Sertânia: Contradições do passado, identidade no presente

MICHEL GUTWILEN

Como devemos chamar o protagonista de Sertânia: Antão, Jararaca ou Gavião? Ele é um jagunço filho do Nordeste ou é um soldado criado em São Paulo? Ele mata revolucionários para o Estado ou “macacos” para o Cangaço? Ele habita o mundo dos vivos, dos mortos ou vive no limbo? Jesuíno é seu melhor amigo, seu arquirrival ou seu pai? Seu espaço é o Sertão ou é o não-lugar todo branco? O que é passado e o que é pretérito do passado em suas memórias? Sertânia é catalogável na filmografia brasileira como um ressurgimento do velho Cinema Novo ou é um novo tipo de Cinema? Dúvidas, choques e contradições são a raiz desse filme-delírio representativo de um Brasil órfão preso em um looping, que, para tentar seguir em frente, precisa trazer a fórceps sua memória e confrontar suas influências passadas, tentando romper este ciclo vicioso com ideias novas.

A constante filiação com o Cinema Novo foi um assunto incontornável durante as discussões que circundaram o filme na altura de seu lançamento e, ainda que não equivocada, também se tornou uma limitação responsável por cegar o olhar crítico diante de outras leituras. Sendo possível se ater a uma só característica essencial que vale tanto para um cineasta como Glauber Rocha quanto para Geraldo Sarno, vale destacar a tendência para a experimentação pautada em uma iconofilia violenta e desordenada, chocando diferentes referências nas imagens e na montagem, encontrando justamente sua razão de ser nessa busca por uma identidade, contraditória por sua natureza.

Por isso, acha-se em Sertânia uma filiação tanto ao tableau vivant da Santa Ceia quanto à câmera na mão que se rasteja pelo chão em primeira pessoa; tanto ao digital superexposto quanto ao preto-e-branco tradicional; tanto ao envolvimento dramático do espectador quanto ao distanciamento brechtiano que revela as filmagens do próprio filme; tanto aos extremos close-ups de um showdown de um western quanto a Antônio Conselheiro vivido por Edgard Navarro, entre tantas outras fontes bebíveis que vão da mitologia grega a Guimarães Rosa.

Se a operação mental de memorizar é como uma analogia para o próprio cinema, por ser a organização de fragmentos nebulosos e imprecisos em uma decupagem/montagem de diferentes modos, pode-se dizer que, para Sarno e Antão, é esta constante reorganização de fragmentos que injeta ânimo de vida para sobreviver. Na montagem de Sertânia, mais do que apenas seguir uma não-linearidade que se estrutura como um quebra-cabeça, cada sequência colide suas imagens umas com as outras, gerando uma faísca que leva a um novo universo, pois esse não é apenas um único universo com vários planos internos a ele, mas planos que são universos próprios com suas regras e que levam a um novo lugar quando postos lado a lado.

A experiência de rever o último filme do octogenário diretor Geraldo Sarno, já estando consciente de seu falecimento, acaba por ganhar involuntariamente uma ressignificação metalinguística entre o próprio diretor e seu protagonista. Afinal, ambos resistiram contra a inevitável chegada da morte, não deixando o terreno mundano antes de cumprirem uma última missão. Enquanto Antão precisou confrontar seu passado traumático por figuras paternas, Sarno criou um filme que talvez busque confrontar toda a mitologia de um Cinema do Sertão para entender o que restou de caminhos possíveis a esse cinema hoje, gerando ele mesmo um próprio legado com seu questionamento.

Neste sentido, ele mantém a mesma essência daquilo que fazia nos anos 60/70 com a Caravana Farkas: o entendimento de que o cinema é o maior meio de preservação da cultura para a posterioridade. Assim, quando seu filme transiciona para o documental em seus minutos finais, passando da Estória para a História, funde-se o Sertão mítico com o real e, em close-ups, os rostos dos atores se confundem com o das pessoas reais. Após toda a viagem delirante pelo Sertão oferecida pelo diretor, uma proposição ativa que retira o espectador: há como diferenciar um e outro? Enquanto as pessoas existirem, o mito ainda vai existir, sendo passado adiante (e aí seja pelo cinema ou pela tradição local).

Michel Gutwilen é crítico de Cinema nos sites Plano Aberto e Plano Crítico.

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