LUIZ ANTONIO LUZIO COELHO
Em 18 de março de 2022
A memória se faz na cultura, onde há cultura humana. E seu lugar é onde está o criador, o observador e o sonhador. Está no olhar e na vida. Pode ser um espaço físico com volume e massa, como um monumento ou abstrato como uma ideia, uma lembrança. Está no imaginário em mim e, ao mesmo tempo, no outro, no onírico, nas imagens mentais, nos sentidos fisiológicos, nas linguagens, nas artes ou nas homenagens que se faz. A memória é fugidia, mas seus lugares a atualizam. E as repetições fixam a memória.
A obra de Alain Resnais sempre me fascinou. Ainda adolescente assisti a Hiroshima meu amor (1959), que me foi profundamente impactante pela criatividade do trabalho com imagem e som. Me fez refletir sobre aquele trabalho e sobre a produção extraordinária daquele cineasta nos anos seguintes. De início, os sons e o visual de Hiroshima me desafiaram. Eram discordantes entre si e também destoantes em relação ao tema e gênero cinematográfico de uma época em que temáticas “sérias” como Hiroshima somente poderiam ser objeto de documentários. No paradigma de então, documentário e ficção eram tidos como distintos, praticamente polarizados, e esteticamente bem codificados.
Em 2000, cheguei a apresentar um trabalho sobre O ano passado em Marienbad (1961), na Casa França-Brasil e, em 2001, outro sobre a mesma película no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Em 2003, ainda sobre essa obra, apresentei trabalho no encontro do V SOCINE, em Porto Alegre, e em 2008 publiquei um capítulo de livro organizado pelo CCBB.
Mas foi em 20 de agosto de 2008, por ocasião da mostra Retrospectiva Alain Resnais, ao apresentar mais um trabalho sobre Marienbad, que não chegou a ser publicado, que tive a grande alegria de conversar com Júlio Miranda, pessoa que eu já conhecia e admirava, mas ainda não tivera a oportunidade de um papo engajador como aconteceu naquele dia. Logo após minha palestra, fui ao encontro de Júlio e começamos a falar sobre Resnais. Logo constatei que tínhamos em comum a paixão pelo genial cineasta francês. Se não me falha a memória, Júlio foi o curador daquela mostra no CCBB.
Nossa conversa, não por coincidência, aconteceu em torno justamente da questão do tempo e da memória; de como o mosaico criado pela visualidade de planos díspares e repetidos, ora silenciosos, ora com a presença de sons diegéticos e não-diegéticos que cumpriam um padrão inédito que não somente quebrava o modelo clássico-narrativo sem deixar de ser um relato ficcional. Também não era apenas um filme de vanguarda nos moldes artísticos dos movimentos do início do século 20 que se consagraram na Europa e na União Soviética. Englobava outras dimensões da criatividade única de Resnais.
Diante de uma narrativa sem rótulo, esse autor ajudou a quebrar os limites dos lugares de fala e de fruição. O que corria na tela teria de estar intimamente conectado ao interior do fruidor, necessariamente tornado um co-criador conforme veio a arguir a Estética da Recepção. Tempo e espaço ali também não mais tidos como dimensões distintas, mas sim articuladas nos moldes da Teoria da Relatividade e da Física Quântica.
Com Júlio conversei sobre autores e movimentos artísticos que influenciaram Resnais. Trocamos ideias sobre os aspectos formais do filme, também sobre Alain Robbe-Grillet, que consta, oficialmente, como roteirista de Marienbad, mas que, na realidade, discordou de Resnais em alguns aspectos e ambos tomaram rumos diferentes, ficando Resnais como diretor do filme.
Júlio expressou sua relação com o filme e o que ficou em seu imaginário. Tivemos a oportunidade de tocar na questão das relações entre o décor de duas estéticas, clássica e barroca, que dominam as cenas. Muitos outros aspectos do filme vieram à baila. Tecemos comentários sobre o uso da câmera nos cenários internos e nos jardins; as estátuas e árvores tornadas personagens; o uso dos objetos de cena como espelhos e jogos de palitos e de cartas e tantos outros jogos simbólicos. Também falamos das falas e silêncios de sequências estáticas de personagens humanas como estátuas, paralelas às que figuram no exterior. Comentamos sobre os ruídos de fundo e descompasso entre palavras e movimentos labiais. Tratamos das críticas e visões de quem foi exposto ao filme nos anos sessenta. A divulgação de Marienbad referia-se à obra como “um filme do ano 2000”, polarizando opiniões. Muitos disseram amá-lo e outros odiá-lo. Diz-se que Robbe-Grillet e Resnais haviam dedicado o filme ao escritor surrealista, André Breton, mas diante da reação negativa de Breton ao filme, não oficializaram a homenagem.
Com a enorme experiência de ver, apresentar e analisar tantos filmes que povoaram sua vida intelectual, Júlio tomou um bom tempo comentando a reflexividade das personagens principais de Marienbad, caracterizadas como as letras A e X, em torno da passagem do tempo de seu affair amoroso sem resolução ou concordância se este realmente existiu e quando, deixando para o espectador a ideia de um imaginário fragmentado e sem limites.
Essa experiência que tive com Júlio Miranda nos idos de agosto de 2008 ficou indelével em minha memória. Júlio foi um amante de cinema como poucos. Um raro exemplo de quem consegue alinhar o afeto do que faz a uma energia de gigante e a um entusiasmo da criança diante do brinquedo.
Por Luiz Antonio Luzio Coelho é professor emérito da PUC-Rio.
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Por ocasião da mostra “Homenagem a Julio Cesar de Miranda”, este espaço busca ainda ser uma espécie de memorial, um local onde estão recolhidos uma série de breves depoimentos escritos ou em vídeo enviados por muitos de seus amigos e companheiros de vida. Assista aos filmes na Cinemateca do MAM online de 1º a 30 de abril de 2022.
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