Homenagem e silêncio a Kenneth Anger

por Gabriel Linhares Falcão

Ascendente em escorpião (Scorpio Rising, 1963).

Nascido em Santa Mônica, Califórnia, próximo a Hollywood, Kenneth Anger demonstrou ao longo de sua carreira grande admiração e envolvimento com os estúdios estadunidenses em sua era clássica. Mesmo realizando um cinema rebelde na linha da vanguarda americana, não compartilhava com os cineastas experimentais da costa novaiorquina a mesma recusa à indústria cinematográfica do país. Seu fascínio era, em especial, as stars do star system e seus segredos mais obscuros escondidos na outra extremidade dos holofotes.

Transitou entre Estados Unidos e França, escrevendo no início dos anos 1950 para a revista francesa St-Cinéma des Près, além de estar envolvido em duas importantes publicações não tão mencionadas quanto seus filmes. A primeira, seu livro Hollywood Babylone (nome francês), publicado em 1959 na França pelo polêmico editor de literatura erótica Jean-Jacques Pauvert, reúne uma série de curtas histórias relatando escândalos secretos envolvendo estrelas hollywoodianas que mesclam fatos com bastante ficção e sensacionalismo em tons simultâneos de homenagem e sátira. Sua escrita é grandiosa, retratando os humanos em equiparação simbólica com estrelas, deuses e demônios. As páginas são repletas de fotos em sets de filmagens de grandes produções hollywoodianas que são organizadas de maneira a sugerir um erotismo proibido.

A segunda, na adaptação ao inglês do livro L’Histoire de l’érotisme do francês Joseph-Marie Lo Duca, cofundador da revista Cahiers du Cinéma, que aborda a história do erotismo (“força mais poderosa do homem”) desde a antiguidade remota atravessando diversas civilizações e culturas. O erótico é abordado como manifestação ilimitada, presente em todos os níveis da sociedade, de maneiras desenfreadas a reprimidas, reinando na sugestão, alusão, expectativa e até mesmo na obsessão, diferentemente da “obscenidade limitada da pornografia”. A pesquisa histórica que delineia os costumes de cada época é realizada principalmente por peças de arte de caráter erótico (egípcias, gregas, árabes, japonesas e até stills cinematográficas recentes), estas que ilustram quase todas as páginas do livro, evidenciando o interesse do autor e do editor pelas plasticidades exóticas e esotéricas de outrora, organizadas por olhares extremamente distanciados pelo tempo.

Essas duas publicações nos apontam para duas constantes na obra fílmica de Kenneth Anger. Uma, provinda do livro de Lo Duca, pelo agrupamento ilimitado na representação de diferentes culturas e a preservação da superficialidade visual delas, unindo variados deuses, demônios, mitos, fantasias, cenário, adereços e posturas que sempre se mantêm no campo do esotérico por simbolismos inacessíveis, ocultos para a grande maioria dos espectadores. A outra, provinda da “babilônia angeriana”, que edifica ficções e encenações, ou melhor, invocações, a partir desses deuses, demônios e estrelas distantes, agrupados em rituais ocultos que convergem unindo-os em um movimento progressivo até a libertação catártica desenfreada. Há em suas construções pela montagem uma insistência invocativa, que é tão espiralar quanto uma nova torre de Babel rumo ao estrelato dos Céus. Diferentemente do mito original, o topo é obviamente alcançado se figurando em condições convulsivas, eletrizantes e ilimitadas na superfície das imagens. Lucifer Rising (1972-1980), por exemplo, se inicia na abertura vulcânica do fogo da Terra, abrindo a porta para o levantar de civilizações de outrora já aterradas e se encerra em um desenho dos Céus, acima das pirâmides egípcias, povoado por deuses que parecem formar uma nova civilização. Essas características são evidentes nos filmes ocultistas como The Inauguration of the Pleasure Dome (1954) e Lucifer Rising, mas também estão presentes no cerne das estruturas mitográficas e mitopoéticas dos filmes Scorpio Rising (1963) e Invocation of My Demon Brother (1969).

Anger, em sua longa carreira, transitou entre várias formas recorrentes na vanguarda americana. Seus primeiros filmes, como Fireworks (1949) e Puce Moment (1949), dialogavam formalmente com os psicodramas e os filmes de transe de Maya Deren e Jean Cocteau. Rapidamente, acabou sendo notado como um dos primeiros diretores abertamente queer. Posteriormente, abandonando a linearidade comum destes filmes, arriscou por morfologias mais complexas e por filmes mitográficos em que o protagonista é confrontado por mitos em simultaneidades simbólicas (Scorpio Rising), e pelos mitopoéticos que se utilizam de estruturas míticas com vários personagens em episódios simultâneos e mudanças espaciais extraordinárias (The Inauguration of the Pleasure Dome, Lucifer Rising e, de maneira menos evidente por sua brevidade e frenesi, Invocation of My Demon Brother).¹

Scorpio Rising é dentre os filmes mencionados o que se utiliza majoritariamente de símbolos contemporâneos do século passado no agrupamento cultural. O protagonista, representado pela figura de um líder de motociclistas, se arruma em seu quarto-garagem encenando um ritual pessoal bastante homoerótico para se encontrar com outros motoqueiros em um evento escandaloso nos limites do erótico e do sensacionalismo. O herói é confrontado, de maneira não hierárquica e sim simultânea, com “o mito de Cristo, com o mito da estrela de cinema (o astro morto, James Dean, e o astro vivo, Marlon Brando), e com a noção nietzscheana bastante ambígua de poder que surge das imagens nazistas”² Diferentemente da maioria de seus filmes, este possui um tom explícito de sátira, assim como Hollywood Babylone. A simultaneidade da montagem é puramente escandalizante e provocativa, chegando a incrustar símbolos inconciliáveis uns nos outros, explicitando a materialidade do jogo cômico. Em Scorpio Rising,endeusar, demonizar ou estrelar é antes de tudo tornar pop; Anger compreende que, naquele momento, partir de mitos da contemporaneidade era não só trabalhar com stars (tom de homenagem) mas também com o enxugamento do áureo pela pop art (tom satírico).

As aproximações improváveis provocadas pela montagem, que seguem uma simultaneidade progressivamente convergente, como uma minuciosa mistura sempre possível dos elementos mais inusitados a serem escavados e depois ascendidos, tornam a figura de Kenneth Anger comparável à figura do mago. Se em Fireworks, o diretor e protagonista dá abertura aos desejos mais secretos de seu interior de maneira bastante íntima e humana, em Lucifer Rising, mais de 20 anos depois, o diretor já parece sobrevoar os céus do Egito com sua gigante grua hollywoodiana portando-se como um deus. Assim como descreveu a figura de D. W. Griffith filmando a Babilônia em um conto de Hollywood Babylone, também podemos imaginar Anger em postura similar em Lucifer Rising: “Griffith – o Diretor de Cinema como Deus – estava voando alto, alto como nunca, sobre Illusion City, subindo uma torre de elevador de câmera de 30 metros de altura, megafone gigante para gritar o comando para os milhares abaixo, o CÂMERA-AAAÇÃO! para trazer tudo a vida…”

Em relatos de terceiros sobre sua vida pessoal, quase sempre anedotas prontas, um outro Anger é revelado: o fechado e silencioso. Quem diria que logo o silêncio marcaria a figura de um dos cineastas experimentais que utilizou o som de maneira tão essencial e original, com filmes que não conseguimos imaginar mudos, preenchidos por composições originais ou playlists dançantes de letras escolhidas a dedo, pontuadas por sons quase-diegéticos que irrompem em momentos tão exatos que chocam. Em um desses relatos³, após Annette Michelson e Kenneth Anger saírem de uma sessão especial da terceira parte de Ivan, O Terrível em Paris, a crítica-acadêmica perguntou-o sobre o que achou do filme e recebeu como resposta um absoluto silêncio, Anger mantendo-se praticamente quieto até se despedirem um bom tempo depois. Em outra ocasião anos depois na mesma cidade, os dois se reuniram e Michelson recuperou o assunto, ainda perplexa, interrogando-o sobre o que aconteceu. Olhando-a, Anger perguntou como ela se atreveu a falar sobre um filme tão grandioso quanto aquele logo após a sessão; o lógico, segundo ele, seria que ambos saíssem da sala em completo silêncio. Até por um gesto corriqueiro como silenciar-se o cineasta criou um mito, elevando, por um estranho sinal de respeito, o filme de Eisenstein a outro nível.

Contudo, para encerrar este texto, opto por um retrato de Kenneth Anger que apenas veio a público na data de seu falecimento. Andrew Lampert, cineasta e ex-programador da Anthology Film Archives, publicou em sua conta no Instagram⁴ a digitalização de um curto registro silencioso em Super-8, preto e branco, realizado pelo mesmo, de uma performance de Kenneth Anger na própria Anthology em 2010. Posicionado em um palco, Anger toca concentrado e seriamente um teremim. Move seus braços por gestos expansivos ao redor do instrumento, que não exige contato físico, como se conduzisse forças invisíveis. Dois holofotes por vezes o iluminam, fazendo-o com que transite entre a luz e a silhueta. A câmera super-8 sobrepõe por diferentes técnicas a figura do músico com a projeção em curso atrás dele, os movimentos manuais do performer parecem não só conduzir o instrumento, mas também as imagens que se sucedem no fundo. A intensidade é crescente até uma abrupta irrupção; o show acaba e o Kenneth Anger sério e concentrado rapidamente sai de cena. Suas mãos, livres da função musical, se estendem acenando para o público em movimentos cintilantes. O zoom fecha acompanhando, com a clareza frontal dos holofotes, o enorme sorriso que abre em seu rosto proferindo agradecimentos e despedidas.

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1 O filme mitográfico e o mitopoético são termos cunhados por P. Adams Sitney em seu livro Visionary Film.
2 SITNEY, P. Adams. The Idea of Morphology, Film Culture,n.º 53-54-55, primavera de 1972, pp. 1-24. (Disponível em http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO8-9/sitneymorfologiadv.htm; traduzido por Clarice Dantas).
3 Relato de Jonas Mekas em Destellos de Belleza. Anécdotas y escenas de una vida.
4 https://www.instagram.com/reel/CspYEYPrHaf/?igshid=NjZiM2M3MzIxNA%3D%3D

Este artigo faz parte da Homenagem a Kenneth Anger, que faz parte da programação que a Cinemateca do MAM promove em junho de 2023.






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