestria. 

Deve-se falar, também, no humor negro que há no filme. A menção a Monsieur Verdoux não é vã. Naturalmente o humor não é apresentado no épico de 1922 do mesmo modo explícito como em Chaplin – está presente de modo enigmático –, contudo há em ambos um senso de que o mundo é uma  trágica farsa a ser caçoada. Podemos falar que Foolish Wives representa para o pós Primeira Guerra o que Monsieur Verdoux representa para o pós Segunda Guerra, isto é, o despertar da ideia de que não existe a possibilidade de uma vida sã em um mundo insano e, portanto, não há pecado algum em ser um fraudulento dentro de uma fraude maior – o capitalismo. Stroheim fraudou seu caminho até Hollywood ao mentir que era um aristocrata e um militar quando, na verdade, não era nenhum. Estamos falando de um homem que sabe que a verdade pouco importa: print the legend, sempre.

Ponto importante do filme, que enlaça sua modernidade com o humor tênue, é aquele em que Mrs. Hughes lê um livro intitulado Foolish Wives, escrito por Erich von Stroheim. Karamzin/Stroheim pega o livro da mão da estadunidense e o inspeciona. “Muito bom”, ele diz. Nesse ponto está enganado: “obra-prima” define mais precisamente Foolish Wives.

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