por Miguel Haoni
Nasce uma estrela (A Star Is Born, 1954).
A star is dead
Filme-monstro, Nasce uma estrela de 1954 foi fonte de profunda tristeza para o seu realizador (George Cukor) e para a sua principal intérprete (Judy Garland): “Nenhum de nós dois pudemos suportar ver a versão final.”¹ Isso porque os cabeças da Warner, produtora do filme, num esforço de reduzir a metragem para aumentar sua viabilidade comercial, decidiram remontar o material contra a vontade do diretor, descartando e – pior – destruindo definitivamente trinta minutos do filme. Em 1983 um time de restauradores e arquivistas tentou reconstituir algo próximo do que poderia ser uma versão original do filme, a partir da banda sonora, de stills e fotogramas em sépia varridos por movimentos pan & scam, de pontas de planos da segunda unidade mostrando dublês saindo nos carros. Dejetos que, pela sua insignificância, haviam sido poupados da destruição e ajudariam a revelar como era o edificio. Garland morreu em 1969, Cukor em 1983, um dia antes da primeira sessão especial da nova cópia. Eles não viram a versão “restaurada”. Nunca puderam se conciliar com esse capítulo de suas histórias.
Até então, Cukor havia tido um percurso glorioso: seus filmes eram populares, inteligentes, provocadores, veículos para atrizes e atores imensos que graças à escuta atenciosa e a condução sensível do diretor, chegaram ao auge de suas formas. Foi o caso de Katharine Hepburn, que conseguiu em filmes como Boêmio encantador e Núpcias de escândalo, se liberar da imagem aristocrática e impopular que as plateias americanas pregaram nela. Foi também o caso de Judy Holliday, comediante sólida, rápida, atriz de pouquíssimos filmes, que conjugava o abandono do seu olhar de boneca à agudeza e fragilidade da voz em filmes como Nascida ontem e Demônio de mulher. Sem falar nos primeiros anos, com Kay Francis, Constance Bennett, Greta Garbo, Norma Shearer. Por meio da liberdade de suas atrizes, Cukor testava os limites morais em Hollywood, sob a vigilância do código Hays. É o que vemos num filme como Vivendo em dúvida, de 1935, no qual uma Hepburn travestida de homem seduz Cary Grant. Cukor não era apenas o único cineasta abertamente gay da época clássica e o anjo da guarda da comunidade LGBT de Hollywood. Segundo Hélène Frappat, “Cukor era uma mulher”². Seu cinema é feminino (mesmo feminista, quando lembramos que o termo gaslight vem de um dos seus filmes), mas de uma maneira bizarra (queer). Ainda em Vivendo em dúvida, a heroina não é “nem homem nem mulher, (…) mas a réplica é mais brutal, tratando-a de monstro: ‘You freak of nature!’”³ Nada mais justo que, nos anos 50, Cukor seja designado para levar às telas este duplo remake: a mistura de um filme seu de 1932, What price Hollywood?, com a primeira versão de Nasce uma estrela, escrito e dirigido por William A. Wellman. Enquanto Wellman havia se inspirado na vida de atriz Barbara Stanwyck e na tragédia de seu primeiro casamento com Frank Fay, Cukor, por sua vez, se inspirará na história de um dos maiores ícones gays: Judy Garland.
Ao lado de Marilyn Monroe, Garland foi talvez a maior vítima do studio system: aos 13 anos, ela assinou seu contrato com a MGM. De lá até o rompimento, ela sofreu durante 15 anos todo tipo de humilhação: vitima de escoliose, obrigada a atuar, dançar e cantar com uma armadura de metal, ela era apelidada pelo chefão Louis B. Mayer de “nossa pequena corcunda”⁴. Pernas longas, mas tronco e pescoço curtos, ela precisava – seguindo os memorandos da empresa – se esforçar para ser sexualmente atraente para os homens. E o pior: Garland tinha “problema de peso” e tomava drogas para controlá-lo. Isso provocou uma dependência química devastadora que implicou na sua demissão da MGM no mesmo ano da primeira de uma série de tentativas de suicídio. Não havia lugar para Dorothy nem no seu próprio lar: aos 23 anos ela entrou num casamento de fachada com o diretor Vincente Minnelli, um homem gay obrigado a se enrustir. Segundo Adrienne L. McLean, a atuação de Garland sempre esteve relacionada ao “sofrimento físico e psíquico”⁵. Tudo isso aparece em Nasce uma estrela. Para Richard Dyer, sua performance no filme incorporou “sinais do que costumamos rotular como neurose”⁶. Ele sublinha o descontrole de alguns dos seus gestos e expressões faciais.
Entretanto, não é Garland que interpreta Garland em Nasce uma estrela. É James Mason, um dos atores mais assustadores de todos os tempos. Na sua cinebiografia “a atriz assiste (…) à ficção que é a sua própria vida”⁷. Na primeira cena, que sinaliza ao mesmo a tempo a idade adulta do Cinemascope e do Technicolor, Mason sobe ao palco quebrando espelhos, com uma violência desmedida nos gestos, bradando as últimas palavras de Ricardo III: “A horse, a horse, my kingdom for a horse!”. Logo Shakespeare, que tão bem transitou entre a tragédia e o melodrama. Nasce uma estrela é ao mesmo tempo uma tragédia em três atos e a quintessência do drama melódico. Da Inglaterra, T.S. Eliot também é convidado para fechar a moldura do personagem quando, pela boca do relações publicas do estúdio, depois de anunciar o “acidente” de Mason, ouvimos as vozes dos “Homens Ocos”: “E assim o mundo acaba: não com uma explosão, mas com um sussurro.”
E não é só de som e fúria que esse filme monstruoso (animado por heróis torturados, presos num ciclo de terror e piedade) é feito. Ali dentro corre também uma dor real. Debaixo do colorido da comédia musical, nas lágrimas dos personagens, escoa também o lamento de Cukor, Garland e Mason. Artistas, atores, poetas. Fingidores, como dizia Fernando Pessoa. Numa cena, Judy Garland, vestida de palhaço, limpa suas lágrimas e volta para o palco, para o seu close-up. No final James Mason pede para que sua esposa prepare o jantar e deixe a janela aberta para que ele possa ouvi-la cantar enquanto toma um banho de mar. Ela vai para a cozinha e ele pede que ela espere: “Só queria te ver mais uma vez”. The show must go on and on…
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1 CUKOR, George in LAMBERT, Gavin. On Cukor : A great Hollywood Director Producer. W.H. Allen, 1973, p. 48.
2 FRAPPAT, Hélène. Conversa com Hélène Frappat – Gasligjht e La Paura. Publicado em 1 de setembro de 2021: Conversa com Hélène Frappat – Gaslight e La Paura – YouTube
3 FRAPPAT, Hélène. “No meu lugar, eu teria…”. La Lettre du Cinéma n° 5, primavera de 1998. p.39 vestido sem costura – blog de cinema: “No meu lugar, eu teria…”
4 MCLEAN, Adrienne L. “Feeling and filmed body: Judy Garland and the Kinesics of suffering”. Film Quarterly n°55, primavera de 2002. p. 3.
5 Ibid, p. 4.
6 DYER, Richard, “Judy Garland and gay men“. Heavenly bodies: Film stars and society. Londres, BFI, 1986. pp. 142-143.
7 NEVERS, Camille, “’Judy’ passe à côté de Garland. Libération de 25 de fevereiro de 2020. «Judy» passe à côté de Garland – Libération (liberation.fr)
Este artigo diz respeito à rubrica Incontornáveis, e Nasce uma estrela de George Cukor faz parte da programação que a Cinemateca do MAM promove em outubro de 2023.