Sobre a Anarca Filmes

GUIOMAR RAMOS

O Coletivo Anarca Filmes é uma produtora de cinema e arte contemporânea com uma proposta de realização audiovisual de caráter experimental. Fundado por ex-alunos da Escola e Comunicação Social da UFRJ no final de 2014, o grupo expressa uma busca genuína de jovens artistas por uma linguagem que os represente. Temas relacionados à urgência social e política contemporânea, como a celebração de vidas LGBTQI+ em contraponto à violência colonial mobilizam a Anarca. Para seus fundadores Amanda Seraphico, Clarissa Ribeiro, Lorran Dias e Mariana Cavalcanti  a Anarca tem como proposta principal o empoderamento e a autonomia de corpos e sexualidades dissidentes.

Através da realização de filmes e vídeos, muitas vezes produzidos coletivamente, seus Registros estéticos fazem parte de movimentos politicamente engajados no RJ  pós-manifestações de 2013. São produções que almejam tensionar o universo artístico tradicional, podendo envolver assim toda uma rede de ativistas contemporâneos que agregam pessoas fora das universidades e dos estabelecimentos reconhecidos institucionalmente.

O tom de rebeldia político-experimental presente em meia década de produção da Anarca Filmes já existia nas produções dos anos 1970 do Cinema Marginal e de artistas como Arthur Omar, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Geraldo de Barros, Lygia Pape, etc. nessa conexão entre cinema e artesvisuais. A produção da Anarca pode ser identificada com o que chamamos de Cinema Expandido, termo que surge no final dos anos 1960, (Young Blood, 1970), a partir da consciência de que o surgimento da televisão e de novas tecnologias, amplia as possibilidades de novas formas de criação/edição e outros lugares para a projeção final de seus produtos
audiovisuais.

Como alternativa à rejeição frequente dos festivais e espaços de distribuição da indústria do cinema, a Noite se tornou um espaço de produção e distribuição para o coletivo.  Os eventos  chamados de Monstra Anarca Filmes de Cinema e Vídeo foram realizados na Casa NEM (Lapa), no Galpão Bela Maré (Favela da Maré), no Espaço Saracura (Gamboa) e na Void (Madureira) – espaços acolhedores à pluralidade de gênero, sexualidade, classe e raça.  

A Casa NEM foi o primeiro lugar de apresentação dos filmes e performances desse Coletivo. Na 1ª Monstra Anarca Filmes de Cinema e Vídeo (2017), foram exibidos Migues (2015), Desmonte (2016), Trópico Terrorista (2016), Bad Galeto: No limite da Morte (2017), X-Manas (2017) e a retrospectiva de vídeos de festas e manifestações culturais registradas desde 2015. Nas festas, onde essas produções eram apresentadas, havia sempre um vínculo político já que por ser um lugar de acolhimento para LGBTs em vulnerabilidade econômica – lugar de referência para pessoas trans que em situação de rua e/ou desamparo, podiam morar, estudar
em pré-vestibulares e articular com movimentos e indivíduos aliados.

Nesta Casa, a equipe da Anarca também registrava performances, shows e convidava DJs para discotecagem, como é o caso de MC Katrina, trabalho de Jota Mombaça, que canta e performa: “Eu meto bala…”, seguida do refrão: “…em quem vier tapar meu cu com sua bíblia”.

Em 2018 o diálogo com o campo das artes visuais se torna mais formal, algumas obras foram exibidas na sala do educativo da exposição Queermuseum no Parque Lage e posteriormente a Anarca Filmes montou uma cabine com alguns de seus curtas, como  2ª Monstra de Cinema e Vídeo, no Espaço Saracura, local de arte independente na Gamboa, centro do Rio de Janeiro, criado por Bianca Bernardo, curadora, artista e educadora. A cabine estava inserida dentro da Exposição Feira Asteriscos. Foi a partir deste evento que durante as eleições para presidente naquele ano o grupo foi convidado a produzir uma Residência artística no centro do Rio de
Janeiro, para pessoas que quisessem realizar produtos artísticos-audiovisuais. Clarissa Ribeiro e Lorran Dias co-dirigiram e realizaram a curadoria do processo. O restante do coletivo estruturou o curso Filmes Urgentes dentro da residência. Urgência diretamente ligada com a ascensão da extrema direita que se avistava com a chegada de Bolsonaro ao poder, e o consequente desmonte das políticas públicas na Cultura.

Criando um novo formato de produção e distribuição, deram o nome de: Projeto ANTI: Residência Fílmica Antifascista (2018). A residência contava com três pilares: práticas de artistas convidadas, programa de educativo e cineclubes. Para o curso foi cobrado uma matrícula e todo valor foi revertido em transporte e alimentação da equipe fixa da residência durante a feitura dos trabalhos. Dentro do programa de educativo, havia a Masterclass de Linguagens Trans – Pajubá, orientado pela artista Bianca Kalutor.  

No período de um mês produziram neste sistema oito filmes vinculados à arte contemporânea – entre videoarte, ficção e documentário experimental. No final, em uma mostra de retrospectiva do trabalho foi realizada a 3ª Monstra Anarca Filmes de Cinema e Vídeo seguida de uma festa com instalação, discotecagem e performances. Nesta mesma residência, em articulação com uma rede de artistas, é lançado o Manifesto Terrível que se propõe até 2022 com produção de estéticas, presenças, coletividades e poéticas em reação à ascensão da extrema direita no Brasil e a precarização da Cultura e seus trabalhadores.

Já em 2019, foram selecionados pelo edital da exposição Bela Verão Transcendências do Galpão Bela Maré, na Favela da Maré, onde fizeram uma instalação com retalhos da bandeira do Brasil, plástico e pixação, para a entrada da 4ª Monstra Anarca Filmes de Cinema e Vídeo, com exibição de diversos trabalhos em uma cabine.

No Void, uma loja no bairro de Madureira, na Zona Norte do Rio, a rua e a praça em frente à loja, são utilizadas para a projeção de filmes e performances. Em um evento contratado pela Converse BR, a Anarca Filmes participou de uma parceria com Sabine Passareli, chamada Terrivelmente Estranha. Além de dar continuidade ao Manifesto Terrível, lançados no Projeto Anti: Residência Fílmica Antifascista, dialogavam com a festa Estranha, proposta por Sabine.

Em um primeiro momento no espaço interior da loja exibiam a 5a Monstra Anarca Filmes com exibição de produções do projeto nomeado como Anti: Residência Fílmica Antifascista. Ao final da sessão iniciam a performance Tela de Sangue Ação Para Existir em Continuidade.

Lá fora, em duas telas projetaram-se filmes com imagens de arquivo de uma arma sendo desmontada em 3D, uma bandeira do Brasil e imagens do google earth, onde era possível acompanhar o caminho do globo terrestre até o local onde eles se encontravam. Lorran e Clarissa estendem a tela onde os filmes foram exibidos e misturam terra e sangue, enquanto a artista de noise Sannanda Acácia distorcia o hino nacional brasileiro, cantado pela voz artificial do Google tradutor.

Hoje a Anarca Filmes possui acervo digital no canal do youtube e através de um diálogo de Lorran Dias e José Quental, possui cópias de sua filmografia na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Enquanto coletivo, hoje distribuem seus trabalhos por algumas instituições de arte e cultura, mostras e festivais de cinema. Desde 2019 começaram a realizar projetos individuais, vinculados à particularidade de seus processos e poéticas, que se cruzam e se colaboram eventualmente. Amanda Seraphico desenvolve pesquisas em performance e design; Clarissa Ribeiro experimenta discotecagem e noise music, dirige o projeto autoral do I Hate Flash e videoclipes;  Lorran Dias dirige e faz a curadoria da TV Coragem, comissionada pelo Programa Convida do Instituto Moreira Salles (2020), canal de televisão contra-colonial, feito na internet e voltado para arte e cultura em reelaboração, com disponibilização de obras comissionadas e de circulação restrita; Mariana Cavalcanti é cantora em desenvolvimento do seu álbum e videoclipe.

Guiomar Ramos
Pesquisadora/realizadora/professora da ECO/UFRJ



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