Permanência de nuvens errantes

Pelas auroras imobilizadas/… /Pela vida a pulsar dentro de tudo/
Pelas nuvens errantes; pelos montes/…/ Na sucessão de imagens. O cinema/
É o que não se vê, é o que não é/Mas resulta: a indizível dimensão.
Vinicius de Moraes, in Tríptico na Morte de Sergei Eisenstein

Íntegra do texto de Ronaldo Werneck publicado no folder da exposição “Zequinha Mauro”

Humberto Mauro em “Engenhos e usinas”. Foto de Zequinha Mauro.

Fotografia autoral de Zequinha Mauro, feita possivelmente na ocasião da filmagem de Carro de Bois.

Com negativos cuidadosamente conservados há mais de meio século, essas fotografias surgem de leves cintilações de luz – luz de Minas, natural e única. Instantâneos de rara suavidade, são momentos da mata essas imagens, revelações da roça: bucólicas e belas. Contemplá-las é ver, mesmo em sua aparente ausência, o variar do verde que vaza da claridade para demarcar as zonas de sombra. Há em todas um discreto halo de delicadeza – fruto de uma certa “empatia”, de uma cúmplice contemplação – que lhes dá uma aura de transcendente simplicidade. 

Sob um céu sempre ponteado de nuvens, a natureza parece num à vontade de quem foi surpreendida no dia-a-dia. Há um quê de profundidade de campo, de long-shot, de still, de fotos de cena. Não à toa, têm um quê de cinema essas imagens. Como a do plano geral de Humberto Mauro de costas, aos pés da árvore gigantesca, fitando o campo vasto e parado – foto (1956) de Zequinha Mauro, still extraído da abertura do documentário Engenhos e Usinas, e considerado por Glauber Rocha como “a raiz do enquadramento brasileiro”.  

Na plenitude dos 80 anos, Zequinha (José Almeida Mauro, Cataguases, 22.03.1921) é ainda hoje referência para os maiores fotógrafos do cinema brasileiro. Mestre do preto-e-branco – o verdadeiro, permeado por nuances de cinza, aquele “p&b tão rico em detalhes quanto o colorido”, como ele diz – Zequinha é o elo entre os desbravadores dos anos 30/40, com quem trabalhou, e a geração cinemanovista pós anos 60. Todos iniciaram seu aprendizado com a imagem fixa antes de passar ao cinema. Zequinha, não. Seu caminho vai se definindo à medida que começa a extrair da experiência com o cinema seus perfeitos enquadramentos fotográficos. 

Fotografia e cinema são extratos de luz, escrituras luminosas. A diferença é o movimento, pois ambas as técnicas utilizam os cristais de prata, fotossensíveis, existentes na emulsão do filme. Como perceberam seus inventores, os irmãos Lumière, a novidade do mecanismo do cinematógrafo é possibilitar o aparecimento de uma imagem antes que a anterior se apague na retina. O espectador é iludido pela projeção de fotogramas fixos, diferentes entre si, que passam a sensação de movimento.  Fotogramas e movimento à parte, a essência é basicamente a mesma – e é comum vermos um profissional de fotografia transformar-se em fotógrafo de cinema.

O incomum é acontecer um “movimento” às avessas. A partir dos anos 40, Zequinha assina a fotografia e a montagem da maioria dos documentários dirigidos por Humberto Mauro para o INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), além de seu último longa-metragem, O Canto da Saudade. Tem ainda grande destaque em A Velha a Fiar – um dos clássicos da filmografia do pai, primorosa aula de decupagem onde Zequinha se desdobra na fotografia, montagem, sincronização e na trucagem. Ao longo de mais de 50 anos, as filmagens realizadas para o INCE foram um exercício para o seu reencontro com a fotografia, arte que lhe dá maior prazer e onde se descobre mestre. 

Do cinema à fotografia extática: eis a trajetória inusitada de Zequinha, o primogênito e um dos mais assíduos parceiros de Mauro. De pai para filho, para filhos; e para irmão, irmãos; e mulher e nora e genro e neta e sobrinhos-netos: o conceito de família sempre foi tão arraigado nos Mauro que extrapola para o universo cinematográfico – a força por excelência de todo o clã. Um plano-sequência em família, como num grande set em constante atividade. Ao partir para a fotografia, Zequinha de certa forma se “liberta” do pai, da constante parceria – e passa a ser o criador por excelência de suas próprias imagens. 

Ele transforma-se então no meticuloso construtor dessas nuvens errantes que delimitam permanentemente os céus de seus primorosos enquadramentos. Nuvens acentuadas por uma filtragem que remete à arte maior de Gabriel Figueroa, com suas nuvens fantásticas filtradas sobre os céus do México. Sim, pela filtragem, por barrarem a luz mais azul que vaza do céu, realçando o branco, essas nuvens lembram Figueroa. Mas só na perfeita assimilação da técnica, pois essas nuvens – do Zequinha! – delimitam um espaço onde nada está solto: marcas do poder de um enquadramento que nasceu clássico, perpetuado por exemplar inventividade.

“Mas depois que o tempo passar/sei que ninguém vai se lembrar/que eu fui embora./Por isso é que eu penso assim:/se alguém quiser fazer por mim/Que faça agora”. Ao contrário do mestre Nelson Cavaquinho, que pedia flores em vida neste samba imortal, Zequinha Mauro não precisa esperar a posteridade para ser homenageado. Nada mais justo, portanto, que a lembrança de seu nome para um espaço como este, destinado a trabalhos experimentais em fotografia, videoarte, arte-tecnologia e novas mídias digitais – sempre a imagem como foco. 

A Galeria Zequinha Mauro e o Cine-Theatro Recreio (hoje Sala Paulo Cezar Saraceni) são os primeiros segmentos do Centro Cultural Humberto Mauro, que abre agora suas portas numa iniciativa da Fundação Cataguases em parceria com a Companhia Força e Luz Cataguazes-Leopoldina (atual Energisa), através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Ainda este ano, estará funcionando no terceiro pavimento o Memorial Humberto Mauro, com acervo e espaço expositivo sobre a vida e a obra do cineasta. Um museu vivo, filmográfico: puro movimento. 

Cataguases, 30 de abril de 2002



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