Jornal do Sertão e A Cantoria

JOÃO PEDRO FARO


Jornal do Sertão e A Cantoria são projetos fílmicos de 1970 que circundam a tradição dos cantores populares do cordel. Ambos os registros operam em uma via dupla: a do documento, que abarca a narração contextual e declara um desejo pelo cinema educativo, e a do ritmo, que considera a expressão dos artistas em cena como determinante dos limites da câmera.

Jornal do Sertão é um curta em preto e branco que percebe a prática dos cantadores como um processo a ser compreendido em etapas de montagem, sendo cada uma delas dimensionada por diferentes recortes do tempo. Começamos na cozinha de um escritor de cordel, da fumaça que sai da panela de almoço preparado por sua esposa. Daí o movimento segue para o canto da sala, em frente à cozinha, onde senta o artista para transcrever suas ideias. Do manuscrito do papel, o original amassado, rabiscado, totalmente personalista, corta-se para a prensa gráfica e suas mecânicas de reprodução. Estão gravadas nas placas as gravuras e as palavras, prontas para se tornarem material de canto. A voz professoral explica o que se vê, em três constatações essenciais: são centenas de milhares de exemplares impressos, o cordel é o jornal mais lido do sertão e todos os vendedores e cantores estão com os direitos garantidos sobre a obra.

Seguimos para a feira. No espaço de venda e canto, com as pessoas rodeando as figuras que carregam os cordéis, vamos assentando o corte das imagens. Diante da palavra cantada, a tendência é que permaneça a imagem corrente, deixando com que o ritmo tão custoso aos cantadores seja ditado antes pelo enquadramento do que pelo corte. Em uma competição equilibrada, dois cantadores de feira, cercados por populares e tocando pandeiros, vão acelerando o ritmo da fala, compreendidos por uma fixa câmera na mão. Nos aproximamos até ficarmos fechados em seus rostos, longe do movimento das mãos. O tempo do pensamento é ainda mais rápido que o da fala cantada, e o ritmo do canto vai acelerando de tal forma que começamos a mexer de um cantor para o outro à medida que eles vão atirando seus versos. O corte não existe, a transição pela velocidade é feita pelo movimento horizontal (mas não panorâmico, pois não vamos para além dos dois cantores). O segmento se encerra no auge e somos levados a outros dois artistas.

Esses outros estão fechados em um ambiente escurecido, segurando violões. Agora não estamos restritos ao movimento da boca, é também essencial ao tempo da fala o dedilhar das cordas. A montagem é ainda mais tímida: não consegue cortar para nada, está concentradíssima na cantoria fechada, e o quadro fixo apresenta tanto ritmo em seu estado natural de musicalidade que resta ao cineasta assentar seu tempo na disposição de quem está sendo gravado. Os cantores seguem sua batalha até que a câmera, nos instantes finais, se afaste, revelando o sítio noturno em que se encontram rodeados por admiradores. Antes do curta acabar, com algumas imagens mais desprendidas da vida sertaneja, vemos os dois mais uma vez em seu enquadramento original, sem a noção de seu isolamento espacial que aprendemos algumas imagens atrás.

A Cantoria é um filme colorido que estende o último segmento de Jornal do Sertão. Não se estrutura em um processo ascendente; pelo contrário, se aprofunda no espaço fechado de dois cantadores em batalha de voz e violão (sendo que a voz está sempre um grau acima do violão). A cor confere envelhecimento aos intérpretes, alaranjados contra um fundo de noite azul, ao invés do isolamento pálido pela noite preta do final de Jornal do Sertão.

O movimento proposto em A Cantoria é o da aproximação com os cantadores. Começamos o curta a uma distância dos dois sujeitos formada por um corredor de observadores, e vamos atravessando essa distância ao longo da performance através do corte e de cartelas pretas com títulos breves que fatiam a apresentação. Ao final, já estamos fechados em seus rostos e recebendo respostas diretas dos artistas das perguntas de um inquisidor invisível, como se só atingíssemos esse estado de aproximação após o movimento proposto pela estrutura.

Enquanto acompanhamos a cantoria, concentrados nas trocas e nas palavras dos cantadores que pensam e performam em seu tempo instintivo, veterano, o quadro é ocasionalmente preenchido por uma legendagem de suas falas musicais. A impressão da palavra na tela, um certo espelho para a prensa gráfica que registra o cordel de Jornal do Sertão, serve aos propósitos expressivos do filme mesmo que habitando uma típica forma de documentação. Elas conseguem firmar no tempo e no registro o pensamento do improviso, que na verdade está escavado em camadas de experiência profundas que não podem ser explicadas apenas por um pensamento veloz. A palavra pensada, escrita e cantada acaba por pertencer a uma mesma cosmologia artística, que é capaz de ser simultaneamente observadora, compreensiva e expansiva. É o jeito do texto, do canto e da imagem que o corpo fílmico, estranho à experiência da roda, tenta a todo custo imprimir em sua própria experiência.

João Pedro Faro

Cineasta e crítico de cinema



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