Sessão Babel #3: Figurações de Helga Fanderl

Sumário

Apresentação Sessão Babel #3: Figurações de Helga Fanderl, por Gabriel Linhares Falcão

FILM LIVE, por Helga Fanderl
Saindo da Cova do Leão: uma conversa com Helga Fanderl, por Martin Klein
Entrevista com Helga Fanderl, por Andréa Picard
Coleção de notas curtas sobre a obra, por Helga Fanderl, Ute Aurand e Bärbel Freund
Constelações: O cinema de Helga Fanderl, por Gabriel Linhares Falcão
Programa Figurações, por Helga Fanderl

Apresentação Sessão Babel #3: Figurações de Helga Fanderl
por Gabriel Linhares Falcão

A cineasta alemã, Helga Fanderl, um dos principais nomes do cinema experimental contemporâneo, vem ao Rio de Janeiro para apresentar um programa exclusivo de filmes em Super-8, projetados por ela mesma. Aos 78 anos, visitará pela primeira vez o Rio de Janeiro, trazendo uma mala cheia de filmes montados na própria câmera Super-8 que carrega sempre consigo.

Seu procedimento de montagem é bastante simples e não menos cuidadoso. Nem um tipo de edição é feita a posteriori, filma-se pensando nos planos anteriormente impressos no filme Super-8 e já intuindo aqueles que virão. A montagem é totalmente realizada na câmera, no ato de filmagem. Uma atitude essencialmente cronológica (unidades de tempo que se sucedem), mas reveladora dos múltiplos tempos presentes na decomposição e recomposição da realidade percebida. Operação poética simples como uma lição cinematográfica primária: o tempo se reapresenta por meio das elipses. Entretanto, não estamos lidando com o cinematógrafo dos Lumière, e sim com um cinema do Super-8 como instrumento, leve como uma extensão do corpo e do olho.

Em cada exibição, Fanderl cria um programa único, relacionando e estruturando um conjunto de rolos espirituosos de cerca de 3 minutos cada (tempo de um rolo Super-8). O mundo ganha forma por meio de intensidades, cores, movimentos e motivos capturados pela cineasta em distintos momentos e lugares. Assume assim o papel de auto-programadora e de projecionista, destacando a importância da sua presença em toda sessão.

A sessão acontecerá na Cinemateca do MAM, como parte da Sessão Babel, no dia 16 de agosto, às 20h20. A sessão será apresentada pela própria cineasta e contará com uma conversa sobre seu trabalho e trajetória após a exibição. Os curtas selecionados para a ocasião foram filmados entre 2000 e 2025, compondo o programa intitulado Figurações

A sessão conta com um dossiê focado no trabalho de Helga Fanderl, com textos, entrevistas e traduções, todos disponíveis do site da Cinemateca do MAM. Os autores são Helga Fanderl, Gabriel Linhares Falcão, Martin Klein, Andréa Picard, Ute Aurand e Bärbel Freund. Após a sessão, haverá uma conversa com a diretora, mediada por Gabriel Linhares Falcão e com tradução simultânea de João Lucas Pedrosa.

O evento conta com o apoio do Goethe-Institut Rio de Janeiro e com a parceria do FENDA – Festival Experimental de Artes Fílmicas. 

Agradecemos ao Goethe-Institut Rio de Janeiro, ao FENDA – Festival Experimental de Artes Fílmicas e a Cinemateca do MAM. E também a Helga Fanderl, Sérgio Allisson, Victor Guimarães, Ruy Gardnier, Tetsuya Maruyama, Diogo Rembold, Moira Lacowicz, João Lucas Pedrosa, Andréa Picard, Martin Klein, Garbiñe Ortega, Ute Aurand, Bärbel Freund, Robert Beavers, Elena Duque, Hermano Callou, Davi Braga, Roberta Pedrosa, Michael Abrams, Raquel Gandra, Aaron Cutler e Mariana Shellard.

FILM LIVE
por Helga Fanderl

Mal Sehn Kino © Karl Dietz

I

Filmar com uma câmera Super 8 me permite responder imediatamente ao que vivencio. Com o olhar no visor, a câmera na mão — sentindo e registrando simultaneamente —, foco e crio filmes em correspondência com o sujeito, num gesto, por assim dizer. Surpreendo o que acontece e me sinto surpresa ao mesmo tempo. Tento capturar o momento, hic et nunc e in situ. Esta é a principal razão pela qual sempre tenho a câmera à mão e por que não há pós-produção.

A câmera de cinema de pequeno formato é uma boa companheira onde quer que eu vá. É também um bom instrumento para fazer música com os olhos, transformando fragmentos da vida real em formas cinematográficas de existência. Cada filme reflete o processo de sua criação e encontra um ritmo próprio. Quando filmo, olho para as coisas com grande atenção, ou quando elas olham para mim, posso vê-las como se fossem novas e seu significado ainda não estivesse definido. Isso liberta minha percepção e inspira minha maneira de vivenciar o efêmero.

Meus curtas-metragens são silenciosos. O que importa é a passagem das imagens.

Fazer filmes envolve dar forma ao tempo e evocar a dimensão temporal das imagens. Ao montar na câmera, visualizo ritmos inerentes e percebidos.

II

Desde que comecei a fazer filmes diretos e pessoais, no final da década de 1980, um corpo significativo de trabalho cresceu. Embora cada filme seja completo em si mesmo, sempre apresento uma seleção específica de filmes em um programa composto (ou como parte de um programa) para cada exibição. Breves intervalos em black-tail separam e acentuam os filmes individuais. Assim como em cada filme individual, também estruturo o tempo e crio ritmos dentro de cada programa que componho. Pode-se caracterizar cada programa, que tem aproximadamente 50 a no máximo 60 minutos de duração, como uma montagem temporal, exemplificando aspectos essenciais do meu trabalho. A interação de diferentes curtas-metragens evoca todos os tipos de correspondências e contrastes. O espectador vivencia um intenso microcosmo fílmico e facilmente perde a noção normal de tempo e espaço.

Programar meus filmes em uma configuração constantemente nova é uma parte muito importante da minha prática artística, em consonância com a forma como os filmes são criados. Consequentemente, o trabalho permanece aberto a mudanças na leitura e na interpretação.

III

O Super 8 é um meio e um formato muito frágil. Há sempre um aspecto nômade e performático nas minhas exibições. Desde o início, tive que cuidar da apresentação dos meus filmes sozinha, a fim de criar as melhores condições possíveis para cada exibição — encontrando a posição correta para o projetor na sala em relação à tela, em termos de tamanho, altura e brilho da imagem. Muitas vezes, levo meu próprio projetor e tenho que exercitar todos os tipos de habilidades acrobáticas para construir uma plataforma de projeção alta o suficiente, subir em cadeiras, mesas ou escadas e eu mesma projetar, como costumo fazer. Quero que o projetor seja instalado no auditório de forma que seu zumbido ecoe o ritmo dos 18 quadros por segundo projetados na tela, tornando-o consciente do meio.

Operar o projetor, trocar um ou mais rolos, focar e enquadrar as imagens, apresentar meus programas e falar sobre minha produção cinematográfica — tudo isso cria um evento ao vivo e uma performance única que corresponde à natureza poética dos meus filmes.

(publicado originalmente na revista Sequence nº1, NO.W.HERE, 2010.
Tradução de Gabriel Linhares Falcão)

Film im Schnee © Lena Prehal

Saindo da Cova do Leão: uma conversa com Helga Fanderl
por Martin Klein

©Kunstmuseum Tallin

Helga Fanderl (1947) faz filmes desde 1986. Após seus estudos de línguas e literaturas alemã e romana, estudou cinema com Peter Kubelka, em Frankfurt, e Robert Breer, em Nova York. Desde meados da década de 1980, ela criou uma filmografia singular. Sempre filmados em Super 8 silencioso e montados na câmera, seus filmes são caracterizados por uma tentativa de capturar a poesia fugaz da vida cotidiana por meio de formas curtas. Profundamente conectado à sua prática cinematográfica está o conceito de programação e organização de sessões de Fanderl, formando uma simbiose: “Cada programa consiste em uma composição de obras individuais que formam um ‘filme’ temporário durante a duração da sessão, um tecido denso e solto de referências, correspondências e contrastes entre motivos, cores, ritmos e texturas.” Seus filmes foram exibidos em cinemas, museus e galerias em todo o mundo. Ela vive e trabalha entre Berlim e Paris.

Martin Klein: Você chegou ao cinema bem tarde, como costuma enfatizar. Estudou literatura e se interessava por poesia. Já trabalhava artisticamente antes do cinema? Escrevia poemas, por exemplo?

Helga Fanderl: Eu adorava poesia e já escrevi poemas. Quando estudei literatura e, aos poucos, conheci a obra de grandes poetas, me convenci de que minha escrita jamais alcançaria o nível que eu amava. Também me sentia muito insegura. Eu tinha um profundo desejo de ser poeta e não estava sozinha: no meu círculo de amigos, trocávamos poemas, mas não éramos gênios precoces como Rimbaud.

Descobri a realização de filmes por acaso. Através de um curta-metragem que considerei um sucesso, descobri o que podia criar sem linguagem, apenas com a linguagem de um pequeno filme mudo Super 8. Isso foi avassalador. Filmei bastante e percebi que minha abordagem do mundo era muito visual, embora a linguagem ainda seja importante para mim: estudei línguas e adoro línguas estrangeiras, morei no exterior e adoro poesia. Mas criar filmes puramente visuais era outra coisa.

MK: Como surgiu esse primeiro contato com o Super 8?

HF: Por acaso. Quando Urs Breitenstein, um artista suíço, concluiu seus estudos de cinema com Peter Kubelka, em Frankfurt, ele queria ganhar algum dinheiro dando um workshop lindamente chamado “Super 8 como Meio Artístico”. Ele me perguntou, e a outras pessoas, se eu queria participar. Isso foi uma surpresa para mim, já que eu não tinha nada a ver com cinema na época. Depois de algumas idas e vindas, decidi me tornar uma membra pagante da turma para fazer um favor ao Urs. E eu estava curiosa.

Era um grupo pequeno e simpático. Os outros já sabiam o que era filme experimental e eram ambiciosos. Alguns esperavam se aproximar de Kubelka ou da Städelschule. Eu era a única que não conhecia cinema experimental. Compramos nossas próprias câmeras Super 8, o que era muito fácil na época, no bairro da estação central de Frankfurt, onde também encontrei meu primeiro projetor Super 8 e alguns outros equipamentos. Saímos juntos e filmamos no mesmo lugar. Naquela época, os filmes eram revelados rapidamente. Eu podia ir de bicicleta ao laboratório, deixar o filme e buscá-lo revelado na manhã seguinte – um paraíso em comparação com o dia de hoje. Essas experiências me deram minha primeira percepção do Super 8 em todas as suas facetas: manusear os dispositivos, aprender as linguagens do filme experimental. O workshop foi minha primeira “escola” até terminar, quando Urs encontrou um bom emprego.

Lá estava eu com minha câmera. Continuei a sair com esse instrumento sempre que tinha tempo, movendo-me de olhos abertos e filmando o que me aparecia. Em algum momento, surgiu a pergunta: é apenas o puro prazer de uma atividade de lazer ou é mais do que isso? Descobrir algo desconhecido e uma qualidade poética em um dos meus primeiros filmes causou uma verdadeira mudança na minha vida. Gradual e cuidadosamente, escolhi me aventurar na cova do leão.

MK: A cova dos leões era a aula de cinema do Kubelka?

HF: [Risos] Sim. Desenvolvi uma relação mais próxima com o meio e um conceito diferente de filme. Antes de começar a fazer filmes, eu nem era cinéfila. Só ia ao cinema com amigos. Só vi filmes experimentais no ateliê do Urs e nas sessões que ele organizava em Frankfurt.

MK: Vários cineastas de Frankfurt foram estudar com Kubelka. Talvez você pudesse dizer algo sobre a metodologia dele: como você a descreveria? Como ele conduzia as aulas?

HF: O aspecto decisivo, claro, era o foco no filme, embora ele chamasse suas aulas de “Cinema e Culinária como Gênero Artístico”. Ele só admitia alunos quando sentia que eles tinham potencial, às vezes de forma bastante arbitrária. A aula era realizada em uma sala de cinema: havia uma mesa de edição de 16mm, diferentes projetores e equipamentos. Ele entrava, sentava-se em uma cadeira em frente à mesa de edição como um Buda e perguntava: “Quem quer mostrar alguma coisa hoje?”. Naquela época, a maioria dos alunos estava a par dos ensinamentos de Kubelka, centrados no 16mm, e sob a pressão de atender às suas expectativas: cinema como edição exata de imagem e som, montagem precisa, responsabilidade artística por cada corte. Ele era muito decidido em todo o seu comportamento – para não dizer autoritário: “Eu sou Deus”. Às vezes era assustador. Por esse motivo, hesitei em abordá-lo por um bom tempo. Ouvi dizer que ele era capaz de rejeitar algo severamente e desencorajar os alunos. E, além disso, tinha a minha idade. Eu estava chegando aos quarenta anos. Alguns professores tinham a minha idade e os alunos eram bem mais novos. Além disso, eu me questionava: “O que é isso agora? O que estou fazendo? O que eu quero?”

No entanto, finalmente assisti à aula dele. Peter Kubelka foi generoso, permitindo-me participar informalmente, com a condição de mostrar algo. Ainda me sinto grata a ele. Ele perguntou se eu estava fazendo filmes e eu disse: “Acabei de começar a fazer filmes em Super 8”. Por um lado, era revelador como ele analisava os filmes, emocionante e estimulante. Mas também é verdade que algumas das maneiras como ele se comportava com os alunos me pareciam problemáticas. Eu também tinha medo de uma crítica negativa que pudesse prejudicar minhas plantinhas em desenvolvimento. Eu poderia não ter lidado bem com isso e até desistido.

Entrei para a turma no meio do semestre e evitei mostrar qualquer coisa durante todo o tempo. Sempre havia voluntários quando ele perguntava quem iria mostrar. Quando o semestre estava chegando ao fim, ele insistiu que eu tinha que mostrar alguma coisa. Projetei dois curtas-metragens em Super 8: cenas de arquitetura e situações em Bolonha, cidade onde eu morava. Aconteceu que os filmes foram acolhidos com simpatia, não com elogios, mas foi encorajador para mim quando ele disse: “Você tem um olhar cinematográfico”. Eu não sabia disso sobre mim na época; só ficou evidente ao fazer e assistir aos meus filmes. E então o semestre acabou. Perguntei a ele se poderia voltar. Ele disse que sim.

Eu estava protegendo o primeiro filme cuja qualidade poética eu apreciava. Quando, no semestre seguinte, finalmente o mostrei, Kubelka ficou imediatamente entusiasmado e me ofereceu para ser sua aluna. Mas o status informal me convinha. Eu estava trabalhando meio período e queria ser independente. Por esse motivo, sugeri que continuasse sendo sua convidada informal.

Com uma carteira de estudante, os alunos do curso de cinema podiam assistir gratuitamente à série de exibições de filmes experimentais que aconteciam no Filmmuseum Frankfurt uma vez por semana. Por esse motivo, decidi me tornar uma aluna visitante oficial. Era uma escola paralela, mas não o suficiente. Levei muito tempo para ver muitos filmes experimentais. Basicamente, não me importei. Eu me sentia livre de exemplos de “bons filmes” – ao contrário do que acontecia com a literatura.

Depois de alguns semestres, quando fui renovar minha carteira de estudante, me disseram que eu havia sido expulsa, como todas as alunas visitantes. O novo diretor da Städelschule queria mudar a escola, que lhe parecia muito sonolenta e pouco adaptada ao mercado de arte. Que choque! Eu me culpei por não ter concordado em me tornar uma aluna em tempo integral. Acho que os alunos homens visitantes não foram expulsos, mas isso pode ser uma lenda.

Kubelka estava em um ano sabático em Chicago na época. Liguei para ele e disse que tinha sido expulsa. Ele disse que isso era inaceitável e que agora eu deveria me tornar uma estudante em tempo integral. Eu não precisei de um exame de admissão. No total, estudei cinema por mais de cinco anos. Aqueles também foram anos difíceis. Kubelka havia criado um sistema competitivo em sua turma. E eu era uma estranha, em termos de idade e por fazer filmes em Super 8, não tão apreciados na época. Às vezes era exaustivo. Apesar de tudo isso, estou feliz por ter seguido meu próprio caminho. Claro, é mais fácil descobrir a si mesmo, suas habilidades e o amor pelo que se faz quando se é mais velha. Eu não precisava construir uma existência como artista.

Kubelka dizia aos seus alunos “vocês não vão conseguir ganhar dinheiro com esse tipo de filme”, o que era verdade. Ele próprio enriqueceu lecionando e dando palestras. Mesmo hoje, apenas artistas visuais que se destacam no mundo das artes conseguem viver de seus filmes. Mas esse não era meu desejo em primeiro lugar. Se você ama poesia, não se trata de ter um grande público ou ganhar dinheiro. Trata-se de fazer isso por si mesma e compartilhar com os outros. Essa é uma lógica diferente. Você precisa criar uma boa situação para a recepção da obra. Tive a sorte de obter reconhecimento precoce. Não conseguia acreditar no começo e tive que aprender que outros apreciavam meu trabalho antes mesmo que eu o apreciasse.

MK: Foi também nessa época que você descobriu o método de trabalho que vem usando desde então – Super 8, filmes mudos, curtas-metragens que abordam determinados temas?

HF: Sim, mas também é sempre uma decisão nova. Acho que foi Kubelka quem disse que, quando você começa a filmar, é bom filmar primeiro sem filme, para que você realmente domine o instrumento. No começo, tentei editar de forma tradicional, mas o pequeno fotograma individual do Super 8 dificultava uma edição precisa e invisível. Eu não estava interessado em mostrar a qualidade material da tira de filme e da emenda do filme, como os cineastas faziam nos anos 70. Kubelka realmente entendia meu jeito de fazer filmes. Esse era o seu ponto forte. Ele me incentivou a fazer a montagem na câmera. Ele também me ajudou na hora de exibir meus filmes. Certa vez, a turma de cinema foi convidada para apresentar um programa no Filmmuseum Frankfurt. Eu tinha medo de projetar no cinema. Perguntei a ele o que eu deveria exibir. Ele sugeriu que eu fizesse uma seleção de alguns filmes e criasse uma sequência. Essa foi minha primeira experiência com programação. Foi incrível e fascinante entender a diferença que a ordem de exibição dos filmes faz. Selecionei quatro filmes e tentei várias maneiras possíveis de combiná-los antes de decidir colocá-los juntos na ordem que me parecesse melhor.

A projeção brilhante dos filmes de 16mm dos meus colegas preencheu a tela. Quando vi meus filmes em Super 8 projetados na cabine, sem ouvir o som do projetor, não os reconheci. A lâmpada de um projetor Super 8 é menos potente do que a de um projetor de 16 mm. O Super 8 foi criado para projeções em residências particulares e perde luminosidade em espaços maiores. Então, minha experiência e prática, e a aceitação de suas qualidades específicas, me levaram a fazer minhas próprias exibições de forma específica para cada local.

Para outra exibição no Filmmuseum Frankfurt, pedi para instalar o projetor no auditório. O projecionista, que gostou de mim, concordou em exibir meus filmes no meio da plateia. Eu estava nervosa demais para eu mesma projetar, pois não estava familiarizada com o projetor. Sabendo exatamente quando ele precisava ajustar a linha do enquadramento ou focar rapidamente, sussurrei em seu ouvido o que ele precisava fazer. Achei mais razoável cuidar da projeção sozinha.

MK: Você exibe seus filmes há mais de trinta e cinco anos. Já percebeu que os contextos em que seu trabalho é exibido estão mudando? Por exemplo, agora você tem exibido com mais frequência em um contexto artístico, em galerias?

HF: Em primeiro lugar, a separação entre artes visuais e cinema ainda era muito rígida na Alemanha naquela época. Mas Peter Kubelka ensinava cinema como arte. Kasper König, um renomado curador que na época era diretor da Städelschule, apoiou meu trabalho quando eu ainda era estudante. Fiz minha primeira exposição individual na Portikus, a galeria de arte contemporânea fundada por ele. Desde o início, estive ligada às artes visuais, mas não a galerias. O que importava para mim eram espaços interessantes para minhas projeções. Por exemplo, quando fui à inauguração de uma galeria nos fundos de um prédio, um antigo ateliê com uma fachada maravilhosa com muitas janelinhas emolduradas em Frankfurt, pensei que seu tamanho e simplicidade eram ideais para uma projeção em Super 8. O galerista concordou. Fiz uma série de três exibições lá. O que importava para mim era apresentar meus filmes da maneira correta, cuidando das proporções do espaço, da distância adequada entre a tela e o projetor, de uma projeção com brilho e, acima de tudo, do escurecimento total do espaço. Nos cinemas, é difícil encontrar um pedestal alto o suficiente para o projetor projetar dentro da sala de projeção. Fiz do meu jeito e simplesmente preferi outros espaços.

Não inscrevi meus filmes em Super 8 para festivais. Primeiro, havia o problema dos filmes serem projetados na cabine. Segundo, eu fazia uma nova programação para cada exibição. Não importava o ano em que os filmes eram rodados. Essa prática não é compatível com a lógica do novo dos festivais. Talvez a liberdade de exibir meu trabalho apenas nas condições certas tenha a ver com o fato de eu ter me tornado cineasta apenas mais tarde na vida.

MK: Sobre seu método de trabalho: Você sempre filmou em Super 8, mas há alguns anos também começou a fazer ampliações em 16mm. O que a inspirou a fazer isso?

HF: A câmera Super 8, e isso é importante para mim, é meu instrumento. Claro, é importante exibir meus filmes no formato original. Quando a Kodak parou de produzir cópias em Super 8 anos atrás, eu não conseguia mais fazer cópias a partir de originais reversíveis. No começo, eu não sabia como continuar. Quase todo mundo me dizia para digitalizar meus filmes. Isso estava fora de questão para mim. O digital é uma mídia diferente. Depois de um bom tempo de luto, pensei que fazer ampliações em 16mm poderia ser uma solução para obter novas cópias, pelo menos mantendo meio fílmico.

MK: Prezada Helga, muito obrigada pela entrevista.

(Entrevista publicada originalmente em inglês no website belga Sabzian em 2023.
Link: https://www.sabzian.be/text/exiting-the-lion’s-den
Tradução: Gabriel Linhares Falcão)

Entrevista com Helga Fanderl
por Andréa Picard

Karussell © Helga Fanderl

Como numa pintura silenciosa, porém intensa e meteorologicamente trêmula de Agnes Martin, a presença na arte é um conceito continuamente subjetivo e resolutamente romântico. Pelo menos, costumava ser. A ansiedade prazerosa que frequentemente acompanha encontros que expulsam, que banem nossos medos, nos lembra que nossa existência se tornou cada vez mais estranha. Em contextos excessivamente expostos e posados, na competição por visibilidade em uma miríade de canais de distribuição e comunicação, na pressão que sentimos para nos manifestarmos, em nosso espantoso vício pela tecnologia e em nossa conectividade exacerbada (o que os franceses chamam de la connectivié en permanence, e ainda mais condenável, la tête au carré, doravante substituindo a boba à tête de chou! de Gainsbourg), os encontros íntimos com a arte são frequentemente raros e até mesmo distantes. A “democratização da arte” é uma das grandes falácias do nosso tempo — como Béla Tarr sucintamente observou: “A democracia não pertence ao mundo da arte” — enquanto a autenticidade é constantemente mediada por uma mise en abyme infinita; ficamos presos em uma série de ricochetes de distância variável e uma falsa presença. Nossos corpos, como testemunhas da nossa condição social contemporânea (nossos dedos inquietos, nossos ombros curvados, nossos sistemas nervosos incontroláveis, nossos curtos intervalos de atenção, nossa impaciência generalizada e contagiosa), ressoam como nunca antes na observação espirituosa de Godard: “É preciso levantar os olhos, não baixá-los, para experimentar o cinema”.

Muito já foi escrito sobre o nosso estado atual de presente perpétuo: que a informação é transmitida instantaneamente, que a sua presença não é apenas presente, mas prolongada — daí a obsessão com o passado. Regredimos (hiperativamente) pelo passado apropriadamente denominado “imperfeito”. No entanto, para todos aqueles que teorizam sobre este presente recém-definido, no qual as imagens certamente desempenham um papel central (por exemplo, o poder do cinema de ressuscitar e reanimar), a nossa presença é frequentemente aprisionada e mitigada não apenas por um olhar imediato para trás — fundamental para olhar para a frente — mas por uma profunda inacessibilidade à emoção, à sensualidade, à libertação, ao prazer e à simplicidade. Quando a “poesia” exibe o belo e o “sublime” parece tolo (a nossa inautenticidade, de novo?), qual é o melhor caminho para alcançar o dom de experimentar a beleza no mundo, seja através do abstrato ou da particularidade das coisas?

Caracterizada, talvez de forma um tanto inapropriada, por uma simplicidade estranha e impressionante, a obra em Super 8 da artista Helga Fanderl exerce um poder extraordinário para apaziguar o pânico e renovar os sentidos. Seus filmes em Super 8, extremamente breves, silenciosos e montados na câmera, são compostos de uma maneira que evoca o momento presente. Eles respiram e parecem naturais, apesar do considerável trabalho e determinação por trás deles. Resultado de um engajamento sustentado, focado e, às vezes, frenético com o mundo, a criação artística de Fanderl é surpreendentemente modesta, concentrada e, acima de tudo, aberta. Abstendo-se da precisão e do polimento, mas bem estruturados e habilidosos, seus filmes retratam uma intimidade deslumbrante. Seja retratando a aparência de conto de fadas e os sustos de meninas brincando em um parque, usando vestidos vermelhos e azuis de domingo (Mädchen, 1995), observando de perto uma cristaleira na janela de um navio, enquanto o mar reflete e refrata formas cristalinas (Gläser, 2011), ou seguindo as oscilações semicirculares de um belo e pacífico leopardo, cujas manchas evocam padrões rítmicos por meio do processo intuitivo de filmagem de Fanderl (Leopard, 2012), a artista se entrega completamente ao momento presente e nos permite aproveitá-lo ao máximo.

Como um catálogo extenso de “brief glimpses of beauty“, a filmografia de Fanderl é, em certo sentido, diarística (embora distante dos filmes caseiros), pois traça as viagens da artista, revelando seu interesse e paixão por certos motivos visuais, por texturas e movimentos, mas também por lugares. Nascida na pequena cidade de Ingolstadt, Alemanha, sua cidade adotiva, Paris, tornou-se, como para tantos artistas de diferentes épocas, uma fonte de inspiração inesgotável. Belos fogos de artifício explodindo perto da Torre Eiffel, um parque de diversões, os contornos e a elegância inconfundível de um parque parisiense — cenas recortadas tão reconhecíveis e icônicas quanto surpreendentemente idiossincráticas e pessoais. Os filmes de Fanderl revelam um fascínio encantador pela existência cotidiana, e seus temas giram em torno de gestos de pequena escala, que, embora não sejam abertamente políticos ou clichês, são o que recuperam o sentido da trama da vida. Portanto, tacitamente, algo crucial é sua opção escolhida — um calibre pequeno — inextricavelmente ligada à sua expressão criativa. É a escolha da artista que, de certa forma, limitou significativamente as opções de apresentação pública de seu trabalho, resultando em exibições únicas, concebidas especificamente para um local específico, que complementam sua arte e produzem momentos memoráveis que podemos guardar à noite.

A qualidade balsâmica de sua obra e sua continuidade comprometida, apesar da usurpação da “ditadura do digital” (Godard novamente, em Les trois désastres), escondem uma rebelião silenciosa contra a nossa situação atual. Talvez a maior contribuição de Fanderl seja a restauração do presente dentro de uma experiência estética pura, não com a ideia de voltar no tempo, mas para além dele, capturando não apenas sua essência, mas também sua materialidade. A entrevista a seguir demonstra um trabalho artístico que lida com noções de intimidade, limitações técnicas, articulação, disposição e a perspectiva devastadora de perder o meio escolhido e necessário. Embora ouçamos muitos artistas, incluindo Tacita Dean, a mais famosa, afirmarem que a chegada de uma tecnologia não deve significar o fim de outra — tão rica, tendo-se estabelecido em história, linguagem e aspectos formais — bem como daquelas em laboratórios cinematográficos ao redor do mundo, as descrições francas, charmosas e prosaicas de Fanderl revelam dolorosamente a fragilidade da situação e o que ela representa. Falando de si mesma e não dos outros, ela deixa claro que a beleza não podemos perder.

Andréa Picard (CinemaScope): Ao longo dos anos, seus filmes foram comparados em diversos momentos a músicas, poemas, haikus e pinturas. Alguma dessas comparações lhe parece apropriada?

Helga Fanderl: Existe um termo alemão, Vergleiche hinken, que significa “comparações são odiosas”. Elas nunca se encaixam perfeitamente. Por outro lado, as comparações nos ajudam a encontrar significado em coisas que não são fáceis de nomear, ou que ainda não têm um nome, permitindo-nos expressar afinidades e semelhanças, mas também tornando o que é diferente mais claro.

Vou dar um exemplo: no primeiro filme que considerei um filme finalizado, See (Lago), de 1986 (com cerca de dois minutos de duração), você pode ver a imagem de uma cena bucólica refletida em um lago. Um pequeno trator se move em uma espécie de atmosfera onírica no topo do quadro, ligeiramente errático e de cabeça para baixo. Uma chama flamejante é vista na água, que então se apaga. A fumaça é gradualmente sentida acima da superfície ondulante da água, na qual o reflexo das árvores também se move. A imagem do filme de alguma forma fornece a figura do oxímoro, de fogo e água, de água e fumaça se tornando um; isso só pode acontecer nesse tipo de imagem, mas não na realidade. Uma condensação é criada através de lapsos temporais quase imperceptíveis e no enquadramento rigoroso dessa visão. A continuidade natural do espaço e do tempo é sublimada através de imagens cinematográficas atmosféricas. Pela natureza evocativa das tomadas, a concentração em pouquíssimos elementos e sua qualidade sinestésica, você pode pensar em um haiku, mas apenas em um certo sentido. A brevidade e a forma predefinida de um haiku são muito diferentes da brevidade e da intensidade da multiplicidade de imagens que moldam a visão e a experiência ao longo do tempo. Acredito que isso provavelmente se trata de uma essência poética e de minha atitude interior, especialmente quando meus filmes são acompanhados pelas diferentes formas da poesia.

Costumava-se dizer que See tinha uma qualidade pictórica. Além disso, o tema lembra uma pintura de paisagem. Por outro lado, a composição ou construção da minha imagem dentro do quadro, a concentração em uma imagem filmada repetidamente, como pinceladas acariciantes, a textura das minhas imagens, a acentuação da superfície, as cores outonais — tudo parece motivar essa comparação.

Utilizo a montagem na câmera, trabalhando diante do motivo, reagindo e respondendo a ele, criando o filme em seu próprio gesto, assim como era quando eu estava filmando, entrando nele e explorando a imagem como imagem. Em parte, isso também pode explicar por que é comparado à pintura. Não penso conscientemente em “pintura” em relação ao cinema, mas quando descubro uma cena, um evento que sugere a possibilidade de fazer um filme, posso me inspirar em pinturas que me impressionaram profundamente e moldaram minha visão, especialmente pinturas em que cada parte da superfície está viva, quase em movimento, vibrando e evocando uma sensação muito sensual, quase tátil. Nos meus filmes, talvez haja uma certa afinidade com a abertura e a elipse dos esboços, permitindo que a imaginação, o imediatismo e o frescor capturem o momento. Ou, se preferir, uma afinidade com o processo de desenhar.

AP: Embora interiores sejam às vezes retratados, a maioria dos seus filmes se caracteriza por serem filmados ao ar livre. Você se sente atraída por essa tradição criativa ou se preocupa mais com a liberdade de movimento, na plenitude e na diversidade das formas e fenômenos naturais?

HF: Gosto de descobrir os lugares, as atividades e os ritmos da vida real que me impressionam e despertam um interesse mais profundo. Nunca há encenação no meu trabalho. Não utilizo dispositivos de iluminação. Além disso, trabalho de acordo com as condições de iluminação, que muitas vezes são mais fáceis de encontrar ao ar livre do que em ambientes fechados.

Na verdade, sinto-me muito mais atraída por luz e sombra, cores, ritmos, movimentos e pelas qualidades da água, do vento, da terra e do fogo. De forma mais geral, respondo ao mundo animado, no qual coexistimos com a fauna, a flora e os elementos, mesmo que às vezes os esqueçamos. Tudo isso pode se tornar meu “material” visual na tradução fílmica e na metamorfose. Gosto de observar e tornar visíveis (às vezes ocultando) as qualidades do que descubro, capturando e transformando o momento e fazendo-o perdurar no filme.

É verdade que aprecio e me inspiro muito na “liberdade de movimento, na plenitude e na diversidade das formas e fenômenos naturais”, mas quando as qualidades que mencionei acima estão presentes em uma situação interna, também gosto de filmar dentro, especialmente quando há uma janela ou porta evocando o além. Aprecio pinturas externas e internas, desde que sejam de boa qualidade. Seria maravilhoso se eu pudesse alcançar seu poder visual, sua vivacidade e sua beleza em meus filmes.

AP: Você fala dos seus filmes em termos de “programas” ou “unidades”. Dada a brevidade deles, você reúne alguns para formar grupos que fornecem a base para a troca, levando a diferentes formas de apresentação. Poderíamos falar sobre esse método de apresentação e como ele afeta sua condição de artista/autoprogramador e arquivista?

HF: Falo apenas em termos de “programas” e “unidades”, ou principalmente, quando me refiro aos meus filmes de 16mm inflados. Quando comecei a fazer cópias em 16mm dos meus filmes originais em Super 8 — forçado pelo fim dos laboratórios que produziam cópias em Super 8 —, decidi não fazer cópias de filmes individuais, mas sim pequenos conjuntos “compostos” de filmes selecionados. A ordem dos filmes nesses “programas” ou “unidades” permanece inalterada, mas, quando estou programando ou projetando meu trabalho, posso combinar ou intercambiar esses grupos de filmes em uma “montagem” temporária.

Desde o início, costumava projetar meus filmes em várias constelações. Sua brevidade e as diferentes abordagens formais que encontrei para diferentes temas tornaram necessário pensar em um formato de apresentação apropriado. “Compor” programas específicos para cada exibição não se trata tanto de enfatizar cada filme em particular, mas sim de evocar minha produção cinematográfica como um todo. Ao mudar de contexto, cada filme individual revela diferentes significados, nuances e ressonâncias, e está aberto a interpretações de alguma forma distintas e inesgotáveis. Com exceção de algumas séries, todos os meus filmes foram criados como obras individuais. Assim, há uma grande variedade de motivos, formas, andamentos, ritmos e cores em meu trabalho. Embora a câmera esteja sempre em minhas mãos, ela é uma extensão orgânica do sentido do tato.

Quando crio programas efêmeros, procuro aumentar correspondências, semelhanças, oposições e analogias, permitindo associações livres e experiências cinematográficas intensas para o espectador. Quando procuro encontrar uma forma específica para cada tema, resultante de um equilíbrio entre realidade, percepção e emoção, procuro encontrar uma forma específica de apresentação para meus filmes em cada exibição. Ao me tornar a programadora dos meus filmes, encontrei a lógica do meu trabalho no filme Super 8, que é uma parte igualmente importante do meu trabalho. Mudar para o 16mm e trabalhar com vários “programas” significa continuar essa prática de uma maneira diferente. Como o conjunto da minha obra cresceu significativamente ao longo dos anos, pode-se dizer que o utilizo como uma espécie de arquivo vivo.

AP: Seu método de filmagem é extremamente íntimo; às vezes, sente-se um fervor e, às vezes, uma tentativa de compromisso com o mundo. Você já fez filmes que não exibiu por motivos pessoais? Evitou retratar certos temas?

HF: Às vezes, demoro um pouco para perceber que um filme é íntimo demais. Essa preocupação não afetava e não afeta apenas filmes sobre o homem que amei, ou uma série de autorretratos. Muitas vezes me sinto um pouco desconfortável em revelar a mim mesmo, meu entusiasmo e minha paixão em relação a temas que parecem não ser de interesse público, “importantes” ou “relevantes” para a realidade política, social ou artística. Preciso superar essas apreensões. Para mim, só faz sentido filmar visões pessoais e aceitar o desafio de responder a elas com o cinema.

Também me sinto desconfortável ao filmar pessoas que não têm consciência de que estão sendo filmadas. Há um filme que considero verdadeiramente fascinante, incluído em um dos meus programas. Fiz durante um passeio de barco no lago em Zurique, em um dia ensolarado. A luz e as cores estavam perfeitas. Uma bela jovem estava sentada perto da proa do barco e às vezes se levantava para observar o lago. Funcionava como uma espécie de repouso voltado para as águas agitadas vistas da proa. Tenho certeza de que ela não percebeu que eu a estava filmando de cima e de trás. Ela não conseguia ouvir o som da minha câmera porque havia muito barulho. Surpreendentemente, uma das vezes em que ela parou para olhar, seu namorado apareceu, sorrindo e a abraçou com ternura. Continuei filmando as carícias até que o homem — também surpreendentemente — desapareceu.

Normalmente evito filmar estranhos se abraçando se eles não sabem disso. Por outro lado, eu não estava procurando por essa situação. Simplesmente aconteceu. Também não faz sentido perguntar a um estranho se ele concorda em ser filmado. As pessoas sempre começam a atuar diante da câmera. Mas me interesso pela vida real, não pela encenação.

Consigo filmar intimamente pessoas que estão próximas de mim ou que estão focadas no que estou fazendo. Por experiência própria, a melhor condição para filmar pessoas é quando elas estão trabalhando ou se divertindo e também aceitam a presença da minha câmera, que está trabalhando e se divertindo como elas. Acho bom quando elas às vezes olham para mim ou para a câmera. Isso é comunicação real, não uma ilusão.

AP: Acredito que você já tenha se referido à edição na câmera como arriscada. Poderia explicar?

HF: A tira de película Super 8 e as imagens individuais são tão pequenas que o processo de edição e a edição invisível são mais complicados do que quando se trabalha com inúmeras tomadas curtas ou curtíssimas e conjuntos de quadros únicos. Percebi bem cedo que fazia mais sentido me concentrar na montagem na câmera. No final da década de 1980, quando comecei a fazer filmes, o baixo custo do Kodachrome 40 e do processamento me ajudou a vivenciar intensamente a filmagem direta e a não me preocupar com erros ou enganos. Quanto mais meu trabalho com câmeras Super 8 se intensificava, mais minha visão e estilo pessoais se desenvolviam, descobrindo suas qualidades poéticas.

Montar na câmera sempre traz o risco de erro. Não posso controlar o que filmo, o que está diante da câmera ou o resultado das minhas decisões formais. Quando estou filmando, tenho que imaginar todo o ritmo, a forma e a estrutura do filme. Tenho que confiar na minha intuição e na minha habilidade para encontrar o sentido certo de expressão em relação ao enquadramento, à distância focal e à velocidade de filmagem. Tenho que manter contato com o que estou filmando. Então, tenho que me concentrar, ser muito paciente e alerta, às vezes por horas, lembrando-me das sequências que já filmei, antecipando as que virão e sentindo o que estou enquadrando.

Esse estado de espírito é muito intenso e emocionante. É como se todas as condições mentais, emocionais e técnicas tivessem que ser atendidas e coincidirem na ideia de fazer um bom filme. Às vezes, esse tipo de filmagem é um gesto que me lembra a caligrafia zen. Não há possibilidade de correção ou mudança. A obra revela o estado de espírito no momento de sua criação.

AP: Por isso, muitos dos seus filmes — estou pensando especificamente em Binsen (2003) ou Riesenrad (2001) — lidam com a qualidade gráfica das formas e desenhos que você mencionou. E, no entanto, a dimensão do tempo é crucial, assim como a temporalidade que permite que eles fluam e se acumulem. Você poderia falar sobre a relação entre o movimento no quadro e o movimento que vem de você e da sua mão?

HF: Respondo espontaneamente a movimentos rítmicos, observando-os e tentando descobrir como eles afetam o que estou filmando e a mim mesmo, questionando-me sobre suas especificidades e seu poder. Descubro e exploro esses movimentos através do visor, usando diferentes distâncias focais, com a ideia de estudar estruturas e detalhes, sentindo a distância, a concretude e a abstração certas, e encontrando o ritmo certo. Dependendo do que estou filmando e das minhas ideias, há muitas possibilidades para trabalhar movimentos e a forma fílmica no tempo. Às vezes, simplesmente registro o movimento no quadro, em uma única tomada, visualizando os ritmos inerentes, como por exemplo em Pfau (1991). O pássaro exibe suas penas e parece estar se apresentando diante de mim, movendo-se em direção à câmera, hesitando, mudando de direção, retornando e, finalmente, virando-se. Acompanho todos esses movimentos atentamente, mantendo o leque do pavão preenchendo todo o quadro. A reciprocidade do movimento filmado e o movimento modulado da minha câmera em minhas mãos transformam essa dança banal em uma dança sensual, permitindo ao espectador uma série de observações detalhadas. Quando o pavão gira algumas vezes no final, o lado oposto de seu suntuoso leque forma uma cavidade com o desenho de um banco branco e uma lixeira branca.

Com bastante frequência, trabalho com velocidades variáveis, criando uma estrutura temporal complexa dentro de cada filme. Ao alternar e combinar velocidades — velocidade normal (18 fps), diferentes movimentos lentos (24, 36, 54 fps), ritmos de quadro único (9 fps, dois ou mais fps) — transformo a percepção usual de tempo e movimento em uma experiência cinematográfica pura. Interrompendo movimentos por meio de cortes (ou montagem na câmera), alterando distâncias focais, reenquadrando e adaptando constantemente a presença do meu corpo e da minha respiração, torno as imagens vivas e vibrantes, criando um tempo e um ritmo, dando origem à (re)construção cinematográfica do que é filmado e a novas experiências visuais intensas.

Em Binsen, por exemplo, filmo o vento movendo juncos selvagens e a superfície de um lago. Há tomadas mais curtas, filmadas com diferentes distâncias focais e velocidades, separadas e acentuadas por pausas muito breves de plantas aquáticas. Assim, surgem diferentes imagens do “mesmo”. De acordo com essas mudanças na textura das plantas aquáticas, seus movimentos também mudam, mais ou menos densamente, mais ou menos abstratamente e mais ou menos rapidamente. A cada movimento, seu balanço na brisa evoca uma impressão tátil e musical diferente.

Em Riesenrad, filmo um parque infantil de uma altura considerável, observando e brincando com os movimentos simultâneos de todos os tipos de carroças. O movimento principal corresponde ao de uma roda-gigante, cujos desenhos rolam verticalmente, semelhante a uma película de filme. Carrosséis e rodas-gigantes descrevem diferentes movimentos circulares. É como se você estivesse olhando para um desenho colorido de um parque de diversões. As crianças e as pessoas parecem pequenas. Ao combinar a chamada velocidade normal com fragmentos de quadro único e distâncias focais variáveis, crio uma inter-relação extraordinária de vários ritmos mecânicos e transformo a cena aparentemente familiar em algo estranho e quase enigmático, cheio de ritmos opostos.

AP: O que você acha de ampliar filmes de 16mm?

HF: Quando não consegui mais obter cópias em Super 8 de originais reversíveis, tive que aceitar ampliar filmes de 16mm, pois queria exibir novos filmes e continuar com o filme analógico. Demorei um pouco para conseguir exibir filmes de 16mm. Sofri com a distância e a perda de intimidade quando eles eram exibidos em cinemas maiores, e também com a diferença de granulação e cor. Aos poucos, aprendi a aceitá-los e apreciá-los como uma variação do meu trabalho. Há dois anos, vi pela primeira vez um rolo de filme em preto e branco projetado em uma tela grande em um grande cinema em Oberhausen. Essa exibição me deixou claro, de uma forma poderosa e emocionante, que eles eram algo diferente, pois a impressão em 16mm tornava visíveis e monumentalizava as possibilidades gráficas e escultóricas inerentes, bem como a materialidade dos filmes.

Achei uma experiência nova e incrível quando fiz minha primeira instalação com loops de filme de 16mm em uma galeria. Também foi interessante criar um evento específico para o local em um grande salão vazio no canto de uma garagem da Citroën quando o transformei em um cinema Super 8 e um cinema 16mm.

AP: Qual o lugar do celuloide em galerias e museus? Quais são os cenários de apresentação ideais para você?

HF: É raro poder apreciar o celuloide em condições adequadas em galerias ou museus. O filme analógico requer proteção contra luz e som, algo que não se encontra na obra. O espectador deve ser convidado a sentar-se confortavelmente se houver uma duração, para que possa se concentrar em vez de andar. Quando há um começo e um fim para uma obra e não um loop, deve haver uma estrutura de projeção para criar exibições reais dentro do espaço expositivo. Se o filme for exibido em loop, alguém deve estar sempre presente para garantir que a projeção esteja funcionando corretamente. Às vezes, um filme sai de foco, não avança corretamente ou o enquadramento precisa ser ajustado. Uma boa solução para exibir filmes em loop é a possibilidade de o espectador modificar o projetor e também interromper a projeção, para que o filme não avance no tempo, mas no espaço, e se possa ter uma noção da projeção.

Acredito que sempre há um desafio em cada local específico, assim como há um desafio em encontrar as maneiras certas de apresentar filmes que se encaixem em sua natureza e qualidades, em encontrar um equilíbrio entre as particularidades do meio, as intenções do artista e as possibilidades oferecidas pelo espaço expositivo. Portanto, é bastante difícil definir abstratamente um espaço de apresentação ideal.

Um dia, gostaria de expor meu trabalho em uma grande exposição, onde eu poderia construir uma espécie de pequena casa em Super 8, uma espécie de escultura composta por um cinema em Super 8 e uma filmoteca, que seria transparente do lado de fora do espaço de projeção, e onde haveria uma tela de projeção e escuridão durante as exibições. Eu poderia apresentar diferentes programas como um evento ao vivo, talvez uma vez por dia. Dependendo do espaço, eu poderia fazer uma instalação com uma seleção de cópias em 16mm, desenvolvendo tudo isso no espaço, em vez de em um nível temporário. Também gostaria de incluir a instalação de um tríptico de filmes digitalizados com som em um espaço fechado adequado.

AP: Uma exposição pronta. Museus, anotem!

(Entrevista publicada originalmente na revista canadense Cinemascope nº 55, verão de 2013.
Link: https://cinema-scope.com/cinema-scope-magazine/issue-55-table-of-contents/
Tradução: Gabriel Linhares Falcão)

Coleção de breves notas sobre a obra
por Helga Fanderl, Ute Aurand e Bärbel Freund

Helga Fanderl @ Maria Pasel

Não era apenas o silêncio de seus filmes mudos em Super 8, não apenas o escuro prolongado entre os vários poemas curtos — sim, são poemas, às vezes uma única frase, até mesmo uma palavra, do mundo cotidiano, das realidades que a cercam. Em um ritmo correspondente ao seu tom, Helga Fanderl fragmenta o que vê e o recompõe no momento da filmagem. Nessa transformação reside a beleza de seus poemas leves — nesse tempo recém-criado, surge um silêncio — um silêncio que me faz pausar.

Ute Aurand

02.02.2002 20h Babylon-Mitte
Rosa-Luxemburg-Strasse 30, 10178, Berlim

A cineasta Helga Fanderl, radicada em Frankfurt, será nossa convidada no dia 2 de fevereiro. Seus curtas-metragens mudos em Super-8 são belos poemas cinematográficos e, para nós, estão entre os mais bonitos da arte cinematográfica contemporânea. Helga Fanderl desfruta da rara habilidade de transformar seu fascínio por um lugar ou uma ação, uma situação ou uma pessoa, em poesia filmada pelo jeito como ela filma. Montados na câmera, seus filmes evoluem durante a filmagem em diálogo direto com o que é capturado. Cada uma de suas obras tem um ritmo diferente e único, um momento diferente e único, uma forma diferente e única. Seus filmes silenciosos duram entre vinte segundos e três minutos. Para cada exibição, Helga Fanderl prepara uma nova seleção. Para o Filmsamstag, ela escolheu um programa de dezessete filmes.

Ute Aurand, Bärbel Freund

Em sua pintura da jovem com o  jarro, Vermeer cria uma silhueta, enfatiza o espaço da imagem como espaço da imagem, a figura está no campo de força da luz, no efeito de sombra e nos campos geométricos de cor (a janela, o mapa, a mesa e a parede). A jovem contém o mundo e é contida pelo mundo. Tudo está em equilíbrio, o momento é eterno (Kafka: “O momento decisivo da vida é perene“), tudo está relacionado e se determinam mutuamente. Uma grande e extremamente variada harmonia, saturação íntima, silêncio vivo, concentração e acumulação sublimes, a soma de todas as forças pictóricas e espirituais em uma presença pictórica que me encanta e me comove como outros o fazem com experiências religiosas. 

Um espírito radicalmente secular como base de uma dimensão criativa em nada inferior à dos períodos religiosos. Uma celebração da beleza deste mundo, que é profundamente espiritual e carrega consigo sua transcendência.

Eu adoraria filmá-la…



9 de outubro de 1997

Querida Ute, acho que esses quatro curtas poderiam funcionar juntos e também se encaixam no tema “observação”. Fiquei muito feliz em assistir recentemente ao seu filme com Ulrike sobre estações e cidades. Incrivelmente impactante, especialmente a cena com a criança vagando por Moscou.

Um abraço e te desejo o melhor,

Helga

*Prefiro a combinação II agora!



10 de novembro de 1996

Praticamente realizei meu desejo de exibir uma grande seleção dos meus filmes aqui mesmo, um lugar adequado para minhas obras e para mim: pelo menos 3 x 16 filmes — 48 filmes, um cosmos, meu cosmos cinematográfico, em um formato adequado para exibição.

[…]

Robert Beavers me desejou boa sorte, e acho que isso se concretizou: “O público e a exibição vibrarão com seu ritmo colorido e intuitivo.



3 de novembro de 1996

[…] Tenho que me pegar desprevenida, me surpreender, me deixar comover […] Como se não houvesse tempo, nem continuidade, nem realidade, apenas o eterno novo momento. Aquele que é súbito, direto, emocionante, concentrado, uma acentuação da percepção, dos sentidos, da alegria, do contato, do compromisso com o aqui e agora.

luz na escuridão

escuridão na luz

um voo de pássaros

um lampejo do todo em detalhes

um estado que se funde com outros em um momento decisivo

a intensidade de vivenciar o que é desaparecer (agora?)



9 de dezembro de 1998

Você faz seus filmes para si mesmo ou para o público?

Para mim.

Então, por que você exibe filmes?

Boa pergunta. Sim, por quê?

Quando exibo meus filmes, significa que não os vejo mais como algo meramente pessoal, mas como algo que me conecta aos outros, à história do cinema, bem como à história da expressão pessoal e da criação de imagens do mundo por meio da arte.

Peter Hutton disse uma vez:
Não me vejo como um cineasta, mas como um artista visual que usa uma câmera de cinema para filmar sua existência.

(Esta coleção de notas foi originalmente selecionada e publicada no livro Meditaciones sobre el presente: Ute Aurand, Helga Fanderl, Jeannette Muñoz, Renate Sami, organizado por Garbiñe Ortega e María Palacios Cruz para o 13º Punto de Vista – Festival Internacional de Cine Documental de Navarra (2020). Os textos de Ute Aurand foram expandidos a partir dos materiais originais enviados para a Babel pela própria diretora.
Tradução de Gabriel Linhares Falcão.)

Constelações: O cinema de Helga Fanderl
por Gabriel Linhares Falcão

Leopard © Helga Fanderl

Pata por pata, um leopardo realiza seu desfile chegando bem perto da objetiva, e a objetiva chegando bem perto dele. Vai da direita para esquerda do quadro e retorna para o ponto de partida, realizando novamente o movimento repetidas vezes. Seu andar é sensual, sereno, quase flutuante, e seu corpo camufla-se no breu do espaço parcialmente iluminado. A luz forte revela também a terra com pedras que ele pisa, as plantas que o cercam, e nas sombras, barras de ferro de uma jaula que nunca entra em quadro. A câmera de Fanderl é segura, firme, também serena e sensual, e não demonstra nenhum sinal de amedrontamento com o predador diante da câmera.

O leopardo se revela cada vez mais concentrado. Anda em círculos e sempre olha para frente, sugerindo uma atormentação, possivelmente pela situação do encarceramento. O animal não mira sequer um instante para Fanderl e sua câmera. Apesar da inquietação, as eventualidades além da jaula parecem não o afetar. Tanto quanto o ambiente extra imagem não desestabiliza Fanderl, nem implica na unidade do filme; não há um mundo para além do pictórico na película, nem se quer a jaula importa. A concentração é total; existe apenas a diretora e o leopardo.

As cores escapam. Um amarelado que parece extrapolar a forma do animal como pintado à mão. O verde forte das poucas plantas reflete no pelo branco da parte inferior do leopardo. A cor de seus olhos parece uma mistura em aquarela de todos os tons que passam pelo quadro; em constante mutação a cada volta.

O animal com toda sua elegância parece aos poucos cansar. Suas piscadas vão pesando. O olhar concentrado está cada vez mais perdido, sem direção, apesar da retidão. A câmera de Fanderl gradativamente altera seu comportamento: há mais cortes e as imagens se fecham em diferentes partes do bicho. A alteração é sensitiva. Pouco a pouco a maneira de filmar se ajusta às intuições perceptivas do instante; uma comunhão cada vez mais íntima entre sujeito e objeto, regida pelo olhar de Fanderl. A única ordem imutável presente em todos os seus filmes é a montagem na câmera Super 8, que permite, nas palavras da diretora: “concentrar e mergulhar no fluxo do tempo, filmando, por assim dizer, tempos e eventos que acontecem no tempo, buscando o “gesto” que pudesse integrar a complexidade de tudo o que acontece no “aqui e agora” quando filmei e pela expressão da reciprocidade entre o que está acontecendo em mim e fora de mim.“¹

A maioria de seus filmes consiste em apenas um rolo de Super 8, com cerca de 3 minutos cada, e são exibidos publicamente em grupos organizados pela própria diretora, compondo uma obra maior. Seus filmes são registros diretos do presente e dos infinitos tempos contíguos nele. Um olhar atento que captura manifestações do instante explicitando as peculiaridades, como desenhos muito bem definidos, e por um acúmulo de gestos e tempos, elabora filmes densos em que todo contraste é evidente pela clareza das especificidades. O leopardo faz sempre o mesmo movimento no mesmo espaço, mas nos é revelado uma infinidade de detalhes que divergem, seja pela alteração do objetivo ou do subjetivo. A reciprocidade entre estes aumenta no decorrer do rolo, e as mais leves imprevisibilidades vão sendo impressas por Fanderl na película. Todo registro objetivo é também um registro da experiência sensível da diretora no mundo – este que parece desaparecer durante seus filmes.

Estamos sempre vendo pela primeira vez; tanto na unidade, neste processo de investigação minucioso do presente pela montagem na câmera, quanto nos filmes compostos, em que a organização das obras curtas sublinha ainda mais as especificidades de cada uma destas, criando um drama formal intenso por meio das discrepâncias. Em Konstellationen (2013)², por exemplo, são necessários seis filmes curtos em preto e branco para finalmente conhecermos as cores em Leopard (2012), sendo que estas, como já descritas, parecem escapar do domínio das formas esparramando-se pelas rápidas imagens; como uma evidência do processo físico-natural em que a luz rebate nos objetos que toca antes de encontrar a lente da câmera. A cor também está nascendo diante de nossos olhos ainda inocentes.

Vemos o vegetal pela primeira vez em uma árvore seca e sombria, para em um fragmento posterior sermos apresentados às folhas coloridas já no chão³. Vemos grandes estruturas metálicas, pela primeira vez artefatos feitos pelo humano, por meio do reflexo da água, para no mesmo fragmento a chuva dar fim a solidez imaginada⁴.

É comum a ocorrência de variações internas nos filmes de Fanderl, pequenas mudanças de configuração/comportamento decorrentes da intuição, do acaso e da experimentação de diferentes velocidades da câmera Super 8. Em Bläter fliegen (2001), a diretora captura pássaros que se alimentam em uma árvore. O foco de captura são os animais, a câmera se movimenta preferencialmente pelo eixo e abusa do zoom para alcançar os ligeiros pássaros. Quando as aves vão embora e o foco se torna a árvore, a diretora começa a se movimentar ao redor para capturar diferentes ângulos. O tronco, que antes parecia firme ao chão assim como Fanderl, agora desliza levemente pela imagem como se flutuasse. Não só diferentes “tempos e eventos que acontecem no tempo”, mas também diferentes materialidades são descobertas nessa progressiva soma; o cinema de Fanderl não é regido pelas leis materialistas, pelo contrário, encontra suas próprias ordens cosmológicas pela principal evidência imaterial que nos é permitida: a experiência sensível.

Mesmo que sempre evite comparações⁵, Helga Fanderl aproxima sua maneira de filmar (montagem na câmera, estruturação formal e rítmica no ato de filmagem, reciprocidade entre sujeito e objeto e risco elevado de erro por conta dos procedimentos adotados) à caligrafia zen:

Esse estado de espírito é muito intenso e excitante. É como se todas as condições mentais, emocionais e técnicas tivessem que ser percorridas e coincidirem na ideia de fazer um bom filme. Às vezes, esse tipo de filmagem é um gesto que me lembra a caligrafia zen. Não há possibilidade de corrigir e alterar. A obra revela o estado de espírito no momento de sua criação.” Helga Fanderl⁶

Strom © Helga Fanderl

Impossível não cair no clichê de que é possível ouvir sons nos densos filmes silenciosos de Fanderl. Os demarcados contrastes que se ampliam de fragmento em fragmento, nos apresentam diferentes intensidades sensíveis e imaginativas, acumulando memórias de primeiros contatos neste mundo que começou no início da projeção. Em Konstellationen (2013), como não perceber o estrondo das cataratas do fragmento Strom (2010)? O contato é ainda mais chocante pois havíamos sido apresentados primeiramente ao silencioso nado da tartaruga em águas invisíveis aos nossos olhos em Aquarium (2009). O único indicativo pictórico de um registro aquático, além dos animais presentes, são algumas bolhas e características ondulações luminosas. Luz esta que se torna um privilégio do aquário comparado aos pássaros que se alimentam em uma árvore seca completamente negra contra o céu nublado no chapado Blätter fliegen (2001), de um preto e branco quase binário. Os fogos de artifício de uma Torre Eiffel vulcânica, em Feuerturm (2009), deixam rastros nos grãos da película que nenhuma luz natural vista até então ousaria rabiscar. Gradualmente conhecemos a luz a partir de polivalentes luzes; uma infinidade de haikus luminosos se formam nestes micromundos abertos. No fragmento final, encontramos em cataratas que habitam os céus, um achado extasiante: em meio ao vapor que sobe da queda d’água, surge um arco-íris. Toda ação filmada retorna à luz.

___________

1 Em HAMLYN, Nick. Layers and Lattices: Films of Helga Fanderl, in Sequence, issue number 1,No.w.here Publications ISSN 2048-2167, 2010
2 Konstellationen é um projeto contínuo realizado pela diretora de 1992 até 2016, em que novos curtas eram adicionados. Este texto se baseia na versão de 2013 exibida no Festival Internacional de Cinema de Toronto 2013, que segue a seguinte ordem de curtas: Blätter fliegen (2001), Gasometer I (2010), New Hope I (1992), Aquarium (2009), Geburtstagsfeier (2004), Feuerturm (2009), Leopard (2012), Laub (2010), Rost (2010), Container (2011), Gläser (2011), Gelbe Blätter (2011), Strom (2010).
3 Respectivamente, Bläter fliegen (2001) e Laub (2010).
4 Gasometer I (2010).
5 Fanderl, ex-aluna de Peter Kubelka e Robert Breer, revelou nos Extras do DVD Fragil(e), que “influências existem, mas não no sentido direto, mais indiretamente”. Continuando, cita Dziga Vertov (em especial Um homem com uma câmera), Jean Vigo (em especial À propos de Nice e L’Atalante), Gregory J. Markopoulos (em especial Ming Green, também montado inteiramente na câmera), Robert Beavers (em especial Work Done) e também Jonas Mekas.
6 Entrevista com Helga Fanderl por Andréa Picard, em Cinemascope nº 55.

Helga Fanderls, Figurações (programa)

Filmes (2000 – 2025)

Sessão Babel / Cinemateca do MAM / Rio de Janeiro

16 agosto 2025

I

Karussell Carrossel
Wasserpflanzen Plantas Aquáticas
Schaukeln (2022) Balançando (2022)
Frühlingsbilder Imagens da Primavera
Pariser Bilder für Dr. G. Imagens de Paris para Dr. G
Spielende Hunde Cães brincando
Konversation am Strand Conversação na praia
Herbst in St. Piat Outono em St. Piat
Kakibaum im Winter Caquizeiro no inverno

II

Jardin d’Acclimatation I   
Gespiegelt Espelhado
Boote auf der Yerres Barcos no Yerres
Zora schaukelt Zora Balançando
Pflanzen Plantas
Teich im Berry Lago no Berry
Wäsche im Wind Roupa lavada ao vento
Mona Lisa*
Tunnel* Túnel
Feuerwerk* Fogos de artifício   

Super 8, silencioso, colorido e preto & branco*

Este dossiê acompanha a Sessão Babel que a Cinemateca do MAM promove em agostode 2025.





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