Neville D’Almeida, 80 anos

IGOR NOLASCO

Festival de Brasília, 1968. Pouco antes de sua segunda exibição comercial, o filme “Jardim de Guerra” é interditado pela Censura da Polícia Federal da ditadura civil-militar que então governava o Brasil. É o primeiro longa-metragem de um jovem cineasta belo-horizontino, que um ano antes regressara a seu país de origem após uma temporada de três anos em Nova York, sonhando em dar sua contribuição ao cinema brasileiro. Ele trabalhara como assistente para Nelson Pereira dos Santos, quando o veterano diretor foi aos EUA rodar algumas sequências para seu filme “Fome de Amor”, e os dois retornaram juntos ao Brasil. Foi o primeiro filme de Neville D’Almeida a ser censurado, e estava longe de ser o último.

“Jardim de Guerra” sofreu uma série de cortes pela Censura, e sua versão integral só foi reaparecer poucos anos atrás – uma única cópia 35mm, enviada à Europa para abrir a primeira Quinzena dos Realizadores da história do Festival de Cannes; após quase cinquenta anos preservada em solo europeu, ela hoje está sob os cuidados da nossa Cinemateca do MAM. Projetos seguintes, como “Piranhas do Asfalto”, “Surucucu Catiripapo” e “The Night Cats” teriam um destino ainda pior: interditados, censurados, jamais exibidos e considerados perdidos para sempre (no caso de “Surucucu Catiripapo”, sobrevivem fotos still e filmagens super 8 de making off registradas pelo cineasta Ivan
Cardoso).

Esta primeira fase de sua filmografia é caracterizada por experimentações imagéticas arrojadas e ligações com os movimentos vanguardistas, contraculturais que fervilhavam à época, mesmo que sufocados pela ditadura. Além do “Jardim de Guerra”, há outro sobrevivente dessa safra: “Mangue Bangue”, de 1971, rodado quase sem recursos com base em uma ideia de Neville e do artista plástico Hélio Oiticica (co-criador, em parceria com o cineasta, das Cosmococas, ambientes de imersão sensorial que anteviram a popularização das instalações na arte contemporânea). Tendo permanecido desaparecido por mais de três décadas, o filme foi redescoberto em uma lata não-listada em meio ao acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York, pelo pesquisador Fred Coelho.

Neville chegaria ao sucesso com “A Dama do Lotação”, em 1978 – recordista de bilheteria no cinema brasileiro por trinta e dois anos. Foi a primeira de duas adaptações que D’Almeida faria da obra de Nelson Rodrigues; a segunda, “Os Sete Gatinhos”, veio dois anos depois, também fazendo bons números com o público. Além de ter escrito o argumento e os diálogos para o primeiro filme, Nelson supervisionou a filmagem dos dois. Dizia que Neville era o melhor diretor a adaptar sua obra.

O vínculo do cineasta com o teatro não abrange somente o universo rodrigueano: Neville também já adaptou peças de Plínio Marcos (“Navalha na Carne”, em 1997), José Vicente (“Hoje é Dia de Rock”, em 1999) e Mario Bortolotto (“A Frente Fria Que a Chuva Traz”, em 2016), sempre partindo do que há de melhor no texto de ricos autores brasileiros e incorporando a isso seus jogos de cena dinâmicos, energéticos e que nunca optam por saídas fáceis.

Em “Rio Babilônia”, de 1982, Neville sintetiza um dos pontos principais do seu cinema: a exposição do ser humano como ele realmente é, sem amarras e convenções, ainda que para isso precise se debruçar sobre a face oculta de nossas sociedades. Não há tabus no cinema nevilleano, e é por isso que ele também é um dos cineastas a retratarem o sexo e a sexualidade humana de maneira mais natural na história do cinema brasileiro. Outra demonstração disso está em seu “Matou a Família e Foi ao Cinema”, de 1991, uma versão para o filme homônimo de 1969 dirigido por Júlio Bressane, mas que exala uma originalidade toda própria na maneira em que aborda o sexo. Neville nunca é gratuitamente apelativo ou pornográfico: a sensualidade de seu cinema é de uma doçura muito pura, seus personagens assumem o desejo de maneira honesta e o reivindicam como um direito.

Por essa abordagem, ele também pagou um preço: mesmo seus filmes de maior sucesso também enfrentaram a Censura da ditadura, que exigiu cortes para que estes chegassem aos espectadores. “Rio Babilônia”, em especial, foi objeto de uma longa batalha judicial. D’Almeida chega aos 80 anos em 2021 com a vitalidade que sempre teve, tocando projetos no cinema e nas artes plásticas, participando de debates e homenagens. Sua filmografia está entre aquelas que são verdadeiramente incontornáveis para que se possa ter um entendimento amplo do cinema brasileiro: da ligação à contracultura dos anos 60-70 até a consagração comercial com “A Dama do Lotação”, chegando ao cinema brasileiro contemporâneo da pós-retomada com “A Frente Fria Que a Chuva Traz”; a história de Neville se confunde com a história de nossa cinematografia a partir do final da década de 1960.

Cada um de seus filmes está intimamente integrado a um determinado período histórico, e ainda assim o bojo de sua obra, como um todo, exala um frescor tanto em temática quanto em linguagem – justamente o que atesta a qualidade dos trabalhos de grandes cineastas do cinema brasileiro e internacional.

Igor Nolasco é crítico de cinema.



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