ANDRÉ RENATO
O livro Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV tem sido uma das melhores referências para estudos que relacionem arte, cultura e política no Brasil da segunda metade do século XX, desde a sua 1ª edição no ano 2000. Nele, o professor e pesquisador Marcelo Ridenti desenha a trajetória de diversos artistas e movimentos artísticos – majoritariamente de esquerda (socialistas e comunistas) – que vinham desde os governos Juscelino Kubitschek e João Goulart (1956-1964: período em que se começou a sonhar com uma revolução “à brasileira”), passaram pelos traumas do golpe e da ditadura civil-militar que se instalou entre 1964 e 1985, e se reinventaram (como puderam e quiseram) na Nova República. Uma das carreiras mais consistentes durante todo esse espaço de tempo que engloba mais de 60 anos – até os dias atuais – é a do cineasta Geraldo Sarno, falecido agora em 2022. Uma prova disso é o longa documental O Último Romance de Balzac, realizado em 2010 (penúltimo filme de Sarno) e que dialoga com preocupações éticas e estéticas que o diretor traz desde o seu debute, com Viramundo (1965).
Sarno fez seus primeiros documentários como membro da “Caravana Farkas”, projeto do empresário e fotógrafo húngaro-brasileiro Thomaz Farkas, que juntou vários jovens de cinema e do jornalismo (além de Geraldo: Sérgio Muniz, Paulo Gil Soares, Maurice Capovilla, Eduardo Escorel, Lauro Escorel, Jorge Bodansky, Vlado Herzog, dentre outros) e, dos anos 1960 aos 1980, viajou Brasil afora e adentro em busca do “autêntico homem do povo” brasileiro, o qual, segundo artistas do CPC e do Cinema Novo anteriores ao golpe de 64, deveria encabeçar a “Revolução brasileira”. É claro que há muito paternalismo e idealização nessa imagem do working class hero (do campo ou da cidade), características do que Ridenti entende como um “romantismo revolucionário” daqueles artistas e agitadores culturais que vinham, em sua esmagadora maioria, das camadas médias urbanas intelectualizadas. Ridenti prefere não usar o termo “populismo” para se referir a eles, uma vez que essa palavra traria um sentido de manipular o engajamento político da população contra os seus próprios interesses.
É complicado falar em equilíbrio e moderação quando pensamos em expressões da visão romântica do século XIX, mas o fato é que Geraldo Sarno sempre foi um dos cineastas (documentaristas) mais objetivamente equilibrados ao impôr menos suas expectativas e teses sobre o entrevistado, seu universo social, e deixá-los mais à vontade para se manifestarem por si sós – na medida em que isso seja possível a partir dos meios cinematográficos, principalmente nos politizados anos 60-70, quando pouco se acreditava na velha ontologia da imagem “pura” de André Bazin, de resto, irremediavelmente enviesada. A força expressiva de falas e gestos (principalmente gestos de trabalho, assim como os objetos produzidos), vinda dos depoentes em Sarno, empresta-lhes um caráter até poético, objetivamente poético, enquanto seres, coisas e vivências que apontam para realidades e verdades sempre mais abrangentes – ou mesmo transcendentes. Isso acontece graças a uma relação específica e positiva que o documentarista estabelece com o seu objeto de estudo, relação essa que se expressará nas próprias escolhas formais do filme. É o que vemos nos curtas dirigidos para o ciclo Farkas, particularmente em O Engenho (1970), Vitalino / Lampião (1970), Viva Cariri (1970) e Casa de Farinha (1970). E não será fundamentalmente diferente em O ÚItimo Romance de Balzac, conforme veremos mais adiante.
Geraldo Sarno sempre teve para si, com muita clareza, uma lição que outro grande documentarista da sua geração, Eduardo Coutinho, só aprenderia após trabalhar no Globo Repórter durante a segunda metade dos anos 70. Nas palavras de Coutinho, entrevistado por Ridenti: “O que eu aprendi, fazendo filmes na Globo, é que falando com as pessoas (…), pouco importa qual o assunto, eu fui sentindo o prazer de descobrir no outro, não o que eu quero que ele diga, mas o que ele de fato pensa e diz” (RIDENTI, 2014, p. 287). Um contra-exemplo radical dessa postura pode ser encontrado no documentário coletivo sobre a Revolução dos Cravos em Portugal, As Armas e O Povo (1974), do qual Glauber Rocha participa, dentre outros cineastas engajados lusitanos. Uma resenha publicada na Folha de S. Paulo, citada por Ridenti, afirma que o diretor de Barravento “dispara perguntas como balas de metralhadora, interrompe respostas, bate nos ombros do entrevistado. Intimida, por vezes, como faz com a mulher que diz que não irá à passeata. A rajada de perguntas é recheada de argumentos de condenação à mulher” (idem, ibidem, p. 284).
Jean-Claude Bernardet, em Cineastas e imagens do povo, afirma que “as imagens cinematográficas do povo não podem ser consideradas sua expressão, e sim a manifestação da relação que se estabelece nos filmes entre os cineastas e o povo. Essa relação não atua apenas na temática, mas também na linguagem” (BERNARDET, 2003, p. 9). São particularidades dessa relação entre o entrevistador e o entrevistado ou depoente que fazem a grandeza do cinema documental de Geraldo Sarno, do seu primeiro documentário (Viramundo) ao último (O Último Romance de Balzac, 2010), ainda que neste não tenhamos imagens do “povo” propriamente dito – as classes mais populares. Vamos a ele, então.
O Último Romance de Balzac trata daquela que seria a obra derradeira do autor da Comédia Humana, Honoré de Balzac (1799-1850), um dos maiores escritores da literatura francesa e universal, que se encontra entre os sistematizadores do realismo literário no século XIX, assim como do gênero do romance moderno, cujo retrato ferino da ascendente burguesia europeia teria sido fonte de inspiração até mesmo para Marx e Engels. O título do último romance balzaquiano seria Cristo espera por ti, psicografado pelo médium brasileiro Waldo Vieira (parceiro de Chico Xavier em diversos trabalhos) e publicado em 1965. O filme se estrutura em dois blocos que vão se intercalando ao longo de toda a projeção: entrevistas em primeira mão feitas com o médico e dentista Waldo Vieira (1932-2015), autor de destaque dentro do espiritismo brasileiro, e com o pesquisador em psicologia Osmar Ramos Filho, também escritor espírita, que publica em 1994 um estudo de fôlego da obra psicografada por Vieira: O avesso de um Balzac contemporâneo: arqueologia de um pasticho; o segundo bloco, por sua vez, traz uma versão cinematográfica resumida, no estilo do cinema silencioso (P&B, sem som diegético) e encenada pelo próprio Sarno, do romance balzaquiano A pele de Onagro (“La peau de Chagrin”), que Ramos considera fundamental para provar a autenticidade de Cristo espera por ti enquanto obra produzida por Honoré de Balzac.
Ambos os blocos não são distribuídos de maneira rigorosamente homogênea, com leve pendor preferencial para o bloco narrativo-ficcional, cujo desfecho ocupa os 10 minutos finais do filme (cuja duração total é de apenas 1 hora e 14 minutos), após o qual sobem os créditos de encerramento, sem que se volte a Vieira e Ramos para quaisquer palavras de conclusão. Sem querer me ocupar preponderantemente de elementos paratextuais para analisar o filme enquanto texto audiovisual, esse desenlace um tanto quanto inesperado parece manifestar a intenção principal, declarada no texto do projeto do documentário, em investigar menos a suposta autenticidade do romance psicografado, e mais a gênese de uma leitura e interpretação peculiares e originais da obra “legítima” do autor francês, particularmente de A pele de Onagro. Geraldo Sarno também propõe investigar os processos criativos de Balzac, no que este possui de “irracional”, “mágico” e “inexplicável”, o que levará a uma proposição a respeito de uma natureza filosófica do objeto de arte – da qual não se exclui o próprio filme documentário.
As entrevistas com Vieira e Ramos, realizadas separadamente, são conduzidas e encenadas com atenção e destaque especial para esses dois personagens, com predominância do primeiro (e primeiríssimo) plano, poucas perguntas por parte de Sarno e quase nenhuma interrupção nas falas dos dois sujeitos (assalto ao turno do interlocutor, para colocar em termos linguístico-pragmáticos). Esses elementos da mise en scène atestam a sabedoria de Geraldo Sarno em saber ouvir (e ver) como ninguém os seus entrevistados/depoentes. Essa relação entre o documentarista e seus objetos de pesquisa humanos faz com que Sarno, mesmo em seu último filme documental, já entrando na segunda década do século XXI, alcance com eficácia privilegiada o velho sonho revolucionário da geração do CPC, do Cinema Novo e da Caravana Farkas, ainda que à sua própria maneira: um retrato franco, honesto, da realidade brasileira e do brasileiro real. Reforço o termo “real”, pois em O Último Romance de Balzac não encontramos aquele modelo heroico, até messiânico, do representante de um povo imaculado em sua identidade cultural de “raiz” anti-imperialista e decolonial, pronto para liderar a Revolução.
Waldo Vieira e Osmar Ramos Filho advêm, visivelmente e em todos os seus aspectos, das classes médias urbanas intelectualizadas: o primeiro é médico e dentista; o segundo é psicólogo e pesquisador acadêmico em psicologia clínica; ambos são escritores espíritas com posições de prestígio nos meios religiosos que frequentam. Vieira é fundador da linha da “conscienciologia” dentro do espiritismo, a qual possui um vasto centro de estudos localizado em Foz do Iguaçu (PR) – só este último fato, segundo o texto do projeto do filme, já daria assunto para um documentário (o filme abre com imagens aéreas do local). E ambos possuem, em princípio, relações mais orgânicas com as classes populares do que possuíam os artistas e intelectuais do CPC que pretendiam ensinar o povo a se insurgir (ainda que essas relações mais orgânicas não tenham, logicamente, os mesmos propósitos), pois Vieira e Ramos pertencem a uma das denominações religiosas de maior entrada e com maior engajamento prático em todo o espectro social brasileiro: o espiritismo kardecista.
A doutrina espírita nasceu na França, no século XIX, a partir das publicações de Allan Kardec (1804-1869, pseudônimo do professor, pedagogo e tradutor Hyppolyte Léon Rivail). Para o seu criador, tratava-se de uma religião, filosofia e ciência a um só tempo, e é essa compleição científica que promoverá uma difusão rápida das ideias espíritas tanto na Europa quanto no Brasil, em princípio entre grupos mais elitizados. No entanto, o kardecismo acabaria assumindo por aqui uma identidade hegemônica especificamente brasileira, graças a dois fatores: uma entrada peremptória entre as camadas populares, principalmente através da ação do médium Francisco Cândido Xavier (Chico Xavier, 1910-2002), ele mesmo oriundo das classes trabalhadoras, junto do qual atuou Waldo Vieira; e o influxo do elemento religioso, a partir de Bezerra de Menezes (1831-1900), que mais tarde adquiriria efeitos sincréticos, com Chico Xavier. Na verdade, o elemento popular e o religioso estão intimamente conectados, uma vez que Xavier ajudou a popularizar a doutrina, promovendo um diálogo sistemático entre a teologia católica e o espiritismo científico kardecista de extração francesa, no começo antagônicos – principalmente nos tempos do Segundo Império, quando o Catolicismo era a religião oficial do Estado brasileiro (essa história é contada no livro de Sandra Jacqueline Stoll, Espiritismo à brasileira).
Desse modo, embora a religião espírita não seja o tema central de O Último Romance de Balzac, é interessante destacar que o filme, mesmo tardio na obra de Geraldo Sarno, não abre mão da possibilidade de ser inserido naquele que foi o projeto da geração em que o cineasta se formou: a busca por uma identidade brasileira diferencial. É claro que, aqui, essa inserção acontece de maneira bastante, digamos, contemporânea (a acomodação das classes na ordem neoliberal globalizada): a união vivencial das camadas populares e das camadas médias intelectualizadas não ocorrerá segundo a agenda revolucionária socialista, a partir de uma imagem romântico-idealizada do “homem do povo” e de abnegados artistas-pensadores que o orientarão rumo à consciência de classe e à ação insurgente, mas segundo a doutrina religiosa de um espiritismo sincrético (em diversas denominações, misturado ao catolicismo e a religiões afro-brasileiras) genuinamente nacional.
Religião (ou religiosidade, isto é, o foco colocado não na dimensão doutrinário-institucional, mas na experiência religiosa a partir dos próprios sujeitos que a professam) já esteve presente na filmografia de Sarno em outros momentos. Em Viramundo (1965), as vivências de fé (cristianismo e religiões afro-brasileiras) aparecem dentro de um discurso que era o dominante na geração de cineastas politicamente engajados à esquerda entre os anos 50 e 70: religião é “alienação”. Jean-Claude Bernardet, em ensaio para a antologia coletiva O cinema no século (organizada por Ismail Xavier), define bem essa visão, aos olhos daqueles diretores: “(…) o comportamento religioso (…) resulta da desorganização social, desemprego, insuficiência de inserção social. As pessoas desaguam num comportamento religioso resultado de uma situação social alienante e produtora de alienação” (BERNARDET, 1996, p. 187). Contudo, já nos anos 1970, Geraldo Sarno mudaria de ideia e passaria a contemplar a experiência religiosa com outros olhos, em Iaô (1976), que trata do Candomblé: “(…) a religião, longe de ser fonte de alienação, é uma forma de organização popular, a preservação de valores tradicionais, a resistência popular contra o avanço do capitalismo e a ditadura Getúlio Vargas” (idem, ibidem, p. 189).
No mesmo texto, Bernardet tenta distinguir, no cinema brasileiro, os filmes sobre religião e os filmes religiosos. A conclusão à qual chega é que, nos primeiros, a fé não passa de um objeto de estudo, o assunto abordado; enquanto que, nos segundos, o sentimento religioso transfigura a própria forma fílmica: “A questão religiosa informa a própria estrutura e a linguagem dos filmes” (idem, ibidem, p. 196). A religião, em O Último Romance de Balzac, não chega sequer a ser tema principal do documentário; mesmo assim, é possível dizer que o penúltimo filme de Geraldo Sarno é profundamente religioso, uma obra orientada pela fé. Essa leitura não se baseia tanto na evidente e franca reverência que a própria mise en scène demonstra guardar em relação aos dois entrevistados (sem necessária adesão por parte do cineasta, mas um reconhecimento genuíno do valor, digamos, fenomenológico, das experiências dos dois homens), mas na importância diferencial que o diretor concede ao bloco narrativo-ficcional (na forma e no conteúdo), através do qual procurará apresentar e defender a tese central do filme, que se anima de uma singela fé: não em elementos metafísicos, mas na natureza da própria obra de arte, dotada de uma transcendência que lhe é própria. Vamos a ela, então.
O texto do projeto de O Último Romance de Balzac traz um dado que se torna curioso, ao cotejarmos com o documentário efetivamente realizado: Geraldo Sarno não pretendia filmar, ele mesmo, uma versão cinematográfica (resumida) do romance balzaquiano A pele de onagro, mas sim trazer trechos de diferentes adaptações já feitas (são enumerados 9 filmes no texto), que vão desde o francês La Peau de Chagrin (1909), de Albert Capellani, até o telefilme homônimo gravado em 1960 para a TV francesa. Quaisquer que tenham sido os motivos para essa mudança (talvez os produtores não lograram ter acesso aos filmes), a “justiça feita pelas próprias mãos” de Geraldo Sarno traz efeitos que contribuem enormemente para a obra, os quais jamais poderiam ser alcançados com imagens de arquivo, como demonstrarei adiante.
Uma palavra que ajuda a amarrar bem o documentário, como um todo, é “pastiche”, já presente no título do estudo do romance balzaquiano psicografado por Vieira, empreendido por Ramos, e que o texto do projeto declara ser a principal fonte de inspiração para o filme de Sarno: O avesso de um Balzac contemporâneo: arqueologia de um pasticho (grifo meu). Nas falas, expressões faciais e gestos de Ramos, derrama-se copiosamente o entusiasmo que sente quanto às semelhanças entre o estilo literário e citações presentes em Cristo espera por ti e aqueles que podem ser rastreados nas outras obras de Honoré de Balzac. O pesquisador baseará nesse ponto toda a sua argumentação em defesa da “autenticidade” do romance psicografado (que, no entanto, nunca é admitida explicitamente durante todo o documentário), principalmente na citação da pintura do holandês Paul Potter (1625-1654), feita por Vieira em Cristo espera por ti e por Balzac em A pele de Onagro. Tomando igualmente um destino trágico que o próprio Potter teve em sua vida, Ramos defenderá a sua interpretação original do romance de Balzac, identificando como duplos um do outro Paul Potter e o protagonista Rafael de Valentim. E, uma vez que a fortuna crítica balzaquiana já admitiu Valentim como um alter ego do próprio Balzac, a conclusão é que as figuras do pintor holandês e do romancista francês também se correspondem de maneira igualmente simbólica.
A leitura única feita por Ramos, totalmente à margem dos circuitos de legitimação crítico-acadêmica, é o que mais encantou Geraldo Sarno, admitidamente no texto do projeto e visivelmente no filme. A partir dessa leitura, o cineasta desenvolverá a sua própria visão sobre a natureza da criação e da obra artísticas, essas sim temas centrais do documentário O Último Romance de Balzac. Reproduzo abaixo a sinopse de A pele de Onagro, que pode ser lida no projeto do documentário:
O romance A pele de Onagro, de Balzac, conta a história de Rafael de Valentim que, arruinado e desesperado, é salvo do suicídio por um antiquário, que lhe oferece uma misteriosa pele de onagro. Ela se encontra na parede oposta a um quadro que representa Jesus Cristo, pintado por Rafael Sanzio. Trata-se de uma pele simbólica, pouco flexível e dotada de poderes mágicos, na qual se encontra uma inscrição misteriosa: SE ME POSSUÍRES, TUDO POSSUIRÁS. MAS TUA VIDA ME PERTENCERÁ. DEUS ASSIM O QUIS. DESEJA, E TEUS DESEJOS SERÃO SATISFEITOS. MAS REGULA TEUS DESEJOS PELA TUA VIDA. ELA ESTÁ AQUI. A CADA DESEJO, DECRESCEREI, COMO OS TEUS DIAS.QUERES-ME? TOMA. DEUS TE ATENDERÁ.
Dotada do poder de realizar todos os desejos de quem a possui, no entanto, a cada desejo cumprido, encolhe e diminui os anos de vida do possuidor. Seu tamanho representa a esperança de vida daquele que aceita este contrato. O velho e misterioso antiquário adverte ao jovem Rafael que QUERER e PODER levam o homem infalivelmente à morte. Somente o SABER “coloca nossa frágil organização num perpétuo estado de calma”.
O projeto cita ainda um trecho do próprio romance:
“Minha única ambição”, diz o velho antiquário, “tem sido ver. Ver não é saber? Oh! Saber, rapaz, não é gozar intuitivamente? Não é descobrir a substância mesma do fato e apoderar-se essencialmente dele? Que é que resta de uma posse material? Uma ideia.”
Por fim, o texto do projeto declara (os grifos são dos próprios autores):
Poderíamos dizer que nossa única ambição, no documentário, é conseguir plasmar esse pensamento do velho antiquário que, a nosso ver, resume a “filosofia” de Balzac, seu método de criação, sintetiza o núcleo irredutível de seu próprio de compreender (sic) e recriar o mundo em A Comédia Humana.
Em consonância com a semiologia de Roland Barthes, que destaca o texto como entidade praticamente independente, em detrimento do autor e da intencionalidade autoral (a língua é um sistema rigidamente codificado a partir de consensos sociais; os processos de significação extrapolam muito o poder individual de controlá-la), e em consonância também com as teorias da recepção nos estudos literários, que destacam a importância do leitor na atribuição de significados à obra, Geraldo Sarno entende a contribuição artística de Balzac não em um sentido de expressividade individual lírica ou político-ideológica (o “querer” e o “poder”), mas enquanto um demiurgo muito especial que (re)cria o mundo em forma de literatura, a partir de um saber adquirido sobre o mundo “real” através do “ver”, após o qual não restará do mundo mais do que uma ideia dentro do texto literário – o que já é mais do que suficiente, pois disso advém o “gozo intuitivo” (lembremos mais uma vez: Honoré de Balzac, grande descritor da burguesia europeia, inspirador de Marx e Engels). Assim, o texto literário vale por si só, independentemente de sua autoria, digamos, genética, pois vale por si só o substituto do mundo que se encontra plasmado em forma (estilo) de linguagem, de texto. É evidente a identificação, mesmo que parcial, entre essas ideias e os projetos do CPC, do Cinema Novo e da Caravana Farkas em (re)criar o Brasil plasmado em cinema, que estão na base de toda a carreira de Sarno.
Portanto, pouco importa, na verdade, a “autenticidade” genética do romance de Balzac psicografado por Waldo Vieira, uma vez que a criação balzaquiana tem valor inquestionável em si mesma, pelo mundo que carrega dentro de si e pelo modo como cria e recria esse mundo – modo esse não rastreável através de uma suposta intencionalidade autoral ou qualquer “prova” paratextual, mas através da própria estilística do texto escrito, perfeitamente inteligível a partir do próprio texto, dentro do próprio texto, uma vez que o mundo se apresenta enquanto língua, enquanto linguagem, como Osmar Ramos Filho nos explica com tanto entusiasmo. Por isso, o pastiche, segundo o documentário de Geraldo Sarno (e também de acordo com o livro de Ramos), deixa de ter um sentido depreciativo e adquire uma nova grandeza, a de apropriação de uma obra cuja posse nunca foi, é ou será de pessoa alguma. É por isso que também foi uma escolha muito feliz, por parte do cineasta, em filmar A pele de Onagro na forma de um pastiche do cinema silencioso anterior a 1930 – plasmando, dessa forma, o pensamento do antiquário. Dentro dessa lógica, poderíamos perfeitamente afirmar que Geraldo Sarno teria “psicografado” (psicofilmado?) o último filme de F. W. Murnau: o próprio texto do projeto fala das semelhanças entre a escrita psicografada e a escrita automática, ou a escrita na qual o autor sente-se “possuído” pelo texto, pela história, pelos personagens.
Por fim, é por isso também que O Último Romance de Balzac é um filme religioso, uma obra de fé, na acepção de Bernardet. Fenomenologicamente, a fé é uma forma de saber, já que só podemos possuir, experimentar/vivenciar a ideia (nunca a matéria, a “verdade” concreta e material), a crermos no antiquário de Balzac. Portanto, o documentário de Geraldo Sarno é uma franca reverência ao saber de Balzac, de Vieira e de Ramos. Mas também uma reverência à natureza vestigial de todo texto, de toda produção cultural do engenho humano, seja ela literária, audiovisual ou de qualquer outro tipo, vestígio de um mundo (re)criado por um “autor”, e apropriado pelos seus leitores ou espectadores mais como uma ideia (digna de fé) do que como matéria, em um processo transfigurador de abstração – e também de re-criação, não menos autoral. Parece confuso ou contraditório? Lembremos a epígrafe escolhida para o documentário, de autoria (autoria?) do poeta francês Paul Valéry: “Nada, talvez, mais abstrato do que aquilo que é”.
André Renato
Professor, pesquisador em cinema e literatura, mestre em letras pela UNIFESP
_
Informações
[email protected]