Mulher tentada, por Gabriel Carvalho

País tentado
“Agora eu sei… e eu vou garantir que todos saibam. Sim, todos devem saber.”

Em um mar de pessoas que seguem a mesma corrente, Rosa (Yvonne Sansom) se depara novamente com Emilio (Aldo Nicodemi), um ex-namorado que a está chantageando para que recuperem um relacionamento nascido anos atrás. Envolta pela multidão, não há como a protagonista de Mulher tentada se esquivar das palavras desse elemento de seu passado, embora já esteja casada e com filhos no presente. “Eles não vão deixar você passar”, explica Emilio, que ameaça contar à família da mulher sobre a existência desse seu fantasma caso ela não volte para ele, e, ao mesmo tempo, menciona a inviabilidade da personagem de se deslocar entre as pessoas ao seu redor. Já noutra cena do longa-metragem de Raffaello Matarazzo, o antagonista aparece em um restaurante, com Rosa cercada de amigos, sem conseguir convencer seu marido Guglielmo (Amedeo Nazzari) a irem para casa mais cedo. Em contrapartida ao escape, impossibilitada de se ausentar fisicamente do espaço, às cegas dos demais presentes à mesa, a mulher permite, por fim, espairecer sua cabeça a uma época anterior, passeando por paisagens idílicas com o seu amor que fora lutar na guerra, mas não morreu.

Logo, em Mulher tentada, o passado regurgita pela presença do melodrama, que acorrenta uma vida inteira a sua vergonha geracional, tanto que os antigos amantes da Itália fascista se reencontram, por coincidência, em meio a um dos roubos de Emilio. Por isso, a bola com que as crianças brincam rola para perto da mesa na qual o casal de outrora, relembrado o que fora através de flashbacks, encontra as mãos por debaixo da mesa. Em suma, ao flagrar dedos entrelaçados, não há como o filho escapar da visão da sua mãe supostamente traindo sua família. Pelo contrário, a sucessão de eventos posteriores à cena da reunião à beira-mar depende do percurso de uma bola que, em decorrência de qualquer incidente, poderia se guiar a outra direção que não a da revelação. Porém, há uma perversão na história da Itália que, embora Rosa não queira retomar, não a impede de degustar. Na realidade, se, ao final do longa, a personagem assume um adultério que nunca aconteceu, ainda assim, assume-se uma culpa real, pois o resultado inerente à sujeira demais acumulada debaixo do tapete da novíssima família tradicional italiana é a incapacidade de escondê-la.

No fim das contas, matando Emilio, que queria viajar com Rosa para a América do Sul, o marido foragido se debanda justamente para os Estados Unidos, às custas das lágrimas do napolitano que, para assassinar o fascismo, precisa abandonar o seu lar e se deitar sobre o solo de um dos países responsáveis pelo fracasso da Itália na Segunda Guerra Mundial. De todo modo, se o simbolismo do neorrealismo italiano escalando atores não profissionais importa de algo, o fato de Amedeo Nazzari ter sido uma das maiores estrelas durante o período fascista do país também importa na obra de Matarazzo. No caso, embora tenha recusado filiação ao partido, o artista fora uma das imagens centrais da figura masculina de autoridade que, em Mulher tentada, reitera – ao, por exemplo, esbofetear o filho por não respeitar sua mãe – ainda que abrace o garoto posteriormente. Ou seja, por mais confortável que o presente da família italiana de classe trabalhadora seja, com comida na mesa para jantarem e irem para cama de barriga cheia, o passado precisa ser confrontado para que os personagens de Matarazzo sigam em frente, retirados a fórceps de uma noção de normalidade nunca antes contestada, mas que o melodrama escancara a janela.

Na realidade, ao invés de contraparte de Emilio, Guglielmo é fruto de pensamentos similares aos do criminoso, os quais culminam na sua necessidade por, trancada a esposa de fora do quarto em que se enfrentam, matá-lo em defesa de uma honra que nunca nem havia sido insultada de fato. Por que Rosa não conta para o marido sobre a chantagem, senão por medo de um moralismo encravado na sociedade, a qual, por todos os lados, a condena por ter amado, do mesmo modo como muitos amaram? Não à toa, o menino mais velho tem vergonha, contudo, ainda quer a mãe. Ele não tem culpa. Ele não tem hipocrisia. Já a menina mais nova nem mesmo entende o imbróglio. Para ela, não há vergonha. Para ela, não há Mussolini. Para ela, só existe a sua mãe, que brigou com o seu irmão, que recebeu uma carta, que a escondeu em uma gaveta, que foi embora e que quer que retorne no Natal. No entanto, há como essa família realmente ser uma família, há como essa mulher ser enfim escutada, há como Nazzari ser não estrela do fascismo, e sim co-estrela de uma parceria prolífica com Yvonne Sanson e Raffaello Matarazzo? Ora, assumida a culpa, quiçá ainda haja como esse país tentado se reconstruir por meio do choro.



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