La Femme de nulle part (1922)

RUY GARDNIER

Louis Delluc é um nome quase desconhecido hoje. A maior chance de se deparar com essas onze letras hoje é na cartela de algum filme francês, pois o “Prix Louis Delluc” desde 1937 já premiou Jean Renoir, Robert Bresson, Alain Resnais, Agnès Varda, Godard, Truffaut, entre tantos outros. Também é possível ler seu nome listado, sem maiores elaborações, entre os realizadores do “cinema impressionista” francês dos anos 20, ao lado de Jean Epstein, Abel Gance e Germaine Dulac.

Apenas uma pesquisa mais dedicada revela que Delluc, além de cineasta, foi também crítico de cinema, escreveu um pioneiro livro sobre Charles Chaplin, foi um dos criadores do cineclubismo e morreu em 1924, com 33 anos, acometido por uma pneumonia contraída nas filmagens de seu sétimo filme, L’Inondation. Apesar de ter cunhado um termo chave das primeiras teorias do cinema, o de “fotogenia”, nenhum de seus textos foi traduzido para o português, e nenhum de seus filmes jamais passou no Brasil. Trata-se, portanto, de uma oportunidade imperdível a exibição que faz o MAM de La Femme de nulle part (1922), tida como sua melhor obra.

A “mulher de lugar algum” é Ève Francis, musa e esposa de Louis Delluc. Ela chega de trem numa cidadezinha próxima a Gênova e dirige-se a um casarão. Paralelamente, vemos o casarão ocupado por seus habitantes, um casal que faz seu desjejum no jardim. Ele está entretido com seu jornal, enquanto ela sonha acordada, lembrando das juras de amor de um jovem galanteador. Ele viajará em horas para Gênova, sem saber que a esposa planeja aproveitar a ocasião para ir embora com seu amante, deixando a casa e um filho pequeno.

As ações paralelas convergem quando a desconhecida se dirige aos donos da habitação e afirma que o casarão já foi dela, e que ela gostaria de passear novamente pelos aposentos e reviver as lembranças de seus tempos juvenis. O marido assente, e despede-se.

Paralelismo parece ser a palavra definidora para a experiência de La Femme de nulle part. Porque, passado o paralelismo protocolar que instaura a narrativa, o filme entrará em outros dois regimes de ações correspondentes, um que envolve as tentações de cada um dos cônjuges (ele num cabaré em Gênova, ela com o amante), e outra, mais conceitual, que curto-circuita passado e presente na figura da desconhecida (que assim permanecerá ao longo de todo o filme, sem que saibamos nome ou qualquer outra característica mais definidora de personagem), que no passado também foi embora para viver uma aventura amorosa e hoje vive uma vida de pária, sem teto, amigos ou amor.

Mais em que grau e sentido o paralelismo de Delluc diferencia-se do paralelismo de um Griffith, que soube fazer brilhante uso de ações concomitantes tanto em termos narrativos (desde 1909) quanto em termos conceituais e de comparação histórica (em Intolerância, de 1916)? A moral do paralelismo decerto acompanha o modelo griffithiano – a revelação de um erro no passado pode alterar o curso do presente –, mas ao invés da modulação rítmica veloz e catártica presente no cineasta de Kentucky, Delluc oferece uma fluidez plácida, um tempo distendido, uma duração que convida ao especulativo.

Essa lentidão, esse peso, mesmo diante da forma mais dinâmica e ágil do cinema àquele tempo – a montagem paralela –, rima com a sensação de estagnação do casal, do casarão grande demais para as necessidades familiares, do sentimento de uma burguesia decadente em que talvez, ainda, seja capaz uma união pelo amor. No aspecto decadentista, o filme lembra muito mais o russo Yevgeni Bauer de Ditya bolshogo goroda/Filha da Cidade Grande (1914) do que qualquer outro cineasta, americano ou mesmo francês, aí incluídos os colegas impressionistas.

O momento mais marcante de Le Femme de nulle part é aquele em que a moral da história é colocada entre parênteses, quase suspensa antes que volte a dar as cartas. A mulher desconhecida, fica evidente, é um correlato do passado, quase fantasmagórico dado que não temos nenhum dado que possa ancorá-la numa existência precisa – quase um “fantasma dos natais futuros”, para evocar o conto natalino de Dickens –, e, portanto, está lá para fazer a jovem esposa (ninguém do filme tem nome, o que confere a tudo uma atmosfera arquetípica) reconsiderar sua decisão de partir com o amante. Ela repete o estribilho do filme: “Eu fugi de casa para viver um amor, hoje estou assim, sem ninguém”.

Mas num dado momento, num noturno instante da dúvida, ela muda de ideia e convence a jovem a tomar a decisão ousada: “Vá, viva esse amor, você pode ficar como eu no fim das contas, mas ao menos você terá as lembranças do que viveu, etc. Etc.” Nesse momento o filme desdobra um terceiro tempo, interno: além do passado inalterável da desconhecida e do presente contingente da jovem esposa, instaura-se o tempo da memória, capaz por si só de compensar uma vida solitária, sem recursos, sem qualquer tipo de amparo. Mais vale viver intensamente alguns meses, anos, e depois pagar o preço pela escolha, ou viver comodamente porém sem intensidade pelo resto da vida? A personagem abdicará do filho e do conforto bem instalado burguês?

La Fille de nulle part opta por uma resolução mais convencional, mas o mero surgimento da dúvida, ainda mais vindo da voz da experiência não-exemplar, já faz o filme abrir matizes mais complexos na aparente moral restauradora com que a história termina. Tomara que essa exibição sirva de estímulo para que os filmes de Louis Delluc fiquem mais acessíveis e seus escritos possam circular mais amplamente.

Entre realização, crítica, cineclubismo e roteiro (escreveu La Fête espagnole, dirigido por Germaine Dulac e tido como primeiro filme do movimento impressionista de cinema), sua contribuição é suficientemente singular para não ser esquecida ou subsumida nas ideias e nas obras de seus colegas.

Ruy Gardnier é jornalista e crítico de cinema.

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