O que foi Alumbramento?

RICARDO PRETTI
29 de Setembro de 2020

Still de “Estrada para Ythaca”

A partir da retrospectiva de parte de nossos filmes acontecendo na cinemateca do MAM, me faço a pergunta: o que foi alumbramento? Já me fiz essa pergunta muitas vezes, em estados de ânimo e vida bem diferentes, mas sempre com o intuito de defender essa experiência que foi (é e será) alumbramento. Sempre senti urgente a necessidade de defender esse espaço de criação, por mais fértil, intenso e natural que tenha tudo ocorrido desde seus primeiros passos. Talvez porque não era possível diferenciar sua criatividade fértil da necessidade de se defender essa criatividade, como se sua força esteve sempre ligada à iminência de seu desaparecimento, como a tensão entre existir e não existir de uma miragem no deserto. Era preciso fazer para não desaparecer.

Mas voltando à pergunta: o que foi alumbramento? Digo, sem pensar muito na precisão dos termos, ou justamente pensando que certos termos nunca são muito precisos, que alumbramento foi um coletivo artístico e foi também uma produtora de cinema. Sempre tentamos entender a diferença entre uma coisa e outra para nos definirmos melhor, mas definir coisas nunca foi nosso forte. Mesmo definir quem eram as pessoas que faziam parte do coletivo/produtora foi, do início ao fim de sua vida, tarefa vã.

Alumbramento, ao seu modo, foi nômade. Teve cinco sedes diferentes ao longo de sua jornada. Começou na Sabiaguaba e depois se arranjou em 4 lugares diferentes do centro de Fortaleza. Eram locais de trabalho e algumas vezes local de moradia também. Definição das coisas realmente não foi nosso forte. A laje do Ivo foi também muitas vezes uma sede pra alumbramento. Esses espaços não foram apenas importantes por concentrar a energia criativa de uma ruma de gente, mas também para dissipá-la pela cidade, na relação com ela mesma. Em cada lugar algo novo era sentido e experimentado. Não consigo imaginar essa experiência de vida e arte acontecendo em outro lugar que não o centro de Fortaleza.

Still de “Flash happy society”

Dizem que você é aquilo que come, pois nós devoramos o centro. Boa parte dessas sedes, e seus arredores, foram locações de filmes nossos e, ao menos, três deles foram inventados por causa desses lugares. O caos do centro refletia o nosso próprio caos. Às vezes uma ilha de edição era também o guarda-roupa do figurino, ou uma sala de produção era o lugar de exibir filmes etc. Tava tudo junto e misturado e o nosso senso de humor era nosso método: “deixe de regular mixaria”, “O dinheiro é pouco, mas a alegria é muita”, “mora aí”, “só sabe quem sofreu” e “eu sou é doido”.

Foram muitos anos que essa viagem durou. Mas pra simplificar ou criar um marco dizemos que foram dez anos. Nesse tempo, fizemos filmes de muitos jeitos. Filme de um realizador sozinho em casa ou filme de 18 realizadores se dividindo em 15 episódios na praia do futuro. Filme com cybershot ou alexa, filme pra ser exibido num cineclube específico ou pra ser exibido em festivais por aí, ou ainda, filme pra ser exibido num desfile de moda ou filme pra ser exibido no museu. Até filme institucional rolou pra pagar umas contas. Mas não era só fazer os filmes, era também exibi-los. Cineclubes como cinealumbramento e cinecaolho foram ações prioritárias. Lançamentos semanais e online de filmes tão diversos como Vida de Paula Gaitán e O sol nos meus olhos de Flora Dias e Juruna Mallon foram parte do nosso investimento em exibição dos filmes que a gente admirava. Também lançamos, nós mesmos, filme numa sala com 500 pessoas de uma só vez, com direito a show na praça e festa num cinema pornô. Teve exposição em museus e intervenções na cidade que foram filmadas. Criamos parcerias e filmes com grupos de teatro, pessoal da música, poetas e filósofos. Enfim, pra mim isso é muita coisa. Vou até parar de lembrar e ir estender umas roupas.

Pausa feita. Volto a me perguntar, agora com um copo de rapariga na mão: o que foi alumbramento? Oficialmente falando, o primeiro filme foi Às vezes é mais importante lavar a pia do que a louça ou simplesmente Sabiaguaba e o último Inferninho. Entre um ponto e outro nada foi reto. Estivemos mais pra prática das curvas, dobras, espelhamentos, fissuras, encruzilhadas e eternos retornos. Nada foi fácil, o caminho difícil foi sempre mais divertido, mesmo com suas dores, dúvidas, brigas etc.

Still de “Às vezes é mais importante lavar a pia do que a louça”

Pensando hoje nesses dois filmes, no primeiro e no último, percebo uma conexão emocionante. As duas histórias têm estrangeiros que encontram um lugar pra ficar, um refúgio da deriva. Me emociono porque é um pouco a nossa-minha história. Às vezes fugir, se recusar a ficar em um lugar, é uma maneira de se reencontrar e se reassentar. Essa fuga que nos torna estrangeiro, mas que é também uma forma de permanência, criação de familiaridade, modificou a forma de olharmos para o mundo à nossa frente, o mundo chamado cotidiano. Estranho cotidiano que possibilitou nossos filmes. Ausência e presença guiando nossos processos, dando em filmes tão díspares como A misteriosa morte de Pérola e O mundo é belo, Casa da vovó e Sábado à noite, ou filmes irmãos como A amiga americana e Meu amigo mineiro.

Mas voltando ao primeiro e último filmes, percebo também a extensão dessa dimensão do cotidiano, mesmo que com diferenças marcantes. Se no Sabiaguaba vemos uma solidão povoada (como disse Alexandre Veras na época), em Inferninho vemos um povoamento de solitários. A casa aparentemente isolada no primeiro filme é povoada pelas vozes das crianças fora de campo, pela presença constante do vento e do sol, enquanto os personagens, jogados num mundo estranho, sentem a ausência inexplicada de seus amigos.

Já Inferninho, um lugar com gente de todo tipo, tem música e bebida e, no entanto, eles estão isolados, não só no espaço fechado do bar (estúdio), mas também nas irresoluções íntimas de cada um. Os personagens de Sabiaguaba, sem ter para onde ir, sentem a expectativa de que tudo ainda pode acontecer, enquanto os personagens em Inferinho viajam pelo mundo e acabam voltando porque tudo que pode acontecer já está acontecendo ali. Sabiaguaba encara o cotidiano com ironia e Inferninho com melodrama. A ironia como fórmula pro encontro/desencontro de estar presente sentindo a ausência. O melodrama como fórmula pro encontro/desencontro de estar ausente sentindo a presença. Entre a ironia e o melodrama encontro a melhor ideia do que foi Alumbramento.



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