Percepções da Cinefilia Anos 80

Por: PEDRO LOVALLO

Na ocasião da mostra Três Décadas Brasileiras Pela Cinefilia: Entre Listas e Filmes, realizada ainda em regime online pela Cinemateca do MAM em 2021, eu já havia escrito um texto introdutório, no qual explicava também um pouco sobre meu trabalho enquanto organizador dessas votações de onde nasceram a seleção de filmes que compunham a mostra. Agora, com o retorno às sessões presenciais, foi possível expandir o número de filmes: se antes foram exibidos apenas os 3 títulos nacionais mais lembrados de cada votação realizada até então, totalizando 9 filmes; agora temos a possibilidade de exibir 20 filmes, entre brasileiros e estrangeiros, selecionados a partir da votação mais recente, de melhores filmes da década de 1980. As únicas alterações feitas em relação aos 20 filmes mais votados foram feitas para evitar a repetição de cineastas, substituindo o segundo filme de cineastas que apareceram com dois títulos nos 20 primeiros pelos 2 filmes brasileiros mais votados de fora do top 20. 

A votação de melhores filmes dos anos 80 contou com 228 participantes, entre críticos, pesquisadores, cineastas e cinéfilos em geral. Para entender melhor seus resultados, é importante contextualizar algumas coisas: sobre o corpo de votantes em si, é possível observar várias coisas interessantes, mas o principal talvez seja o contraste geracional. Embora boa parte dos votantes sejam pessoas abaixo dos 30 anos (e representem projetos de crítica mais recentes como a Vertovina, a Limite, a Contrabando, a Imagem e Palavra, entre outros), existem muitos participantes um pouco mais velhos que exploraram as possibilidades da internet para a crítica de cinema em veículos como a Contracampo e a Cinética. 

Observando a lista completa de filmes citados, é perceptível que alguns movimentos canônicos se mantém (Era Uma Vez na América, Faça a Coisa Certa, O Dinheiro), mas se misturam a preferências mais específicas, que podem ser vistas em escolhas dentro da filmografia de determinados cineastas (Um Tiro na Noite, e em menor escala Dublê de Corpo e Vestida Para Matar, coroados como os verdadeiros triunfos autorais de Brian De Palma, em detrimento de títulos mais populares como Scarface e Os Intocáveis); ou pela admiração por filmes e autores que provavelmente não tem a mesma popularidade ao redor do mundo (Não Brinque Com o Fogo ou os filmes de Patrick Tam). 

Não é fácil analisar com precisão a genealogia das preferências cinéfilas desse grupo, e num mundo de telas onipresentes é ainda mais difícil mapear de onde vem certas influências. A internet obviamente desempenha um papel importante na cinefilia do século XXI: se a Contracampo (que esteve ativa do fim dos anos 90 até o começo da década de 2010) e outros contemporâneos se aventuraram por esse terreno ainda pouco explorado à época, ao longo dos anos também houve um boom de blogs pessoais, podcasts, canais de Youtube, redes sociais, portais em formatos mais tradicionais e, claro, o Letterboxd, elemento que não pode ser ignorado ao fazer qualquer tipo de observação sobre a cinefilia de hoje. 

Não me parece um equívoco dizer que a geração da Contracampo ditou algumas tendências ainda presentes na cinefilia brasileira de 2022: se a reflexão sobre cinema nos anos 2000 fosse pautada apenas pelos grandes portais e jornais, talvez o pontapé inicial para a consagração de cineastas como Carlos Reichenbach entre esse grupo de votantes nunca tivesse acontecido. E, por fim, a relação do público com os filmes hoje, com uma maior facilidade de acesso a determinados filmes (seja por meios oficiais, como serviços de streaming; seja por fóruns de compartilhamento e sites de download em geral, que complementam os catálogos muitas vezes insuficientes desses serviços), certamente é muito diferente – para o bem ou para o mal – da maneira como os cinéfilos se relacionavam com eles alguns anos atrás.

Mas se o cinema ainda é uma arte que convida à fruição coletiva, à experiência da sala cheia, da telona que hipnotiza o público – e sim, ainda é, e justamente por isso me parece tão importante que as listas da votação sirvam não apenas enquanto material de pesquisa, mas que também abasteçam uma mostra, uma oportunidade não só de facilitar o acesso aos filmes, mas também de reunir pessoas em volta deles, propor uma experiência coletiva –, é importante também falar do papel das mostras e exibições de repertório na construção desses olhares. Peguemos, por exemplo, a grande popularidade de cineastas como Tsui Hark e Patrick Tam entre esse grupo de 228 votantes. O primeiro apareceu no top 20 da votação dos anos 80 – e, consequentemente, foi incluído na mostra – com Não Brinque Com o Fogo, que até o momento em que escrevo este texto foi marcado como assistido por pouco mais de 4000 usuários do Letterboxd; enquanto Tam, mesmo não tendo conseguido uma vaga nos 20 primeiros, é um cineasta relativamente desconhecido do grande público que teve muitos títulos diferentes citados (6) e cujo filme mais lembrado, Nomad, ficou na 22ª posição entre os quase 800 que receberam votos. Mais uma vez utilizando a popularidade no Letterboxd como referência: Nomad foi “logado” por apenas 2000 pessoas no site, e mesmo assim ficou a frente de obras muito mais populares, como O Iluminado, que vem logo atrás, na 23ª posição, e que foi assistido por mais de um milhão de usuários. Justamente por isso é importante lembrar que se trata de um grupo de 228 votantes, que não representa e nem poderia ambicionar representar totalmente a cinefilia do país, e, sinceramente, não me parece possível existência de um organismo cinéfilo unificado, uma representação perfeita das preferências de toda uma cinefilia local. Seu valor talvez esteja na reunião de diversos olhares, de diversas cinefilias; não de todas, mas de algumas. Uma votação em que um filme razoavelmente desconhecido de Hong Kong supera em pontos um dos grandes clássicos do cinema de gênero, dirigido por um dos cineastas mais aclamados da história (e falado em inglês, com atores conhecidos do grande público, etc), deixa claro que se trata de um nicho. Um número maior de listas sempre vai favorecer os consensos, os filmes mais conhecidos, então talvez 228 tenha sido o número perfeito de participantes, o alinhamento ideal de fatores para que um filme como Não Brinque Com o Fogo se destacasse; e um número insuficiente para O Iluminado atingir todo o potencial de sua popularidade. 

Mas de onde vem essas tendências? A popularidade de Tsui Hark e Patrick Tam (entre outros) talvez possa ser justificada pela realização da mostra Cidade em Chamas: O Cinema de Hong Kong em 2018, onde tanto Não Brinque Com o Fogo quanto Nomad foram exibidos. Não posso falar pelos moradores das outras cidades agraciadas com a mostra, mas pelo menos nas sessões que ocorreram no Rio de Janeiro foi bastante perceptível o quanto ela mobilizou os cinéfilos da minha geração, que estavam tendo seu primeiro contato com vários daqueles filmes e cineastas. Embora tenha ocorrido em apenas três cidades (Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília), acredito que essa mostra tenha sido um evento marcante não só para aqueles que puderam comparecer às sessões, mas que também teve seu alcance amplificado pela internet, com cinéfilos de outras cidades e estados tomando esses filmes como recomendações e correndo atrás de meios para assisti-los. Também é importante citar que, ao fim da mostra, as legendas em português feitas para as sessões foram disponibilizadas em fóruns de compartilhamento de filmes, facilitando o acesso a esses filmes por parte dos cinéfilos que não puderam acompanhar o evento presencialmente.

A mostra Cidade em Chamas: O Cinema de Hong Kong foi apenas um exemplo entre muitos possíveis; uma pesquisa mais aprofundada poderia deixar mais evidente o papel de mostras e sessões de repertório tanto em âmbito local (filmes que foram votados por pessoas da mesma cidade e que foram exibidos em algum centro cultural local nos últimos anos) quanto nacional (uma mostra que, mesmo limitada a algumas cidades, consegue romper com as barreiras geográficas graças à internet, como é o caso da mostra de filmes de Hong Kong já citada). Seguindo a mesma ideia de união e coletividade, também é interessante reparar nas semelhanças e diferenças entre listas de colaboradores dos mesmos veículos. Acredito que uma observação mais atenta dessas particularidades possa facilitar a identificação de certos recortes críticos e movimentos internos de cada veículo.

É curioso reparar nas reações aos resultados da votação nas redes sociais, porque alguns filmes que são recebidos por pessoas “de fora” com grande surpresa, não parecem surpreender vários participantes e pessoas mais próximas da votação; assim como a ausência de alguns títulos mais populares que para muitos são marcos culturais dos anos 80 (por exemplo, Blade Runner, que não ficou sequer entre os 50 mais votados) acabam surpreendendo essas pessoas mais distanciadas do contexto da votação. Acho que isso resume bem toda essa questão de visões diferentes e de quantos e quais olhares são representados por esses 228 participantes. É sempre muito complicado falar em cânone, porque existem essas preferências muito particulares que dificilmente se repetiriam em outros contextos, e mesmo o próprio conceito de cânone não é definitivo: quantos cânones existem? Quantos cânones podem existir? Sobre essa questão, recomendo a leitura deste texto escrito por Adrian Martin, que acredito que seja um bom primeiro passo (e um excelente complemento às minhas palavras) na tarefa de confrontar as listas geradas pelas votações. Nele, o autor busca, se não responder a essas perguntas, ao menos tentar definir certos padrões diversificados de cânone (por ser um texto escrito há muitos anos, algumas definições ou exemplos podem parecer datados, e provavelmente seria possível atualizar ou expandí-las a partir da observação de tendências da cinefilia digital nos últimos anos; mas por ora, é mais do que o suficiente para iniciar as reflexões sobre o assunto).

Acredito então que a questão que fica – e não uma questão com respostas fáceis ou definitivas, apenas algo para deixar em aberto o convite à reflexão – seja: quantas cinefilias cabem nesse recorte de 228 participantes? O primeiro passo para sequer cogitar respondê-la é avaliar de perto o “cânone” que se estabeleceu a partir desses 228 olhares. Espero que aproveitem a mostra Percepções da Cinefilia: Anos 80

Lista Os melhores filmes da década de 1980 – Votação da cinefilia brasileira
Listas individuais

A Cinemateca do MAM tem patrocínio da Samambaia Filantropias.

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