LEANDRO MELITO
“De dez em dez anos tem que vir alguém lá da Tijuca chutar a bunda deles para eles acordarem. Acho que esse é um pouco meu papel.” *
Impressão de deterioração do filme. Imagem e som em linhas diferentes, desconexas. Frases atravessam as imagens, praticamente se chocam com elas, diálogos? Recortes feitos por uma câmera insana, você não consegue prestar atenção no rosto dos… personagens? Fragmentos de músicas, rabiscos na tela, ruídos sonoros, música
experimental, polifonia, tiroteio audiovisual e você…não consegue acompanhar? Mas… você queria entender o enredo? Achou que ia assistir a uma sessão de cinema? Perdeu mermão. Essa foi a forma que encontrei para descrever a experiência de assistir um filme de Nilson Primitivo (1967-2022) para um perfil sobre o cineasta publicado na Revista Figas em 2009.
“Meus filmes têm um lance que é o seguinte. Se você assistir apenas a imagem e desligar o som, como se fosse um filme mudo, ou então só escutar o som como se fosse uma radionovela, fica mais inteligível. Os dois juntos às vezes se atrapalham, embora um seja a alegoria do outro”, disse Primitivo para Marcelo Montenegro, no perfil “A vida como ela erra”, publicado na revista Etcetera em 2007.
O apelido Primitivo surgiu do trabalho na ilha de edição quando trabalhava com VHS nos anos 1990. “Eu não conseguia dar fade. Porra. Dez anos de profissão e nunca dei um fade. É tudo corte seco”, disse a Montenegro.
Primitivo transitou entre diferentes formatos: VHS, digital, 16 e 35mm e fez do cinema sua profissão de fé, com uma produção de curtas e longas-metragens. Além do cinema autoral, também é diretor grande produção de videoclipes que vão de Sentimental (2002) para a banda Los Hermanos, e passa por diversos artistas como DeMillus & DuLoren, Botika, Cabelo Cobra Coral, Marcus Salgado e Power Plants.
Sem passagem por cursos de cinema e na contramão da produção audiovisual patrocinada, Primitivo realizou seus filmes utilizando uma metodologia própria. “Ele deixou sua marca como diretor independente, autor de um cinema essencialmente gráfico, marcado por subversões de todo tipo, construído a partir de performances antinarrativas, com atores e não-atores, e colagens de diferentes materiais sonoros e cinematográficos”, aponta o pesquisador de acervos audiovisuais Remier Lion.
Nilson Gonzalez
Nilson Luiz de Castro Gonzalez nasceu no dia 6 de janeiro de 1967, Dia de Reis, na cidade de Santos (SP). Foi batizado com o nome do pai, Nilson Gonzalez, primeiro filho brasileiro de uma família espanhola. Ele se casou com Dayze Maria Gonzalez e tiveram dois filhos, Vanessa – quatro anos mais velha – e Nilson. A família se mudou para o Rio de Janeiro quando ele tinha entre seis e sete anos. Viveram primeiro no Grajaú, depois na Tijuca, bairro onde passou a adolescência e começo da vida adulta.
Vanessa Gonzalez acredita que a relação do irmão com as artes foi estimulada pelo avô, o espanhol Abdon Gomes de Castro. Cego ainda jovem, Castro cultivou o apreço pela música, pela pintura e pela poesia. “Ele era muito fascinado por esse avô e esse avô por ele. Essa parte artística acho que ele puxou dessa admiração que tinha pela cultura e pela poesia do avô. Era muito ligado nele desde criança, os dois eram muito agarrados um ao outro, ouvindo música o dia inteiro na casa da minha avó”, conta a irmã, principal laço familiar que Nilsão manteve ao longo da vida.
Mesmo distante ligava ou mandava mensagens para ela, ainda que com longos intervalos de tempo. Saiu de casa cedo, aos 17 anos, e entrou em um fluxo cigano de vida que perdurou até o momento de sua partida. “Ele foi para São Paulo, ele trabalhou de garçom. Ele trabalhou na Bahia. Ele viajou bastante, foi para a Espanha. Eu nem soube que ele tinha ido à Espanha, soube depois que voltou, era assim muito desgarrado e destemido. Ele foi pro mundo, só ligava me falando que não deu certo alguma coisa, ou deu muito certo uma coisa”, lembra a irmã.
Nilson trabalhou como garçom e taxista no final dos anos 1980. No começo dos anos 1990, entrou pro curso de jornalismo das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha). Na faculdade Primitivo conheceu Leonardo Duarte. Juntos montaram um jornal de parede feito em cartolina chamado O Ralo, que circulava dentro dos banheiros, pregado na parede.
“A gente escrevia algumas coisas, convidava outras pessoas para escrever poesia e críticas ao nosso dia a dia na faculdade, algumas questões políticas, artísticas também. A gente fez esse trabalho durante algum tempo, mas não agradou muito a direção da faculdade, houve uma perseguição e a gente parou de fazer pra não acabar sendo expulso”, lembra Duarte.
“Estava fazendo jornalismo, já velho cara, com 30 anos, depois que melhoraram as coisas. Fiquei 10 anos dirigindo táxi, sendo garçom, fazendo uma porrada de coisa que eu não gostava porque eu tava duro. Meu pai morreu, depois eu entrei pra faculdade de comunicação, dirigia táxi ainda. E aí eu comecei, por acaso, a trabalhar com vídeo”.
Primitivo e Duarte se juntaram a Bernardo Brik para comprar uma ilha de edição VHS, formada por dois vídeos Super VHS, uma mesa de corte e uma mesa de caracteres, que deu origem à produtora Moby Dick.
Moby Dick
Os vídeos autorais daquele período marcaram a produção independente do Rio de Janeiro nos anos 1990. Duarte começou a estudar teatro no Parque Lage e inseriu Primitivo naquele grupo. Em torno da produtora se formou um coletivo audiovisual com Gustavo Duarte, irmão de Léo, Fernanda Branco, Leonardo Rivera, Gustavo Damião, Karine
Chabiland, Chlöe de Carvalho e Beatriz Bastos.
“A gente começou a fazer várias experiências, usava muito filme de super 8 antigo que as pessoas tinham em casa e filmava também muita coisa. A gente pegava a câmera, saía pra filmar e depois sentava na ilha e construía essas histórias. Foi uma época muito rica de descobertas e o Nilson também estava descobrindo o audiovisual”, lembra Duarte.
Pela Moby Dick foram feitos alguns curtas que se tornaram clássicos do underground carioca como O Nada, O Nada vai ao Parque, O Grande Pierrot e A Mulher Molhada / The Wet Woman, produzidos entre 1996 e 1997. Esse último é uma ficção baseada na lenda de uma mulher que circulava em Niterói, sempre vestida de forma elegante, mas molhada da cabeça aos pés. O curta tem Silvia Machete no papel principal e se tornou um clássico do cinema underground carioca.
O argumento é do jornalista e produtor Leonardo Rivera, que morava em Niterói e ouviu a história de diferentes fontes. “Surgiu esse argumento mas foi todo um desenvolvimento a partir dele. Com a colaboração do Gustavo Damião, do Gustavo Duarte e do Léo Duarte, mas o Nilson dirigiu, saiu à frente, pegou e fez tudo. Exatamente do jeito que ele sempre fazia as coisas.”
Quando entrou na faculdade, Primitivo morava na rua Rodrigo Otávio, no Baixo Gávea. Seu apartamento se tornou um ponto de encontro dos amigos da faculdade, do pessoal da produtora e dos diferentes círculos que ele frequentava.
A casa do Gonzáles era o nosso aparelho. Difícil passar por ali e não escutar Sérgio Sampaio ou Luiz Melodia na vitrola em algum momento do dia. Como ficava a cinquenta metros do Baixo Gávea, a maioria das noites acabava ali mesmo. E a noite pro González não terminava nunca.
É assim que o jornalista Márcio Menezes, descreve aquele apartamento no livro Todo Terrorista é Sentimental (Record 2011), ficção em que o protagonista é Gonzáles, personagem inspirado em Primitivo. No livro, ele é descrito como “intelectual, sentimental, fã incondicional de Ângela Rô Rô e Orlando Silva”, que não perdoava ninguém que não conhecesse Rogério Sganzerla. “Você nunca viu O bandido da luz vermelha? Então vai pra casa!”.
Um tipo brilhante. Capaz de repetir todos os diálogos e planos de “Terra em transe”, de Glauber, recitar versos de Castro Alves e chorar ao lembrar o curta “O poeta do Castelo”, de Joaquim Pedro de Andrade sobre Manuel Bandeira. E repetia bêbado que Joaquim havia morrido sem filmar “Casa-grande & Senzala” e que aquilo era muito injusto. Não podia ver uma pessoa de mais idade trabalhando na noite vendendo flores ou balas que logo se
comovia.
Mais do que as aulas da faculdade, frequentavam os botecos da rua Farani, no bairro de Botafogo, para discutir as últimas leituras. Torquato Neto, Mauro Faustino e o Cinema Marginal da Boca do Lixo paulistana – em particular Rogério Sganzerla e Zé do Caixão – estavam entre as principais referências de Primitivo naquele período. “Uma inquietação intelectual ligada principalmente aos movimentos artísticos fora do mainstream”, lembra Menezes.
“É a pessoa que mais me inspirou, representava as inquietudes de uma geração no que toca à criação artística dentro dos grandes núcleos urbanos, as angústias existenciais. Esse caos interior brilhante dele, essa capacidade de incorporar a revolta e ao mesmo tempo o conhecimento, a insatisfação, a boemia. Ser marginal é uma decisão poética e ele sempre optou por isso.”
Depois do apartamento na Rodrigo Otávio, Primitivo se mudou para a Rua dos Oitis, em um apartamento era basicamente uma ilha de edição e uma geladeira. Leonardo Rivera precisou se mudar para a capital fluminense quando foi contratado pela Polygram, na Barra da Tijuca, e foi recebido por Primitivo naquele apartamento durante seis meses entre o final de 1996 e o começo de 1997. Alugou o quarto onde ficava a ilha de edição, sede da Moby Dick. “A vivência do Nilson foi pra deixar esses filhos, que são essas obras de arte, esses filmes. Era tudo o que ele queria, que as pessoas vissem, consumissem e entendessem a obra dele, que era a frente de seu tempo, visto que hoje ainda é moderno”, aponta Rivera.
Primitivo tinha uma grande coleção de discos de vinil e uma biblioteca bem fornida, que ficava a serviço das pessoas de diferentes que ele aglutinava em torno do apartamento, como o poeta Ericson Pires (1971-2012), amigo próximo que também morou ali, quando integrava o grupo musical Hapax, assim como o músico Botika, que na época integrava a banda Neura, os integrantes da banda Los Hermanos. Uma das figuras constantes naquele apartamento era o fotógrafo Dida, que teve influência na virada estética de Nilsão como diretor de cinema.
Companheiro de noitadas, Dida trabalhava durante o dia como fotógrafo comercial em restaurantes e à noite fotografava as bandas do underground carioca. Com formação de fotógrafo laboratorista, ele usava o momento da revelação dos filmes para gerar alguns efeitos na fotografia. “A revelação era um processo autoral. Ele interferia no resultado criativamente através da revelação”, lembra Remier Lion, amigo de Dida que foi apresentado por ele ao Nilsão.
Primitivo trabalhou em VHS até cerca de 1999 quando os equipamentos digitais começaram a dominar a produção audiovisual. Chegou a comprar uma câmera digital e participou de algumas produções, mas quando filmou com a Bolex 16mm emprestada de Daniel Zarvos, equipamento a manivela que filma três minutos por vez, encontrou uma estética com a qual se identificou, com “uma textura de lápis de cera que fica lindo”.
“Depois que eu fiz em 16mm, que eu vi aquela fotografia, porra, me identifiquei pra cacete cara, que é uma coisa muito imagética assim, muito de memória mesmo, da televisão que eu via quando era criança entendeu? Era uma imagem parecida, filmada em 16 e com aquela janela meio retangularzinha pra cima.”
Foi com Dida que Nilsão aprendeu a revelar filmes, processo que incorporou à sua estética autoral como diretor de cinema, revelando os negativos na banheira do apartamento da Gávea. “Os filmes ficavam lá pendurados. A revelação era uma performance, um processo experimental em si. Tem um setor da obra audiovisual do Nilsão que é toda feita compelícula e revelada dessa maneira artesanal. Isso acabou imprimindo, literalmente, um estilovisual no trabalho dele e marca esse período da obra dele”, lembra Remier.
Mais Velho
Cineasta brasileiro tem medo de escuro, é só revelar cara, o máximo que pode acontecer é arranhar um pouco o filme. Dá pra botar por balde uns três a quatro metros de filme. Depois pendura ali na corda de roupas…E te digo, as imagens reveladas aqui em casa foram as melhores. Pra botar um filme num balde, contar 1 min. e meio, tirar e botar no outro balde não precisa ser nenhum gênio, vai pagar 300 contos pra nego fazer isso? Enrolar canudo todo mundo consegue, enrolar baseado todo mundo sabe… vai enrolar 16mm porra!!!
Esse é um trecho da entrevista Nilson Primitivo para o jornal Incinerasta, em 2000, principal veículo do movimento cineclubista carioca, que passou a dar nome à mostra destinada a produções autorais naquele período que acontecia na Fundição Progresso, Mostra o que neguinho tá fazendo, com curadoria aberta. “Era um momento muito anárquico, coletivo. A gente marcava um dia para fazer as curadorias, as pessoas iam, levavam os seus filmes, de amigos. A gente assistia, discutia e montava a seleção. Era intenso”, lembra Pedro Bronz, organizador da mostra junto com Rodrigo Saviano.
Primitivo foi entrevistado por Bronz, na época em que trabalhava em seu primeiro filme autoral em 16mm, o curta-metragem Mais Velho (2000). “Uma coisa meio bandida, meio maluca, o que me interessa. Completamente heróico. Você faz muito por necessidade, se não fizer nem sei que merda vai dar”, disse na entrevista ao Incinerasta. “O Mais Velho foi um impacto visual para todos nós, realmente é um marco. Foi um filme muito falado, muito aguardado e quando chegou desconcertou a galera”, lembra Bronz.
“Com o Nilsão não havia separação entre obra e artista, os filmes eram resultado daquilo que ele estava vivendo no momento. Os personagens, os atores, os textos, as impressões. Toda a obra dele é o próprio Nilsão se comunicando em diferentes momentos. Por isso é muito visceral o trabalho dele, sem nenhuma concessão.”
Mais Velho também marca o início da parceria de Primitivo com Rodrigo Amarante. Convidado para fazer a dublagem do curta, ele interpretou a voz de quatro personagens na mesma cena, um diálogo entre traficantes. “Conheci o Amarante antes de ele tocar no Los Hermanos, quando a gente fazia uns trabalhos com o poeta Ericson Pires. Ele é muito bom ator, fazia as cenas que ninguém queria fazer como tomar choque, tirar sangue em cima do palco, coisas do gênero. Ele veio para a dublagem de ‘Mais Velho’ e acabou participando de três outros trabalhos. Tem muito insight dele nos filmes.”
A atriz Melissa Mell conheceu Primitivo por intermédio de Paulo Tiefenthaler e foi convidada a atuar em Exu do Amor (2001).“Fui lá na Rua dos Oitis e tinha essa reunião, aí do nada a gente se beijou [risos] e foi um romance maravilhoso que durou muito tempo. Eu conheci a obra do Godard pelas mãos dele. Ele falava: ‘esse estilo de filme com poesia que eu quero, é o meu estilo. A gente formou uma dupla, corria atrás para fazer cinema independente. Ele pegava atores ou não atores, amigos. Juntava a galera e fazia os filmes”, lembra Melissa Mell.
Quando Cássia Eller tocou no Rock In Rio em 2001, Primitivo foi convidado para fazer as projeções e colocou trechos de filmagens com outras imagens que ele pediu ao diretor Cláudio Cunha. “Ela ficou encantada com as ideias dele, falou: pode fazer o que vier na tua cabeça eu tô contigo, pode fazer. Aí ele passou lá, até botou umas imagens minhas, dos amigos”.
Los Hermanos
Nesse período, Primitivo também realizou trabalhos com a banda Los Hermanos. É dele o clipe da música Sentimental (2002), em 16mm. “Eu acho um dos meus trabalhos mais bonitos que eu já fiz, eu acho bom pra
caramba aquele trabalho lá. E também não passou na MTV não [risos]. Os caras falaram que tava errado [risos]. Que a foto tava muito escura. Os caras chegaram a me sugerir assim, numa santa ingenuidade: ‘Não se você quiser a gente tem um telecine aqui, a gente melhora o filme pra você’. Porra bixo.”
O vídeo foi filmado com a participação de amigos e os integrantes da banda, que aparecem em segundo plano. A atriz Melissa Mell fez a única personagem feminina do clipe, uma vendedora de peixe na cena filmada ao lado da padaria Rio Lisboa. Algumas imagens foram feitas na redação do Jornal do Brasil. “Ele faz uma espécie de low fi no campo da videoarte dos clipes que dialogava abertamente com o que estava se tentando fazer naquele momento em termos de som, de lo-fi rock, essa coisa toda. Fitas cassete, gravadores de rolo, película. Isso muito antes da cultura do hipster, essa coisa toda”, aponta Marcus Salgado.
“Tirando a música, que já é muito bonita, ela pede uma coisa assim, a estética do Nilsão, o preto e branco, as imagens. Tudo muito poético. Para mim é o clipe mais bonito”, avalia Kadu Carlos, que foi rodie da banda durante aquele período e lembra de Primitivo nas viagens de ônibus da banda, captando imagens.
Em 2004 Primitivo rodou um documentário durante a turnê do disco Ventura (2003) em parceria com Sérgio Lutz que não chegou a ser lançado comercialmente. “Isso foi um insight do Sérgio, ao perceber que, apesar da banda ter sido boicotada pela gravadora quando lançou o álbum, e não ter tocado muito na rádio em função disso, o público compareceu aos shows cantando todas as músicas.” Primitivo também participou como câmera dos clipes Morena e Condicional, dirigidos por Eduardo Valente. É dele também a filmagem de uma apresentação ao vivo da banda na
Fundição Progresso, lançado em DVD em 2004 e do clipe de O Vento (2005), filmado em digital.
Mostras
Oito filmes produzidos no Rio de Janeiro, da fase em 16mm foram exibidos na Mostra do Filme Livre em 2006, organizada por Guilherme Whitaker no Centro Cultura Banco do Brasil (CCBB) dentro do panorama Cinema em Transe (Sessão Imprópria) dedicado a experimentos radicais de linguagem junto com produções de Jean Genet e John Lennon/Yoko Ono. Além de Mais Velho, a retrospectiva contou com Exu do Amor (2001), Idade da Pedra (2002), Duelo das Loiras (2003), Dez pro Inferno (2004), O Craque do Futuro e Império das Pelúcias (ambos de 2005).
Primitivo mudou-se para São Paulo em 2006 para fazer trilha sonora para uma peça de teatro com Mário Bortolotto e Juliana Galdino que figuram no seu primeiro curta rodado na cidade: GRU (2006), inspirado no personagem do livro A Frente Fria Que A Chuva Traz de Bortolotto. Das latas de negativos usados que trouxe do Rio, saíram ainda Alerta aos Carcereiros e Quando a verdade vai entrando ou Carta aos cegos (para aqueles que sabem
ouvir e falar), ambos de 2007.
Em 2007, os 11 curtas realizados no Rio e em São Paulo foram exibidos em uma sessão na Cinemateca Brasileira organizada por Remier Lion. Primitivo estava com 40 anos e vivendo há um ano na capital paulista. Em São Paulo também foram filmados Suíte Oriental (2007), uma homenagem a Sady Baby, Maldito Ciclo Lunar (2008) e O inferno não vale nada (2008), curta em 16mm com os bastidores das filmagens de Encarnação do Demônio
(2008) de José Mojica Marins (1936-2020), o Zé do Caixão. “Depois de 30 anos, o Mojica sem filmar, a primeira cena dele saindo da cadeia eu tenho, eu filmei em 16mm. Ele já tinha visto meu trabalho, ele gosta, ele falou olha
cara, eu não posso pagar porra nenhuma a você, que você tá entrando pela garagem, o orçamento aqui tá tudo fechadinho, tudo direitinho, mas eu gosto dos teus filmes, passa, entra como extra, no DVD”. Primitivo conseguiu filme virgem com a produção do Mojica e seguiu fazendo o registro. Durante as filmagens na Lapa, um ator não conseguiu chegar a tempo e ele acabou sendo escalado para fazer o papel de um zumbi no filme.
35mm
Durante as filmagens de Encarnação do Demônio (2008), Primitivo conheceu Marcelo Colaiácovo que trabalhava como steady in do filme. Desse encontro nasceu uma parceria que resultou nos curtas New York Dolls (2006), Coração das trevas (2017) e dois longas-metragens em 35mm, aos quais ele aderiu por insistência de Colaiácovo: Babadaboca (2017) e Pé de Veludo (2018). “Nossos negativos tinham vencido entre 10 e 30 anos atrás, nossa câmera era dos anos 50, filmamos um pra um as cenas (não dava pra repetir take nenhum), a revelação era feita em latas de lixo grandes e nosso telecine caseiro era feito direto do negativo, em uma moviola com espelho manchado. Se algum filme da nossa parceria 35mm existe, é um puta de um milagre, sem sombra de dúvidas. Talvez algo que precisasse ser realizado, por mais improvável que parecesse”, conta Marcelo Colaiácovo.
Primitivo e Marcelo Colaiácovo também mantiveram durante dois anos o Cinepub, um cineclube na Associação Cultural Cecília que exibia, toda segunda-feira, um filme da Boca do Lixo e convidava diretores daquela geração. Os filmes da parceria entre ele foram exibidos na retrospectiva Dois Monstros, realizada na Cinemateca do Museu de Arte Moderna em 2018, organizada por Remier Lion.
Retorno ao Rio de Janeiro
Nilsão permaneceu com uma vida itinerante, mas manteve a cidade de São Paulo como base até maio de 2019, quando se mudou para Lumiar, na Zona Rural de Nova Friburgo (RJ), onde passou seis meses. Nesse período dirigiu uma série de clipes musicais em formato digital, colagens com cenas filmadas e imagens de seu acervo. Fez uma série de clipes para a banda Power Plants, com Paulo Duarte, no período em que morou na Casa Guida, espaço de residência artística criado em 2017 por Ida Leal e Guilherme Whitaker.
No período que esteve em Lumiar, Primitivo também morou com Botika e Ana Maria Bonjour, em uma casa mantida pelo casal ao lado daquela onde moram com as três filhas. Kalich (2019), foi feito em coautoria entre eles, durante aquele período. O curta é uma homenagem póstuma ao pai de Botika, o músico de teatro Caique Botkay (1951-2018), de origem húngara e cigana. “Vamos fazer o filme que você é o cigano, bora enterrar seu pai, bora fazer uma homenagem pra ele”, propôs Primitivo. “Esse filme foi uma baita coisa linda de acontecer, porque eu não tinha feito filme com o Nilsão e realmente foi uma realização importante para mim e para Ana Maria também. Foi gravado aqui em casai”, conta Botika.
Nesse período, Nilsão também produziu uma série de clipes para músicas do disco Carnívora, lançado por Botika em 2021, material que permanece inédito. “Ele estava sempre aparecendo aqui na nossa casa para pedir material bruto, não conseguia parar de fazer coisas. Ele batia na porta, botava a cabeça para dentro da casa, educadamente, e falava: ‘Pô aí, não tem mais nenhum bruto aí para mim não?’”.
Primitivo também dirigiu o clipe para música Carnívora (2021), que dá nome ao disco, com participação de Alice Caymmi, quando já tinha voltado a morar no Rio de Janeiro (RJ), na Praça Tiradentes. Estava no Rio quando reencontrou Junia Machado, que foi sua namorada no final da década de 1980. Em 2020, com o início da pandemia, ela começou a produzir alguns vídeos para divulgar suas peças nas redes sociais e ele assumiu a direção.
“O fato do Nilson conhecer meu trabalho desde muito jovem facilitou”, conta Machado. Na fase de restrições mais severas da pandemia, o cenário era apenas uma parede interna e uma vista lateral para a Lagoa Rodrigo de Freitas. Lançaram como modelo para as peças Taina Maia, que trabalhava como chefe de cozinha em Belo Horizonte, e filmaram externas em Tiradentes (MG). Primitivo ainda deu sugestões de peças para a coleção.
“Por ocasião do aniversário da irmã dele, que estava de passagem em Petrópolis, ele ‘catou’ uma semente de espatódea no jardim e sugeriu um ‘sanduíche’ em vidros de relógio com uma fita de ouro lacrando a estrutura. Eu fiz”, diz Machado.
Depois de um encontro com Cabelo Cobra Coral em Santa Tereza, Primitivo escutou o disco do artista e foi tocado em particular pela faixa Ladainha do Morto, poema de Gerardo Mello Mourão musicado por Cabelo, em cadência de rap no seu disco Luz Com Trevas (2021). Fez um clipe para a música e enviou por e-mail. “Essa música pra mim, é muito difícil, mermão, além dela ser a coisa mais linda que já vi na minha vida tem um significado histórico foda”, ecreveu Nilsão.
“Fiquei muito mexido, ele falou de seis primos dele que foram pro crime, ficou muito comovido e fez essa montagem. Foi uma surpresa, um presente muito lindo dele. Não imaginava que ele partiria tão cedo. Fiquei muito comovido, surpreso e feliz, porque traduz muito o clima da música”, conta Cabelo.
Após assistir o clipe Ladainha do Morto (2022) postado por Primitivo, o músico Marcus Salgado decidiu entrar em contato para combinar uma parceria com as faixas de seu projeto Ôe pelo selo Boston Medical Group. “Ele tava nessa pira de fazer cinema com imagens de acervo, desapegou completamente do suporte. Pra mim foi um puta aprendizado, porque a gente tende a fetichizar e você vai percebendo que o suporte é um detalhe nessa história toda, o que importa é lançar os dados. Foi uma das lições mais fortes que aprendi com ele nessa etapa final”, conta
Salgado.
Eles se conheceram no dia da mostra sobre Nilson Primitivo na Cinemateca Brasileira em 2007, quando Salgado ficou impactado pelos filmes. “Foi um impacto muito forte. O cinema dele conseguiu o impossível, juntar certas inquietações estéticas sobretudo numa demanda dos letristas e dos situacionistas do cinema, do Isidore Isou e do Debord, os filmes mais radicais do Godard, e ao mesmo tempo conectando com a psicodelia, com Stan Brakhage,
Shūji Terayama, com a contracultura, com o cinema marginal.”
No dia 31 à 1h da manhã, Salgado recebeu por e-mail o clipe Gongora’s Coil (2022). O último contato entre eles aconteceu no dia 3 de setembro, quando Primitivo já tinha dado entrada na Unidade de Pronto Atendimento (UPA). O vídeo foi publicado na Revista SeLecT, em Poética do erro: O legado explosivo de Nilson Primitivo.
Estalo a língua na boca / a morte no céu da boca /tem gosto de vinho e mel
vou gozando seu sabor:/ por cada um vou morrendo/ vou morrendo devagar/ Amém.
Os versos de Ladainha do Morto foram recitados no velório, no Cemitério do Caju. Nilson Primitivo faleceu no dia 7 de setembro, por complicações de uma embolia pulmonar. Estava com 55 anos.
*As aspas de Nilson Primitivo em negrito são de uma entrevista realizada em junho de
2007, parte dela utilizada no perfil para a Revista Figas.
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