JOSÉ EUGÊNIO GUIMARÃES
Por mero acaso conheci o iluminista e cinéfilo de quatro costados Júlio César de Miranda em 1991, se a memória não falha. Minha esposa fora premiada com um aparelho de videocassete. As locadoras de Niterói não ofereciam acervos diferenciados aos apreciadores de cinema. As estantes locais eram dominadas pelo rame-rame das grandes produções e lançamentos há pouco vistos nas salas de exibição. Eu ―louco por obras raras do período silencioso; de plagas europeias, asiáticas e brasileiras tão distantes de merecer relançamento nos cinemas e exibição nas madrugadas da TV ―não conseguia me satisfazer.
Até me deparar com uma matéria no suplemento “Rio Show” de “O Globo”. A seção dedicada a vídeos publicou extensas linhas sobre à locadora Polytheama situada em Copacabana nas proximidades da Galeria Alaska. Não pensei duas vezes: “é esta!”, afirmei ao meus botões. Distante de Niterói? Sem problemas! É para lá que irei! Cheguei fissurado e, desordenadamente, tomado de ansiedade, pus-me a examinar os títulos expostos e a separar vários. Certamente, percebendo minha ansiedade e o fato de ser completo desconhecido, acercou-se um senhor de olhar firme e penetrante. Quis saber se procurava algo específico. Resposta: “Ah! Tenho muitas especificidades e todas, parece, estão aqui! É tanta coisa preciosa, difícil de encontrar… Nem sei por onde começar”.
Calmamente, ele recolheu os estojos de VHS (era o que havia até então) de minhas mãos e perguntou o óbvio: “Quem é você?” Sobrou o embaraço; nem sabia o que dizer. Dei alguma resposta da qual não guardo lembranças. O problema, prestes a atrapalhar tudo, era a confiança – principalmente pelo fato de morar do outro lado da Baía da Guanabara. Por sorte, algo em minha cara feia extravasa insuspeição. Cadastrei-me! Levei três filmes para casa. Deveria devolvê-los em dois dias. Findo o prazo, cheguei em cima do laço e esbaforido devido a um engarrafamento. Júlio César de Miranda, que havia me atendido da primeira vez, exclamou aliviado: “Ah! Nossa! Olha ele aí!” Sequer tive tempo de escolher outra remessa. Sei que a existência de um cliente de Niterói provocou admiração durante algum tempo.
Desde então estive presente em várias etapas da Polytheama, religiosamente. A existência de lojas físicas ficou proibitiva para o estabelecimento. Mesmo assim, Júlio – sempre apoiado pela esposa Lúcia – não desistiu de oferecer títulos os melhores e sempre selecionados. Passou a entregar os filmes desejados pela clientela em domicílio. Claro, não em Niterói! Mereci o privilégio de ir à residência dos Miranda para apanhar o que desejava e, nisso, tive o prazer de desfrutar de alguns momentos de convívio com a família. Outras vezes ia ao organizadíssimo depósito do acervo nas proximidades da residência, em Botafogo, anos depois mudado para o Largo de São Francisco quando os Miranda estabeleceram residência na Tijuca. A Polytheama esteve comigo sempre, até 2012 ―quando as inevitáveis contingências da vida me impediram de continuar. Mesmo assim, Júlio continuou presente até recentemente.
Vez ou outra conversávamos por telefone sobre filmes novos e antigos, publicações jornalísticas, livros e, claro, a deprimente situação política do país. Ele não se conformava com os rumos do Brasil vilipendiado pela selvageria da direita golpista e destruidora galvanizada pelo neoliberalismo. Foi um choque saber de seu falecimento. Aparentava um vigor que não deixava imaginar que partiria em definitivo nas proximidades de completar 80 anos neste 2022.
A Polytheama e Júlio César de Miranda me permitiram descortinar uma parte significativa do universo “oculto do cinema”, pleno de realizações das quais só vira menções em livros, compêndios e conversas com aficionados. Que fartura! Quanta riqueza! Graças a ambos pude organizar mostras particulares com títulos incontáveis de David Wark Griffith e acompanhar o processo de afirmação e emancipação do cinema narrativo. A Nouvelle Vague, o Realismo Poético Francês, o Neorrealismo italiano, o cinema russo de todas as épocas, variados e raros filmes brasileiros, realizações japonesas, cubanas, chinesas e mexicanas, o John Ford das minhas mais profundas obsessões e influências paternas, o cinema noir, Robert Bresson, Carl Dreyer, todo o Bergman… Tudo havia na Polytheama. Era o mundo e Júlio se apresentava no papel de muito cioso e organizado guardião, o dono da chave.
Sabia de tudo. Não havia assunto que o inibisse. Levantava a voz contra os mais variados desmandos. Deixava-se dominar por uma espécie de fúria saneadora em muito parecida ao pai que me apresentou ao cinema. Vai ver, por causa disso, gostava imensamente dele e tanto fiquei abalado ao tomar ciência de que havia falecido. Era um iluminista generoso e íntegro, um dos últimos exemplares de um tipo particular de homem. Humanista! Sempre o terei comigo. Tenho uma memória poderosa e sei que, dele, sinto e sentirei muitas saudades.
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Por ocasião da mostra “Homenagem a Julio Cesar de Miranda”, este espaço busca ainda ser uma espécie de memorial, um local onde estão recolhidos uma série de breves depoimentos escritos ou em vídeo enviados por muitos de seus amigos e companheiros de vida. Assista aos filmes na Cinemateca do MAM online de 1º a 30 de abril de 2022.
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